A Queda de Lúcifer

O dia era perfeito para a visita de um ser maligno na terra. Era um daqueles dias com cara de “porcaria nenhuma”. Fazia calor e o céu com nuvens que mais pareciam fumaça.

Lucibelle escolheu roupas nem um pouco especiais para dar uma voltinha profissional. Ok, ela foi trabalhar. Cabelos castanhos cacheados e bem volumosos, mas, hoje, amarrados fazendo com que todo o volume esteja para trás, rosto fino e com maquiagens nada destacantes, roupas de uma garota que ainda não saiu de sua adolescência vestidas em um corpo de 23 anos. Corpo, apesar de atraente, demonstra cansaço em sua postura. Talvez fosse um mal dia, uma péssima semana, um mês horrível… ou uma vida errada.

Estava farta de ter que fazer sempre as mesmas coisas. De poucos amigos, só podia contar de verdade com a sua mãe. Sua profissão e o meio onde atua profissionalmente não lhe davam boas opções com as quais ela podia contar. Esses e outros motivos não te davam vontade nem de sequer fazer um jogo de adivinhações, onde a pergunta seria qual era a sua profissão. Calma, não era nada ilícito, mas deixemos isso de lado.

Seu pai teve que abandonar a família, mas deposita verbas mensalmente para sustentar a família que deixou para trás. Ela não o culpa. Não vê outro jeito, já que o pai resolveu amadurecer tarde demais.

Uma moça cansada. Pensa várias vezes ao dia, de uma forma fria, que o suicídio poderia ser a resposta para muita coisa. Poderia ser o início de uma outra vida em outro mundo. Poderia ser algo que mudasse o curso do mundo, fazendo com que ele se transformasse em algo menos odiável. Podia ser o melhor presente que ela poderia dar à sua mãe. Podia ser o fim... e só. Era um assunto que não lhe causava sustos ou medos. Se um dia um carro totalmente desgovernado fosse p/ cima dela, simplesmente o deixaria acertá-la, mas não era algo que ela se daria ao luxo de forçar para que acontecesse.

O que importa é que no seu caminho para o trabalho, depois da pausa para o almoço, enquanto caminhava pela avenida principal da região onde trabalhava, com a mente mergulhada em suas ideias para sair daquela vida, com sua carteira em uma das mãos e na outra uma coxinha de frango com requeijão (parte do seu almoço nada saudável), nem percebeu que as coisas ao seu redor íam mudando, parando, sumindo...

E, de repente, um estalo finalmente fez um som - que não era o da mastigação - sair da sua boca: “AAHH!”

Foi um gritinho bem menininha, que faria qualquer um que a ouvisse duvidar da sua personalidade deveras forte.

Não sabia de onde tinha vindo o barulho, mas isso a fez reparar que o mundo à sua volta simplesmente parou. Já estava começando a contar os segundos para o seu ar acabar, já que o vento também parou. Talvez tivesse morrido e não percebeu, como viu em alguns filmes.

“Você ainda tem muito o que viver, mas essa ainda é uma escolha sua.”

Disse uma voz ao seu lado direito, o que a fez sentir uma pontada de dor na parte esquerda do pescoço ao girar com tamanho ímpeto sua cabeça em direção à voz.

_ O que diabos é você? – perguntou ela já adivinhando que aquele homem era o responsável por tudo aquilo estar acontecendo, já que, além dela mesma, ele era o único que estava atuando no mesmo ritmo de sua consciência. Uma figura com cabelos negros penteados para trás, face jovial, corpulento e vestido como um empresário a fim de lhe fazer uma proposta indecente.

_ O ser humano é capaz de coisas incríveis, assim como adivinhar a resposta em sua própria pergunta. Quem DIABOS sou eu? Sou eu, oras!

Ele soltou uma risada irônica, o que a fez ficar irritada. Pensou em dar meia volta e seguir destino, mas naquelas condições, p/aonde ía? Queria saber como fazer para as coisas voltarem ao normal.

_ Eu não tenho tempo para esse tipo de coisa. Prefiro trabalhar, por mais ridículo que possa parecer. – disse inutilmente. Sabia que teria todo o tempo do mundo, naquela situação.

_ Ora, minha criança... – disse o homem se aproximando, mas ela se afastou o mesmo número de passos que ele conseguiu dar até aí.

_ Não sou sua criança. Bebeu, sr.?

_ Não ainda, mas quem sabe? Não quer ser a criança de um homem bem sucedido?

