MECSTAR — O APRENDIZ DE HERÓI • 4

• Capítulo 4 - Caindo Como Um Patinho •

Antes que eu fosse capaz de dizer “batata-doce é uma delícia, mas o que eu gosto mesmo é de batata frita”, me senti puxado pelo ar por uma força violenta. Quando abri os olhos e parei de gritar e espernear, estava novamente no interior da nave-abóbora de Bongo, o Gordo, juntamente com o R2.

A lesma verde rugosa, que dizia ser um Cruzador Dimensional, estava sentada em sua cadeira enorme e ridiculamente lilás.

E de lá não saiu.

Continuou mexendo nos controles da nave como se eu não passasse de uma carga de lixo recolhida acidentalmente pelo sugador da nave. Ele olhava atentamente uma tela verde com linhas horizontais e verticais, retas e curvas, onde havia uma área com uma mancha amarela avermelhada — era para ela que Bongo olhava com cara de que antes da próxima parada, ele iria fazer uma pausa para ir ao banheiro.

— De nada, tá, seu mal agradecido. — Eu disse, tentando me recompor de tudo que havia acontecido.

Ele não me deu a menor bola.

— Ah, obrigado, R2, fez um ótimo trabalho, não deixou que o tampinha do Mectá estragasse tudo.

— Hihihihihi... sa-be... que sempre pode...contar comigo... me-mestre. — Disse R2, gaguejando, demostrando certas falhas robóticas, talvez provenientes dos meus disparos com a adaga laser na sua cara de rato.

— Será que eu ouvi direito? Fui eu quem enfrentou e derrotou aquela coisa bizarra lá...

EU a derrotei, e quase MORRI. Em outras palavras, você tentou me matar sua lesma redonda! — estava muito furioso para lembrar de código de conduta e das palavras polidas dos heróis. Você se quer falou sobre o poder da...

— Ah, então você sobreviveu, Mectá! Fico feliz, sinceramente. Além de surpreso, é claro. —Bongo finalmente se virou em sua cadeira e me olhou. — Eu não tentei o matar... sabia que você... como grande herói que é... daria um jeito de destruir a Miltopéia de Três Cabeças e Cento...

— Olha... quer saber? Cala a boca! Deixa pra lá, esquece... só me diz onde eu posso me lavar desse sangue de Miltopéia.

— É na porta que diz Não entre sem precisar...

Abri a boca para dizer que não sabia onde ficava tal porta, mas a fechei e comecei a perambular pela nave e a olhar as estranhas coisas que havia ali — coisas antigas e empoeiradas, objetos que suponho seriam dos planetas que ele já tinha visitado — organizadas num grande expositor de vidro.

E havia também um grande livro, que parecia um manual, num expositor embutido numa parede, e que estava aberto em uma página que dizia:

Atenção!

Para sua segurança, mantenha as mãos e os pés (caso os possua) dentro da nave enquanto ela estiver em movimento — sobretudo no hiperespaço.

Em caso de acidente, não grite, isso costuma piorar as coisas. A menos que a nave tenha sido soterrada, nesse caso, gritar às vezes ajuda.

Se estiver perdido, consulte o piloto de bordo, ele será útil — caso saiba exatamente para onde está indo.

Em caso de não saber para onde desejar ir, consulte o Novo Guia Turístico 36000 e sua lista completa de lugares para morrer antes de visitar, isso o dará uma clara ideia de onde você não quer chegar.

Eu me perguntei se Bolaranja estaria nessa lista. Tinha quase certeza que pelo menos Solavanco estava.

Finalmente encontrei a porta Não entre sem precisar..., pensando por que alguém entraria ali sem precisar, e no que aquelas reticências sugeriam...

O interior do banheiro da nave abóbora era maior (e mais cheiroso) que o esperado. Havia uma banheira circular de mármore no centro — com sulcos que a davam a aparência de abóbora — com duas grandes torneiras uma em forma de golfinho, outra em forma de sereia, de cada lado. Até que o Gordo tem um lado sensível, pensei, entrando na banheira com roupa e tudo, apenas retirando minhas sandálias com tiras de couro de porco, e pousando a adaga (que já tinha como minha) sobre a borda. Ao pisar no fundo, encostei meu pé em algo levemente macio.

