Memórias maternas - O Diário Mágico de Luca

Mais uma relaxante viagem de trem... Seria, não fosse a mulher na poltrona da frente, que não consegue controlar sua criança por nada. Quando eu tinha essa idade, era mais comportado. Isso me traz lembranças... A última lembrança que tenho de minha mãe não é muito agradável. Sua aparência esguia disfarçava uma forte mulher, mas não escondia o fato de que não tínhamos muito alimento à disposição. Seu cabelo meio castanho meio grisalho começava a denunciar sua idade, tal qual as rugas e linhas de expressão em sua pele morena clara. Seus olhos tom de mel devem ter enfeitiçado muitos rapazes no passado, mas não passam muita inspiração hoje em dia. Sou filho único dela, não conheço meu pai e nem comentamos muito sobre isso. Vivíamos numa pequena vila distante da capital Vitela Grandi.

Sempre estudei por conta, adorava ler qualquer livro e vivia a visitar a pequena biblioteca da cidade. Já li as mais variadas histórias e fiz amizade com a senhora que cuida do local, Donna Marzia. Eu até abria a biblioteca pela manhã, às vezes. Minha mãe me ensinou a ler e a cozinhar, assim poderia descansar enquanto estivesse em casa. Nunca me ensinou, no entanto, o que fazia durante a noite para sustentar a casa. Eu também me perguntava o que era, mas não se enganem, ela nem teria tanta clientela na pacata vila de Poverone.

De algum modo, sempre voltava pela manhã com uma sacola de pães ou frutas e verduras. Algum dinheiro no bolso e doces enrolados numa trouxinha, às vezes. Fazia um suco de laranja fenomenal. Ao menos a mim, ela alimentava bem.

Certa vez, após fingir que iria dormir, resolvi segui-la na noite. Quando saio à porta, quase a perco de vista. Com movimentos estupidamente rápidos para uma senhora que passou da meia idade, ela subia em telhados com facilidade. Com a energia que só uma criança de nove anos teria, dispus-me a acompanhá-la pelo chão, em silêncio para que não percebesse minha presença.

Perco a visão dela quando entra na janela aberta do segundo andar de uma velha casa. Eu nem sabia que aquela casa era habitada, mas pude ver algumas sombras nas luzes do andar de cima. Alguns minutos depois, ela sai apressada e pega um cavalo no estábulo mais próximo. Não conseguiria acompanhá-la a partir daqui.

Voltou logo pela manhã, como sempre fizera. Diferente do habitual, dessa vez ela voltaria ferida. Cambaleante, com a perna direita porcamente enfaixada e ainda ensanguentada assustava. Eu sempre a recebia com um sorriso no rosto, mas dessa vez a recebi com a face de preocupação. Ela sempre me abraçava ao chegar e me ver, mas dessa vez o abraço foi apenas um apoio para que ela não caísse no chão. Eu tinha perguntas, mas elas ficariam para depois. Peguei um balde de água e a ajudei a lavar o local da ferida. Pude ver uma marca de furo bem profunda. Nunca tinha visto o furo de uma bala de escopeta até então, hoje tenho esse conhecimento. Ela conseguir andar, ainda que cambaleando, já era impensável. No entanto, já tinha visto coisas impensáveis quando a segui na madrugada. Nem queria pensar o que tinha causado isso. Eu queria perguntar, mas o medo da resposta me impediu.

Suas primeiras palavras naquele dia seriam um pedido de que eu a passasse o tinteiro, a pena e o papel em cima da mesa. Pediu também que eu saísse daquela sala e fosse comprar uns pães na padaria. Tirou de sua trouxinha de pano tudo que restava e me deu. Nunca a vi fazer isso antes, ela sempre contava moeda por moeda. Por fim, um último pedido:

— Luca, meu filho, por favor, não leia essa carta de jeito nenhum hoje! Só encoste nela amanhã. – Sua voz estava carregada, hoje posso dizer que ela estava prestes a chorar.

Se eu não fosse uma criança na época, teria entendido mais rápido a situação. Com a mentalidade de uma criança, apenas ignorei a situação e obedeci, apesar da curiosidade. Quando voltei, ela não estava mais lá.

Comi um pão e só então me questionei de como ela teria conseguido se mover com a perna naquele estado. Na apreensão de uma criança sem saber o que fazer, apenas corri até o primeiro local que me veio à cabeça, a biblioteca.