_ Não, obrigada. Prefiro ser a bem sucedida aqui. Conquistar o que é meu por mérito. P/ mim, seja lá quem você for, essa sua atitude só mostra o quão zé ninguém você é. Que puta de esquina você acha que eu sou para tentar me conquistar dessa forma?

Ía continuar metralhando verbalmente o homem bem sucedido, mas logo lhe ocorreu que estava falando mais do que deveria novamente. Essas explosões que ocorrem na hora de falar o que pensa era algo que ela pensava que deveria mudar. Ainda mais quando acontece com alguém que apenas a provocou na rua, sem conhecê-la e vice-versa. Queria que o mundo mudasse, mas sabia que isso deveria vir, primeiramente, de dentro dela própria.

_ Olha. Sinto muito. – pensando em tudo isso ela se desculpa – Quero continuar minha vida sossegada e p/ isso preciso que tudo isso volte ao normal.

_ Ah, é mesmo? – o homem sorriu mais uma vez de forma cínica – Que tal um desafio? Caso você vença as 3 etapas, você terá meu aval para seguir sua vida...

_ Seu aval? – interrompeu-o a garota, achando aquilo prepotente demais – Você é algum tipo de...

_ Deus? – fez a moça arregalar os olhos com a contra-interrupção – Talvez... Vocês, seres humanos costumam usar muito essa palavra, até em quem não merece nem o termo “demônio”.

Ele lançou-na um olhar. Ela não viu nada além de seus olhos, mas sua mente a fez jurar ter sentido seu corpo queimar em brasa.

_ Você é...?

_ SIM! Eu sou! Em... pessoa, em carne e osso... como você preferir. Mas não chame por Ele. Não adianta nada acreditar Nele agora, minha querida.

Lúcifer sabia o que ela estava pensando. Sabia que usou em pensamentos a expressão “meu Deus”. E ela percebeu que ele sabia tudo o que ela estava pensando naquele momento, mas, por outro lado, isso nada a assustava. Só a surpreendeu.

_ Tá ok! E então o que será de mim agora? Vou ter que participar de seus desafios a troco do quê?

_ Da sua alma, claro. Para sempre! A quero para mim. Você é muito interessante, sabe? Será perfeita para um certo propósito.

Ela soltou uma risada sarcástica.

_ Não estou sendo gentil. – continou – Estou dizendo a mais pura verdade, mesmo você achando que para esses outros seres fantasiados de humanos você não sirva para nada. Para mim você serve. Para mim você...

_ Eu sei que não está sendo gentil. – ela o interrompe, ignorando totalmente a última parte - A começar por estar invadindo a mente de uma mulher.

Lúcifer estala os dedos.

_ Pronto, não estou mais. Aliás, esta é uma das regras do meu desafio.

_ Lance logo este desafio! Preciso tomar meu rumo.

_ Primeiro preciso explicar outras coisas. Uma delas é que se você perder uma etapa, você perderá mais do que o desafio. Caso perca as 2 primeiras etapas, automaticamente será minha escrava para sempre, porém não a livrará de ter que enfrentar a terceira. Por isso, tome muito cuidado. – mais uma vez o sorriso sínico. Ela estava começando a duvidar da autenticidade do homem que se dizia ser o rei das trevas. Como pode ser tão repetitivo?

_ Outra coisa. – continuou – Você não pode pedir minha ajuda. Se o fizer, será o fim de todo o desafio. Você pode pedir ajuda do resto do mundo, até de Deus. Mas já vou lhe avisando que ninguém virá te socorrer.

_ Jamais pediria a sua ajuda. – disse Lucibelle ignorando a última parte. – Mais alguma coisa?

_ Sim. Caso perca, ficará comigo por toda a eternidade. E veja, isso não é tão ruim assim, é?

_ Sim! Não quero ficar embaixo das asas de ninguém assim.

E era exatamente assim como Lucibelle se sentia sempre. Sempre atraiu somente o tipo mais arrogante de homem. Os que não o eram, estavam sempre longe demais do seu alcance. Sempre. Sempre. Aquilo sempre causava feridas no interior da moça, de alguma forma. Ela achava que poderia lidar com isso, só não sabia se iria conseguir fazê-lo para sempre. Sempre. Sempre. E é incrível como o sempre, nesse caso, fica tão íntimo do nunca.

E agora ela não tem dúvidas de que ela é verdadeiramente um ímã para esse tipo de pessoa.