— Quem foi a frigideira furada que me pisou? — disse uma voz irritantemente aguda. Descobri que vinha do ser no qual eu havia encostado com o pé: um patinho de borracha.

Sim, caro amigo, eu também achei estranho. Era todo de borracha mesmo, mas algo em seus movimentos e expressões (e temperamento...) me dizia que era um robô fabricado pela mesma empresa que fizera o R2.

O patinho começou a bicar insistentemente com seu bico perfeitamente macio e laranja os meus pés — me fazendo cócegas — enquanto esbravejava xingamentos peculiares.

— Macarrão grudado com molho de alcaparras! Rato de esgoto de Atlantis! Besta quadrada elevada ao cubo! Pizza de ricota! Cateto oposto sem hipotenusa! Cobra tetraplégica de zero cabeças! Número racional negativo!

— Ei, calminha aí, amiguinho. Mas que... o que é isso!? Menos... menos, eu só quero tomar um banho... Ei! Pare com isso — Haha — tá me fazendo — hahahaha — cócegas...

— Dízima periódica! Anta pré-diluviana! Troll banguela! Peixe de couro! Café com adoçante! Polític...

Tíuuuu!

Um tiro com a minha adaga laser e o pato de borracha saiu voando de dentro da banheira. Achei que o destruiria, dado tamanho estrago que eu fizera na miltopéia, mas a potência do tiro foi bem. Fiquei com impressão de que a potência se relacionava ao temperamento do atirador.

.

— Jaguatirica de patins! — Ouvi a voz aguda do patinho gritando ao longe.

Ignorei todos os apelidos carinhosos que o patinho falava com sua voz irritante enquanto voltava demoradamente com suas perninhas curtas para a banheira.

Abri a ducha sereia e comecei um banho da forma que nunca tinha tomado na vida. Permaneci com as roupas porque elas também precisavam ser lavadas.

Estava sonhando acordado com multidões enlouquecidas gritando “MECSTAR! MECSTAR! MECSTAR!”, numa aparição pública minha, quando senti uma pancada na cabeça.

—Au!, mas o que...

Olhei para trás e levei outra pancada, desta vez no meio da testa.

— Mas o que você tá fazendo, seu patinho feio! — Disse, me levantando, enquanto ele lançava em minha direção outros tabletes de sabonete com suas asinhas de borracha.

— FORA DAQUI! FORA DAQUI! — Gritava ele a cada sabonete lançado com uma voz cada vez mais aguda.

Um verdadeiro herói, meus amigos, reconhece a hora de se dar por vencido. Foi o que fiz, antes que meus tímpanos fossem brutalmente perfurados pelos gritos do pato e eu acabasse com traumatismo craniano causado por um sabonete de aloe vera com mel silvestre e amêndoas anadorianas.

Peguei minha adaga, minha sandálias e uma toalha rosa com fofinhos coelhos brancos bordados, e sai o mais rápido que pude, antes de ser atingido por uma bisnaga de esfoliante de maracujá terrestre. Fechei a porta, aliviado, lendo novamente a mensagem,

Não entre sem precisar...

E finalmente a entendi.

Após alguns passos no pátio da nave, veio o R2 todo alarmado para cima de mim, trazendo algo que a princípio pensei ser uma pistola, mas era na verdade um secador. Em menos de cinco minutos eu estava seco, e um tanto mais limpo.

— Sem a-água no pa-patio da nave, Me-mectá! — Disse o rato, ao que eu apontei a adaga laser, e ele saiu correndo para perto de Bongo, ainda na cadeira lilás, mas desta vez de costas para os painéis de controle.

— Se prepare, vamos descer. — Disse ele.

— Ah, legal, estou mesmo com fome, onde é que vamos almoçar... bem se aceita a sugestão, em Solavanco tem um lugar, meio sujo, meio parado, meio vagabundo, mas a lombriga defumada que eles oferecem, meu amigo...

— Calado, Mectá, o lugar para onde nós vamos vai fazer você esquecer essa fome rapidinho.

Engoli em seco.