A velha Donna Marzia me acolheu e notou a minha apreensão. Não sabia onde estava minha mãe, mas disse que uns homens a cavalo vieram à vila pela manhã. Ela apontou a direção para onde foram, que para mim já era conhecida: a casa de dois andares da noite passada. Fui correndo e me deparei com dois homens conversando do lado de fora da casa.

Os dois tinham o tipo físico parecido com os da vila, de pele morena clara. Deviam ter entre 25 e 30 anos. Três belos cavalos estavam amarrados próximo ao estábulo, um deles era branco. Sabia que não eram daqui. Eu me escondi onde não poderiam me ver, mas eu também não conseguia escutar. Em poucos minutos, outro homem, loiro e de olhos azuis, saía da casa fazendo sinal negativo com a cabeça. Atearam fogo à casa e pegaram seus cavalos, saindo a toda velocidade. O homem loiro pegou o cavalo branco.

“Espero que minha mãe não esteja ali”. Foi o pensamento de uma esperançosa criança. A pergunta que ficava era onde ela estaria, se não ali. Voltei para casa e apenas rezei que ela estivesse viva e tudo fosse um pesadelo. Que ela voltasse para casa e me abraçasse como fez muitas vezes e tudo voltasse ao normal. Cheguei a prometer nunca mais espiar a noite de minha mãe.

Engraçado como a esperança de uma criança pode se agarrar nas pequenas coisas. E como se os deuses tivessem escutado minhas preces e promessas, minha mãe voltou no início da noite. Abraçou-me e reconfortou esse coração agitado. Ela me colocou para dormir como sempre fez, deu um beijo na testa e saiu do quarto.

— Adeus, meu filho. Leia a carta amanhã, ao acordar, ouviu?

Podia ser minha última lembrança de minha mãe. Uma boa lembrança, ao menos. Mas um “adeus”, desde aquela época, nunca me satisfez. Quebrei minha promessa na mesma noite e a segui.

Dessa vez foi mais fácil acompanhá-la. Ainda cambaleante, já não se movia tão rápido. Tomei uma distância segura e corri atrás. Entrou na mata próxima a vila e se esgueirou pelas árvores, parecia saber que estava sendo observada. Não sabia na época, mas não era de mim que ela estava se escondendo.

Quando se sentiu segura o suficiente, parou e se sentou em frente a uma grande e velha árvore. Como estávamos no início do outono, suas folhas alaranjadas já estavam caindo. Abriu sua trouxinha de pano, que agora carregava alguns frascos pequenos e alguns sacos de pó, além de uma pedra preta bastante afiada. Com ela, faz um círculo na casca da árvore a sua frente, com algumas inscrições dentro. Não podia reconhecer na época e nem lembro direito quais eram. Do centro do círculo, uma única gota de um líquido escuro escorria. Prontamente ela agarrou um dos pequenos frascos e capturou essa gota. Juntou um pó vermelho e outro branco e finalizou com uma gota de sangue vindo de um corte em seu dedo. Essa mistura fez com que se elevasse uma fumaça de dentro do vidro. Não conseguia ver a cor do líquido ali dentro, mas podia dar certeza de que mudou completamente.

Finalmente ela ingere o que fez no frasco. Nesse momento, o vento muda de direção. Junto dele, um frio sobe na espinha, fico paralisado. Ela se contorce por alguns segundos e seu cabelo liso se endurece, ficando estático e espalhado. Levanta-se como se nada tivesse a atingido e caminha normalmente. Mais uma noite e mais uma surpresa.

Eu podia notar algumas luzes atrás de mim e vi que elas se aproximavam cada vez mais. Minha mãe vai em direção às luzes de modo feral, correndo em quatro apoios numa velocidade impressionante, como se fosse um animal caçando. Passa há uns dez metros de mim e tenho a impressão de que me vê com o canto do olho. Imagino o que ela faria comigo se sobrevivesse àquela noite.

Em uma clareira próxima, os homens de mais cedo esperavam em cima de seus cavalos. Pareciam saber que ela iria atrás deles. Aquela fera apenas circundava a clareira, a espreita para atacar. Após um momento de silêncio, escuto uma voz grave que parecia envolver toda a mata em volta e atingia o fundo de minha mente. Não conseguia identificar o que a voz dizia, mas fiquei totalmente paralisado. Diferente de instantes atrás, essa paralisia era de puro medo. Como se uma aura aterrorizante me envolvesse e me segurasse.