_ Você até agora só demonstrou ser mais um igual à maioria. – começou a criticá-lo – O único diferencial é que conseguiu parar o tempo sem ter me beijado.

_ Se quiser, posso fazê-lo a cada vez que tocar seu corpo.

_ Tá maluco?! – esse comentário a assustou de uma forma atípica.

Lúcifer deu as costas. Parecia esconder algo. O susto da garota foi substituído por um ar de curiosidade. Ela chegou a levantar uma das sombrancelhas e o ouviu dizer:

_ Devo estar, não é? A ponto de te dar a oportunidade de escapar de mim, caso vença o desafio. Seria bem mais fácil se eu apenas dissesse que você só tem duas escolhas, a de ser minha subordinada para sempre ou para além dele, mas...

_ Nem pense nisso! E aliás. Por que eu?

Lúcifer tornou novamente para a garota.

_ Porque você parece ser eficiente e não parece ser o tipo de pessoa que cairá em minhas terras depois da morte, então vim te buscar pessoalmente.

“É, claro. Já que não vou para lugar nenhum depois dela”, Lucibelle pensou.

_ Preciso saber de mais alguma regra? – perguntou a garota, agora um pouco mais comportada.

_ Hmm... A outra regra era simplesmente aceitar o desafio.

_ E eu tenho outra escolha?

_ Sim. Ou aceita, ou...

_ Serei totalmente sua. Não, prefiro pelo menos prestigiar um pouco mais meu tempo livre das suas asas de morcego, mesmo que seja sob tortura.

Aquelas palavras saíram automaticamente de sua boca. Até duvidara se havia realmente pensado nelas. Mas, de alguma forma, ela estava ansiosa para que os jogos diabólicos começassem logo.

Isso o fez dar uma risada calorosa que logo foi abafada por um estrondoso evento. O tempo se fechou, relâmpagos começaram a brandir como se fossem espadas usadas por anjos e demônios em uma guerra astral.

O mundo sendo afogado em escuridão. As nuvens ficando cada vez mais negras e densas transformando o dia em uma noite sem lua em apenas alguns segundos. O vento parecia estar dando sua última rajada, produzindo uma sinfonia melancólica e aterrorizante ao mesmo tempo, levando as estátuas humanas, carros, cabos de eletricidade... Tudo estava sendo levado embora, menos Lucibelle, que sentiu seu coração acelerar. O espetáculo trevoso havia despertado sentimentos negativos que ela não soube definir. Nem sequer sabia que existiam. Nunca tinha passado por algo parecido.

Sem vê-lo, ela ouviu Lúcifer soltar palavras ao ar:

“Você agora terá que enfrentar os maiores desafios do ser humano: Escolhas, equilíbrio emocional e a resistência. Não tente se preparar, pois não dará tempo. Sua mente terá que ser usada logo no próximo segundo. Que comecem os jogos!”

Lúcifer estalou os dedos, provocando um fenômeno explosivo, fazendo com que tudo desaparecesse.

Lucibelle foi jogada para a escuridão. Não podia ver nem sentir nada externo ao seu corpo. Nunca havia estado em uma situação como aquela, logo o medo começou a causar impacto em sua mente e de repente sentiu cada uma de suas mãos segurando uma outra.

E, mais de repente ainda, estava deitada de bruços, na beira de um penhasco, de olhos fechados, ainda segurando as duas mãos que agora elas pesavam, e sentindo uma brisa altamente quente vinda do fundo do penhasco. Ouviu o choro de sua mãe, que gritava "filha", e um choro desconhecido de uma voz que apenas gritava de medo.

Ao abrir os olhos, viu sua mãe implorando pela vida com os olhos fixados na filha, segurando sua mão direita. Na mão esquerda, estava agarrada uma garotinha. Tinha seus 7 - 8 anos. Olhava para baixo e seus gritos quase ultrapassavam os da mãe de Lucibelle. Abaixo delas, poderia dizer que era algo parecido com um enorme caldeirão de lava quente que iluminava o ambiente rodeado de escuridão. Só haviam a garota, a mãe de Lucibelle, a ponta do penhasco, o mar de lava esperando para cozinhar alguém e a jovem desafiada.

Lucibelle já sabia qual era o objetivo do jogo e mesmo assim Lúcifer surgiu do alto à sua frente, pairando no ar, querendo lhe propor o desafio.

_ Eis a primeira etapa do desafio. Talvez você já tenha adivinhado que você terá que escolher...

