MECSTAR — O APRENDIZ DE HERÓI • 7

• Capítulo 7 — Raiz Pedrada •

Além de amarrado, eu estava ensacado — dentro de uma enorme saca jogada sobre o lombo do dromedário, onde havia escrito:

BATATAS — Por que continua lendo? Transporte e manuseie como quiser (desde que você não seja um idiota)!

Apenas com a cabeça fora do saco, virado para o lado das nove caldas do dromedário, que não paravam de se mover em movimentos circulares que lembravam uma hélice, passando a impressão de aquilo ser o motor que fazia o bicho andar. Sentia-me, de muitas maneiras, como um monte de batatas compradas na feira, dirigindo-me para cozinha que iria me cortar em tiras, fritar, e me servir com ketchup — exceto pelo fato de que batatas novas não fedem como eu fedia naquele momento.

— E então, Rök — comecei a puxar assunto — como é que é ser um xerife nesse fim de mundo aqui, você deve adorar, hein?

— Hum... interessante sua pergunta, prisioneiro; e você deve adorar respirar, hein?

— ...Como é? Sim... acho que sim, para dizer a verdade, nunca parei para pensar a respeito...

— Esse é o ponto. Mas sobre respirar , eu já já pensei, pensei e pensei e decidi que não gosto.

(Silêncio.)

(Silêncio quebrado pelo vento passando entre as rochas secas, e levando um monte de areia para dentro dos meus olhos.)

— Você não gosta de respirar? — Perguntei, piscando e lacrimejando, com uma quantidade de areia nos olhos suficiente para construir dois estádios de na-canela-chute-bol.

— “A respiração é a causa da nossa morte, meu pai.”, me diz meu filho encostado ao mais velho, num dia em que me visitou, vindo de sistema de Lamartaranar, onde vive agora. "Cada uma é uma a menos, meu pai, é bem verdade. Estamos gastando as que nos restam, a cada dia que passa. Se pudéssemos economizar elas, por, por exemplo, respirando mais devagar e profundamente, viveríamos mais e até melhor". Bem, pelo menos é isso o que disse ele, meu filho formado em Bio-Tec-Alien-Panologia, com especialização em sei-lá-mais-o-quê. Para mim não faz muita diferença, nem precisa estudar para saber de uma porcaria dessas, e ele também detesta a porcaria de trabalho de almofadinha que ele arranjou com esse estudo todo.

— Sinceramente, Rök. Não sei se entendo realmente o que você está tentando falar, aliás, já até esqueci até qual foi a minha pergunta.

— Não quis dizer nada além daquilo que disse. Argh! Não sou filósofo, sábio, acadêmico e muito menos publicitário. Duk-Marrar me livre! E agora acrescento: ninguém que tenha um pouco de bom senso, gosta realmente do que faz nessa vida no Grande Ark-Han. Eu não gosto de respirar, respiro porque preciso para continuar vivo, e isso vai me matar um dia. O mesmo vale para qualquer função no Grande Ark-Han, pequeno infrator.

— Eu não sei o que é o Grande Ark-Han e muito menos Duk-Marrar, mas caramba, cara quando foi que você ficou assim, meu irmão? Por mil supernovas, a vida não é só isso não, tá ligado? Pode ser bem mais... pode ser melhor, sabia? — Com muito esforço consegui me virar para ele sem, ao mesmo tempo, cair do lombo do dromedário.

— É você que não está ligado, filho da Poeira do Deserto. Ainda não respirou o bastante para entender como as coisas funcionam. Até que descubra isso, você vive nessa ilusão juvenil até que a Mão da Vida te puxe pelo pé, vire de ponta cabeça, e te lance o mais distante possível das suas ilusões. Neste dia, você abre os olhos e fecha as asas. — Concluiu ele, olhando para o céu. Foi aí que eu percebi que ele, como todo bom (ou mal) gafanhoto, tinha asas de fato, mas estavam tão fechadas e presas ao seu corpo, que pareciam que não se abriam há séculos.

— Ah tá; e se eu não quiser?

— Não há escolha, você verá.

— Mas eu sou um HERÓI!

— E acha que apenas por isso terá um caminho de flores de ouro em sua frente até Ashamahi?

— Isso foi um espirro? Saúde! — ele me deu um soco nas costelas. — Ai! Essa doeu... mas sim, mesmo como as pancadas da vida, como essa, eu continuarei acreditando. Farei o meu melhor para um grande Herói, ou morrerei tentando.

— É nisso que nos predemos. É apenas isso... dizemos para nós mesmos que estamos fazendo nosso melhor, quando, no fundo, sabemos, claro como o sol do centro, que NÃO estamos. Podia ser, devia ser, mas nunca, nunca é. Assim é a existência no Grande Ark-Han, e não podemos fazer nada para mudá-lo, exceto para aceitá-lo como é.