Aparentemente, os homens sentiram o mesmo. Também ficaram paralisados enquanto a fera se aproximava deles lentamente. A voz ainda ecoava em minha cabeça até que outra voz apareceu. Ainda mais grave e forte, veio como um tiro. Continuei imóvel, entregue a qualquer ameaça se não estivesse atrás de uns arbustos.

Quando percebo, a fera estava ajoelhada, também imóvel. O homem loiro estava a sua frente. Pude escutar de longe o que disse.

— Você nunca mais tocará em minhas plantações ou em meus empregados, aberração. – Diz o homem, com a voz grave que eu escutava há pouco.

Ele tira uma adaga de sua cintura e apunhala o coração da fera, que voltava a ser minha mãe no mesmo instante que perdia a vida. Pude ver a expressão de tristeza em sua face. Memória desagradável.

A paralisia passou, mas o choque não. Queria gritar mais alto do que nunca, mas me segurei. Porém, pela tensão do momento, não notei um arbusto atrás de mim quando comecei a recuar e caí em cima. O barulho alertou os três homens. Comecei a correr desesperado. Desesperado também foi o grito que soltou minha mãe, em seu último instante de consciência. Grito esse que reverberou por algum tempo, parou o movimento dos homens e me deu algum tempo para correr. Até seu último ato em vida me ajudou.

— O que estão esperando? Vão atrás da criança! – Gritou o loiro.

Corri a toda velocidade até minha casa, mas sabia que seria seguido. Apenas peguei a carta que minha mãe deixou e pulei pela janela para continuar a fuga. Só pude pensar em me esconder na biblioteca, pois Donna Marzia me cedeu as chaves. Entrei e me enfiei embaixo de uma escrivaninha de canto.

Logo comecei a rezar novamente, como se os deuses fossem escutar novas promessas falsas. Dessa vez prometi apenas que dormiria no horário certo caso passasse daquela noite. Não precisava fazer sentido, só queria que tudo se resolvesse. Quando escutei os passos dos homens irem para longe da biblioteca, tranquilizei as batidas do coração. Por fim, resolvi ler a carta que minha mãe deixou.

“Luca, querido, sempre vou te amar mais do que tudo. Perdão por não poder te criar da melhor forma, mas eu não conseguiria fazer melhor. Não me arrependo de ter te dado a vida, muito menos por ter arriscado a minha vida para te dar alguma condição. Acho que nesse momento você já sabe que eu não sou como as outras mães de Poverone, né? A mulher que vai cuidar de você a partir de agora vai te explicar tudo. Respeite a dona Albertoni, certo? Essas são minhas últimas palavras para você, prometa que vai me levar contigo para onde for. Adeus, filho.”

A carta queimou assim que terminei de ler. Das cinzas, surgi uma corrente com um pingente. A pedra talhada na forma de uma esfera no pingente era da cor de mel, da cor de seus olhos. Coloquei prontamente em meu pescoço, mas o momento de tranquilidade precedeu um último susto. A porta trancada foi arrombada, causando um estrondo por todo o local. Uma figura sombria tinha entrado. Eu não sabia se era um dos capangas do homem loiro, não tive coragem de olhar. Tudo que me restou foi me esconder e prender a respiração. Em vão, pois o invasor deu a volta na escrivaninha.

— Levante a cabeça, garoto. Tessalia me chamou e disse que estava com problemas. Você é o filho dela? – Ouço a voz de uma mulher velha.

— S-sim. – Respondo com a voz trêmula e cabeça baixa, ainda encolhido.

Ela me puxou pelo braço e continuou.

— Vamos logo, não quero problema com essa gente.

A velha Albertoni era um pé no saco. Mas até que era gente boa. História para outra hora.

A mulher da poltrona da frente conseguiu, finalmente, colocar a criança para dormir. Olho para o lado e vejo um casal jovem me encarando. Introduzo minha presença a eles.

— Prazer, sou Gian Luca Alexandri di Tittani, apenas mais um contador de histórias. Já viajei por todos os países deste vasto mundo, vi monstros e heróis, li e vivi aventuras e desventuras por todo lado, das boas e das ruins. Querem ouvir alguma história?

— Não, obrigado. Já estamos próximos do nosso destino. – Disse o jovem rapaz.

Que corte seco...

Enfim, deixo a opção também ao leitor que me acompanhou até aqui. Até mais!