_ Poupe suas palavras. - interrompeu Lucibelle se esforçando para manter o fôlego - Reserve-as para reger as regras da próxima. Essa daqui já está decidida.

Lutou contra as mãos de sua própria mãe e a largou. Esta caiu para o lago borbulhante infernal, gritando em desespero por sentir seu corpo se aproximando cada vez mais da lava, sentindo também o ar cada vez mais quente... Um último grito: “Lucy!”. E sumiu.

Lucibelle agora puxa a garotinha com suas duas mãos, trazendo-na para a ponta do penhasco em segurança.

A menina, ainda aos soluços e assustada, agarrava o corpo de Lucibelle fortemente enquanto Lúcifer vinha se aproximando. Ele se pousou ao lado das duas.

_ Escolha interessante. - começou com um jeito falso de alguém refletindo sobre o que acabara de ocorrer - Típica de alguém que acha estar usufruindo do bom senso que não possui.

Ela o fitou com os olhos refletindo o clarão alaranjado que a lava lá embaixo irradiava.

_ Estava nas regras não poder usar a razão? - ela perguntou ainda esbanjando superioridade em sua voz.

_ Não, não estava. Mas que razão você usou p/ fazer essa escolha?

_ A de que minha mãe já viveu tempo demais nesse inferno de mundo. Seu grito foi doloroso de ouvir, mas agora é a vez da nova geração cuidar desse lugar.

Lúcifer soltou uma gargalhada com vontade, como se quisesse ser ouvido longe dali.

_ Que razão infame. Você não conhece tão bem a natureza humana como eu pensei.

Seus receios começaram a botar suas engrenagens para funcionar. Logo depois questionou:

_ E por que não seria assim? O que a minha mãe tem a oferecer para o mundo só diz respeito a mim.

_ O nada nem sempre é tão ruim assim. O mal, na maioria das vezes, não deixa mais nada exercer a sua função de apodrecer ainda mais o mundo.

Lucibelle notou tarde demais que a garota havia cessado seus soluços. Agora ela já estava soltando silenciosos risos.

Lucibelle afrouxou seu abraço. A garota o olhou em seus olhos a moça. Ela tinha uma cara assustadoramente doentia.

_ E você está abraçando o mal neste exato momento. - Lúcifer disse com os olhos deslumbrando a cena. - Em troca, a vida de sua mãe foi desperdiçada.

A garota soltou uma última gargalhada ainda nos braços de Lucibelle, antes de sumir completamente. A gargalhada só foi se calar depois de alguns segundos após o sumiço.

Lucibelle se levanta impaciente e com uma aparência esgotada.

_ Ok! Vamos para a outra etapa logo.

_ Não está preocupada em saber o que mais você perdeu?

Isso trava até mesmo a respiração da jovem. Havia se esquecido completamente disso.

_ O que eu perdi?

_ O direito de ver sua mãe outra vez, é claro. Mas não fique preocupada. Ela poderá ouvir suas preces do lugar para onde ela irá.

_ Não!

Não conseguia lembrar quando foi a última vez que pensar em perder alguém pesou tanto em sua consciência, principalmente quando se tratava de alguém e não algo. Nunca deu tanta importância assim às outras pessoas que lhe rodeavam. Isso lhe garantia uma vida solitária, aliviada quando sua mãe estava presente. Por menos que fosse alguém que a compreendia, era a única que não a abandonava por nada. Mas e agora? Como conseguiria lidar com essa perda?

_ Sinto muito - começou Lúcifer em falso tom de pena - mas foi uma escolha sua, sem esperar eu dar detalhes do que aconteceria na escolha errada. E assim ela foi feita.

_ Que seja. Que seja. - Lucibelle tentou manter ao máximo sua sanidade. Precisava dela para não errar novamente.

Sem estar segura de que estava preparada para continuar e ainda ofegante, Lúcifer disse retornando ao tom frio:

_ Como nem eu e nem você temos todo o tempo do mundo, continuemos os jogos.

E mais uma vez Lucy sente o mesmo fenômeno de antes. A escuridão e mais nada ao seu redor.

No primeiro instante em que sentiu o vento bater em seu rosto, abriu os olhos.