— Posso saber que lugar é?

— É claro que sim, você deve. Mostrou servir para alguma coisa, embora ainda não tenha provado que não foi apenas sorte de principiante. — Ele se levantou e começou a caminhar e fazer gestos com os quatro braços — E não me olhe com essa cara, o Z.0.Z. gravou tudo o que aconteceu lá embaixo e enquanto você brincava com Simpatinho no banheiro eu os assisti. Ah, à propósito, espero que não tenha acontecido nada com o meu creme anti-rugas 7000 com essências de nebulosas Eterno Big Bang. Torça por isso. Mas, voltando ao ponto, vamos descer até o covil uma caverna onde a miltopéia guarda todos seus espólios de guerra. Mas o que de fato estamos procurando, não é nenhum desses tesouros, e em honra aos heróis tombados ali, não tocaremos em nada. Entretanto, precisamos de um tesouro em especial, que um dos heróis em específico tinha consigo antes de ser morto pela miltopéia. Trata-se de um artefato muito raro nesses dias na galáxia, outrora tão comuns, as Bolas de Gude Carambolas.

— Ah, mas será muito fácil! Nós... digo, EU, já destruí a miltopéia, só entramos pegamos a bola de gude e bye bye, ok, vamos comer.

— Hahaha, você é engraçado, Mectá.. — Disse Bongo — Mas verá que não será tão simples assim, não segundo o que andei lendo sobre os hábitos biológicos das miltopéias...

— Mas, mas, quem ficará aqui para cuidar da nave? — Perguntei, ansioso por não ter mais nenhum encontro com nada parecido a uma miltopéia, tivesse ela quantos ferrões fossem.

Bongo, fazendo o que ele sabia muito bem, ignorou completamente minha questão levantada.

Z.0.Z.! — Disse ele.

O R2 acionou um botão, e um buraco no meio da nave se abriu novamente. Não pude deixar de notar que estava bem mais próxima do chão dessa vez.

— Vamos, Mectá. — Disse Bongo, checando suas armas e trajes.

— Pode ir. — Disse, me abaixando para calçar minhas sandálias.

— Não mesmo. — Disse Bongo, jogando-me através da passagem na areia seca do chão do deserto.

A altura era apenas de um metro, mas eu embolei, e minhas sandálias foram parar longe.

— Vamos logo, siga-me — Disse Bongo, após saltar no chão.

Eu o segui, e a porta da nave fechou-se atrás de nós.

Por um tempo, Bongo caminhou em silêncio, e eu o seguia. Estávamos próximos a colinas de terra seca e nua.

A areia era escaldante, e o vento continuava a soprar, até que finalmente Bongo parou, e eu o alcancei.

— Aqui. — Disse ele, apontando para uma das colinas, aparentemente não muito diferente das outras. Mas logo notei que havia uma abertura ali, a cerca de 50 metros de onde tínhamos aterrissado — onde a nave abóbora ainda permanecia flutuando silenciosa.

Bongo caminhou em direção a abertura cavernosa e eu o segui. Entramos e caminhamos, sempre descendo, a luz dos três sóis diminuindo até desaparecem por completo. Após alguns metros de caminhada na escuridão, a parede à direita na qual apoiávamos nossas mãos desapareceu.

— Acho que chegamos na câmara. — Disse Bongo. Então acionou uma lanterna no peito do seu traje que iluminou quase tudo em nosso volta (e quase me cegou).

A câmara era imensa, com paredes de rocha e teto abobadado, um pequeno lago no centro e... centenas de miltopeiazinhas nos olhando como se dissessem “Ei, não vê que estamos tentando dormir aqui? Ah, vocês são comestíveis? Tudo bem, nós também estamos com fome...”

Bongo segurou meu braço, antes que eu pudesse pensar em correr.

— Já sabe usar a Zitara, Mectá. Vvamos lá!

— Então é esse o nome dela? Zitara? — Falei, sem nada melhor para dizer.

E mais uma vez, em pouquíssimo tempo, eu estava ferrado.

Davyson F Santos
Enviado por Davyson F Santos em 13/07/2022
Reeditado em 15/07/2022
Código do texto: T7559138
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