— O Grande Ark-Han, é assim que você chama o universo? Bem, o universo que eu vivo é um tanto diferente. Vou mostrar para você, vou mostrar a todos... ái, vai mais devagar aí, Rök, pelo amor de... Duk-Marrar, é assim que você chama? Eu... mostrarei que sou capaz de mudar tudo, e todos lembrarão que também são capazes! Talvez você não viva para presenciar esta grande revolução, mas a pessoa que vai transformar este universo está bem aqui...

— Conversando que nem um bêbado no Saloon da Noite Silente, amarrado, ensacado, e fedendo a bosta de búfalo tricórnio. Você é uma piada!

— É... olhando por esse lado... é... é exatamente isso aí.

— Bem, graças a Duk-Marrar chegamos.

— Ao quê? A um ponto em comum?

— Não. Chegamos em Raiz Pedrada.

O dromedário de duas corcovas, nove caldas e nenhum nariz deu mais um passo e eu vi, lá embaixo, num vasto vale seco, a cidade do deserto.

As construções em Raiz Pedrada eram de rumkbar, um tipo de rocha avermelhada abundante naquela região desértica. As casas eram altas e retas, sem muitos adornos, secas como o deserto. As janelas eram retângulos irregulares e as portas também eram de pedra. Muitas chaminés cuspiam fumaça num céu de uma tarde totalmente sem nuvens. Lembraram-me um pouco minha própria casa (agora destruída), confesso, mas, ainda assim, Solavanco conseguia ser mais alegre que aquele monte de pedras e poeira chamado Raiz Pedrada.

Enquanto passávamos através de uma rua que cortava a cidade no meio, muitos olhos gafanhotais seguiram-nos. Rök falou com um ou dois deles, no máximo, provavelmente pessoas da lei, como ele.

A entrada do prédio para o qual fui levado era uma cabeça de gafanhoto entalhada na rocha vermelha. Estava muito deteriorada e uma das antenas (que eram torres de vigilância) tinha caído há algumas gerações. A porta era a boca do gafanhoto. Os dois olhos do gafanhoto eram janelas de onde vigiavam dois guardas muito bem armados.

Rök, após me desensacar, levou-me à presença do delegado: um gafanhoto grande e gordo. Eu sei, honrado amigo e leitor, como deve ser difícil de imaginar, quando nunca se viu algo assim antes, mas lá estava ele, em minha frente, um enormemente gordo gafanhoto por trás de uma velha mesa retangular de rumkbar.

— Ora, ora, mas o que você me trouxe desta vez, Rök? — Disse ele, mastigando alguma coisa em sua boca inquinheta de gafanhoto. — Um dos macacos carecas do oeste?

— Um herói, senhor. E isso é uma sorte que não se não se tem todo século! — Respondi. — Mecstar, herói mais famoso em Bolaranja — continuei — conhecido nas cidades mais decentes, as suas ordens! — Fiz uma mesura tosca, quase caindo, amarrado como estava.

— E o que você fez, Bequitá, para ter de enfrentar as leis da Raiz Pedrada do Deserto?

— Estava dirigindo acima da velocidade permitida, senhor delegado, e, além disso, é muito provável que esteja bêbado. — Disse Rök, com o mesmo tom e com a mesma postura de quando falava apenas comigo no deserto.

— Eu não estava pilotando droga nenhuma! — protestei — e, além disso, só estava meio quilômetro acima da velocidade, e isso não quer dizer nada!

— As leis do deserto são como as da natureza, Bequitá: justas e implacáveis! — disse o gafanhoto gordo, abrindo um pote redondo, de onde retirou uma porção enorme de volumosas larvas multicolores e começou a mastigar tão lentamente que chegava a ser nojento.

— Você passou do limite, primata pelado — Continuou ele, mastigando, mastigando, mastigando... — digamos que você estivesse no limite, na beira, de um precipício, meio passo ou um completo, qual seria a diferença?

Eu já estava farto daquele lugar, daquele cara, daquele dia... estava farto de... de tudo.

— Sim, sim, claro que faria toda diferença sim, posso provar, seu molenga que passa o dia inteiro sentado aí mastigando que nem uma cabra banguela.

— Pois assim será, Bequitá! — Disse o delgado, aparentemente, sem se incomodar com a provocação. — O condeno a um julgamento público na beira do precipício da Morte Que Grita. Veremos se é tão corajoso quanto as suas palavras, veremos se é capaz de voar também. — Concluiu, lambendo os dedos e soltando um risinho sarcástico.

— Eu agradeço, senhor...

— Tusdëd Öh-Öh, ao seu dispor e de toda a sua azarada família.

— Não tenho família.

— Sorte dela. — Ele tinha um estranho brilho nos olhos.

Davyson F Santos
Enviado por Davyson F Santos em 03/08/2022
Código do texto: T7574156
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2022. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.