Estava sentada em um trono. A sua frente havia uma queda raza com um jardim. E mais a frente uma plataforma. Parecia estar suspensa no ar, pois abaixo dela havia apenas um buraco negro. Do lado esquerdo da plataforma haviam duas estátuas. A da esquerda era a de um homem vestido com uma armadura medieval, um capacete e portando uma espada. Nada mais era possível ser visto dele. A do lado direito era a de um homem bem mais alto, ultrapassando os 2 metros de altura e um físico altamente definido. Parecia um ogro, mas seu rosto ainda acusava aparência humana. Usava um escudo em cada antebraço. Uma estátua aparentemente encarando a outra.

O ambiente era aberto. O céu estava exposto, o horizonte revelava o fim de uma tarde. Aquilo era verdadeiramente tranquilizante. Lucibelle estava quase se deixando levar pela vontade de chorar...

“Acho que agora tenho permissão para lhe explicar a próxima etapa, não é?”

Lúcifer surge ao seu lado. Pôde sentir as lágrimas batendo em retirada para dentro de seus olhos.

_ Peço que continue sentada – disse ele ao vê-la fazendo menção de se levantar, mas com cortezia – Você vai precisar continuar nesta posição e olhar fixamente para aqueles dois.

_ E quem são eles?

_ O da esquerda – disse Lúcifer apontando para o homem de armadura – é o guardião que representa o seu lado racional. O da direita – agora apontando para o grandalhão – é o guardião que represanta seu lado emocional.

_ Certo. É uma luta entre os dois?

_ Sim, mas eles terão que ter muito cuidado com você.

_ Por quê? – Lucibelle pergunta tentando ligar o fato de fazer algum mal p/os dois na plataforma com o aviso dado por Lúcifer, de ter que observar os 2 dali e sentada.

_ Suas emoções e sua razão farão a plataforma se mexer. Dependendo do que estiver mais forte dentro de você, a plataforma se inclinará ou para um lado ou para o outro. O objetivo é equilibrar sua razão com suas emoções. Isso não parece ser difícil, porém somente um dos 2 poderá ficar na plataforma.

_ E o que mais perderei, se caso não conseguir vencer esta etapa? - interrogou Lucibelle com um certo alívio por ter lembrado da pergunta.

_ O amor do próximo. Você viverá completamente sozinha e os que tiverem ao seu redor não terão sentimentos verdadeiros por você. Sempre estarão por perto por interesse e/ou necessidade.

_ Hmm... Um preço muito baixo, considerando a minha atual situação no mundo real.

Ela lembrou de todos os colegas e conhecidos que passaram pela sua vida ou ainda fazem parte dela, mas que não passam disso. Nunca são considerados como amigos e também nunca pareceram fazer questão.

_ Você não está ciente do que a vida e o mundo guarda para dar futuramente à uma pessoa como você. Melhor se empenhar.

Lúcifer desaparece de seu lado, reaparecendo próximo à plataforma, de frente para a espectadora.

_ Sem mais delongas - começou a anunciar levantando um dos braços na vertical como se fosse um juiz prestes a dar início à luta - que comece a...

_ Espera!

Lucibelle levantou do trono e Lúcifer ficou imóvel, ainda com o braço direto apontando para cima.

Ela respirou bem fundo. Precisava fazer aquilo para se livrar do mal estar que ainda estava te deixando tonta. Fechou os olhos, abriu os braços e apurou seus sentidos afim de inibir qualquer som que não fosse o do vento e para sentí-lo também. Um ritual que ela mesma criou para casos como esse, em que o sua mente se tornara uma bagunça. Agora precisa da sua sanidade intacta. Não queria perder mais nada. E aquilo realmente foi o suficiente.

Quando terminou, voltou a sentar no trono.

_ Estou pronta.

_ Já perdi a conta de quantas vezes você me interrompeu e, nesse caso em especial, eu deveria puní-la por isso. Eu não disse p/ não pedir minha ajuda?

_ Não pedi sua ajuda. A etapa ainda não começou e você nem moveu uma palha para isso. Muito pelo contrário...

_ QUE COMECE A LUTA!

Lúcifer abaixa seu braço como um machado, dando início à luta e surpreendendo a moça.

As estátuas se quebram e de dentro de cada uma sai um homem, com as mesmas características que tinha sua respectiva tumba, mas agora com suas armas e armaduras refletindo a luz do sol vinda do horizonte. Eles saíram como se já estivessem preparando seus ataques, apenas esperando a ordem para executá-los.

Lucibelle sentiu sua existência balançando de um lado para o outro antes de perceber que os lutadores na plataforma já estavam cruzando seus instrumentos de batalha um contra o outro, jorrando faíscas a cada impacto.

