O Negrinho do Pastoreio e o Saci

No sul do Brasil, quando ainda era uma colônia de Portugal, existia uma região chamada de Missões. Era onde os jesuítas espanhóis faziam a conversão dos índios. Inclusive teve um índio, líder dos guaranis, chamado Sepé. Era dito que o mesmo era abençoado por Jaci, deusa da lua e Miguel, o grande anjo do Senhor. Mas isso é história para outra hora.

Em um dado dia, em que Guaraci, o Sol, reinava plenamente com os seus poderes, os estancieros decidiram fazer um torneio de corrida de cavalo.

Se juntaram ao redor de uma cancha, vários homens distintos e seus escravos. Porém só dois são importantes para a nossa história.

Miguel era um rapaz negro e forte. Não tinha cabelo nenhum e aparentava uns 20 anos. Curioso um escravo ter um nome, ainda mais de um anjo. Porém Miguel tinha uma vida calma na estância de Antônio, um português de barbas brancas e sempre tinha um cigarro feito de palha na boca.

Já o negrinho não tinha nenhum nome. Esse era o escravo de Tadeu, um espanhol que nunca tirava a cara de bunda do rosto. Os dois senhores eram diferentes entre si. Enquanto Antônio era um homem bom, em público, Tadeu não ligava para nada. Tratava o seu escravo como um animal sem dono.

O Negrinho tinha talvez uns 12 anos. Quem poderia saber? Seu corpo cheio de feridas e com os ossos quase exposto na pele escura, revelava a sua sina. Muito diferente do que Miguel vivia.

Os dois escravos estavam ali para correr montado nos cavalos que seus donos tinham escolhido. Porém antes da corrida, havia tido uma conversa entre os dois cativos.

— Qual seu nome, rapaz? — Miguel perguntou em um bom espanhol misturado com português. Era notório que sua educação tinha sido boa.

— Eu não ter nome, não, irmão! — O Negrinho respondeu com uma voz baixa e trêmula.

— Eu sou Miguel. — O outro respondeu com um sorriso.

— Vosmecê ter nome de anjo? Seu dono ser estranho.

— Não tenho dono, guri. Não sou escravo. Sou um homem livre.

— Livre? Falar como branco. Poder ir onde querer, Miguel? Não ter escravos na estância do teu senhor? Se lembrar do seu nome real?

— Enitan. — Miguel falou.

— Eu nascer aqui, Enitan. Não ter lugar nenhum. Não ter identidade e história. Nós ser diferente e igual.. Eu saber o que sou e você, viver algo que não é.

Naquele dia os dois jóquei disputaram uma corrida. Tadeu apostará todas as cabeças de gado que tinha com Antônio e infelizmente o cavalo do negrinho caiu quase perto da chegada.

O resto todo mundo sabe. A morte e a vingança sempre é contra os mais fracos. Já Enitan viveu mais uns dias na bonança. Mas a história do negrinho que cavalgava com a Virgem Maria corria pelas estâncias. E a causa da sua suposta morte também.

Miguel passou a ver o seu mundo com outros olhos e o espírito do negrinho se tornou o seu guia. Até o dia que Antônio achou que Miguel não tinha mais utilidade.

Conta que Miguel perdeu a visão e uma perna numa luta contra um monstro com uma boca enorme na barriga. Ao voltar para a estância, sem visão e sem uma perna, foi jogado em um rio para morrer. Mas sua história ainda teria sequência.

Foi encontrado por um grupo de mulheres indígenas que montavam porcos do mato gigantes. Ele teve sua visão restaurada em parte. Infelizmente iria ter os olhos vermelhos para sempre.

O tempo passou e Miguel se encontrou com a Morte. Mas ela não surgiu como a versão que conhecia, Iku, mas como Catxuréu. Uma indígena mulher extremamente bela. Estava praticamente nua como qualquer mulher indígena. Mas por algum motivo, Enitan sabia quem era.

— Finalmente veio me buscar? Cortar o fio da minha vida? — Ele perguntou sem olhar a Morte.

— Por que eu faria isso? — Catxuréu quis saber.

— Porque é a morte e tudo que me resta é isso. E por que levou aquele garoto? Por que não levar o estancieiro desgraçado?

— Muitas perguntas, — Catxuréu sorriu. — Então acha que tudo que lhe resta é morrer? Vocês humanos enxergam a vida como uma heroína e a Morte como uma vilã. Porém não há muitas diferenças entre nós duas. Aliás, eu sou as duas. Vida e morte não são antagonistas, mas aliadas. O fim não é o mesmo e nem sempre permanecer vivo é uma benção. Tadeu perdeu tudo e devia a coroa. Agora está tendo uma vida pior do que seus escravos tinham. Já o Negrinho? Possui um trabalho muito melhor agora. Qual dos dois está morto, Enitan?

Um pássaro Saci cantou ao longe. Os dois olharam para o lugar da onde o som veio.

— Os índios acreditam que o Saci traz maldição quando canta. Mas ele só é uma criatura. O que os homens fazem, é que pode ser uma benção ou maldição. Não vim te buscar, Enitan, só te lembrar que ainda não morreu.

Naquele dia Enitan entendeu. Foi ao lado da morte que ele soube o que deveria fazer e ser.

Com benção do próprio Tupã, Jaci, Guaraci e Catxuréu, Enitan perdeu sua história anterior. O mundo passou a conhecer outra história, outro nome.

Um demônio atormentou os estancieros. Dizia que podia dominar os quatro elementos. Antônio acabou morrendo após toda a água e líquido serem retirados do seu corpo. Seus pulmões não tinham mais ar e nenhum gás saia de seu corpo.

Era a obra do Saci.

Maicon dos Santos
Enviado por Maicon dos Santos em 20/09/2022
Código do texto: T7610207
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