A moça começa a sentir um peso de responsabilidade agora e um certo receio. Viu a plataforma da direita levantar lentamente, fazendo com que o outro lado começasse a descer no mesmo ritmo. O homem de aço já estava beirando a ponta da plataforma com seu adversário castigando sua resistência com empurrões, socos e investidas com os escudos. Na mente de Lucy surgiu o pensamento sobre o que aconteceria se o lutador da esquerda caísse, mas seu coração não parava de bater forte. Estava com medo e com dificuldade para pensar.

"A plataforma está pensa para a esquerda. Se usando a razão ela começa a ceder para a direita, talvez eu consiga centralizá-la e... Centralizá-la! É isso!"

Sentiu suas emoções darem uma trégua graças a ideia que teve e a plataforma foi ficando menos inclinada e, depois de alguns segundos, ela estava reta novamente.

O lutador com armadura conseguiu levar o semi-ogro para o centro do campo de batalha, este gritando de forma ameaçadora.

E ali ficaram um tempo, mas não durou muito. As ideias de Lucibelle estavam acabando e seus medos estavam vencendo novamente. Deixá-los ao centro da plataforma não era a solução. Um deles tinha que cair dela, mas fazer isso é dar uma vitória total para o outro. Não há equilíbrio nisso e a plataforma não parava de oscilar, com seus dois lutadores se gladiando incansavelmente.

"O que devo fazer? Eu sempre busquei isso. Sempre consegui balancear minhas razões com meus sentimentos e agora que mais preciso fazê-lo não estou tendo sucesso."

Não estava tão preocupada quanto ao fato de nunca conseguir que pessoas ditas "verdadeiras" ocupe um espaço perto do dela no futuro. Viveu acreditando que este era seu destino.

Mas a moça afoga seus pensamentos no passado durante alguns segundos, lembrando do que aconteceu em seu último relacionamento, onde teve pelo que se ponderar por ter tido êxito no controle de suas emoções através da razão e que fez Lucy acreditar, por um tempo, que ela podia ser feliz de verdade com alguém.

Lucibelle namorou Denis. Um rapaz rico, bonito e com uma popularidade considerável. Porém, por um deslize, Lucibelle resolveu dar fim a um relacionamento que durou 2 anos e 7 meses. Tempo suficiente para alguém ser perdoado por um erro, mas não quando o erro foi causado contra Lucibelle, principalmente se não foi a primeira vez. A moça sentia que já o perdoara vezes o suficiente.

Quando o término aconteceu, estavam em um restaurante. Um bem requintado e frequentado por pessoas de alto padrão. Escolheram a mesa mais afastada possível, ao lado da janela.

_ Foi sem querer, Lucy! - gritou o ex indignado com o término do namoro, fazendo com que todos os outros clientes do restaurante o olhassem, alguns com olhar de desaprovação, outros assustados.

_ Essa frase já está muito batida. Todos que erram a usam achando que é o suficiente, como servir chá ao invés de um bom vinho.

As frases de efeito que Lucy usava o fascinavam quando eram usadas em momentos mais confortáveis, mas em discussões ele as sentia como lanças perfurando seu peito.

_ Eu me atrasei por causa dos meus pais. Qual é?

_ Seus pais, Denis. Eles são o problema. Está na cara que não vão com a minha cara e, sinceramente, não posso culpá-los e nem obrigá-los a gostarem de mim. E nem você.

Ele pega desesperadamente suas mãos.

_ Você não vai me deixar, vai?

Lucibelle sente a tremedeira das mãos do rapaz, mas continuou firme.

_ Denis, entenda. Não podemos mais continuar juntos. Família é algo muito importante e eu tentei. Foram 2 anos tentando. 2 anos!

_ Sim, mas as coisas vão melhorar para nós. O que devo fazer para você ficar?

_ Infelizmente nada. Eu... A Lucy, que era apaixonada por você, se foi. Você não vai querer continuar com essa que está aqui agora, na sua frente.

_ Como pode ter essa certeza? Ahn?

_ Não queira continuar com alguém que evitará você a todo o tempo, Denis. Você sabe o que isso significa, não sabe?

Denis apoiou os cotovelos na mesa e afundou sua cabeça em suas mãos e assim ficou enquanto a futura ex-namorada olhava de forma perdida pela janela. Alguns minutos se passaram, nada mudou e então Lucibelle levanta da mesa.

_ Tenho que ir. Aqui está a minha parte. – deixou um bolo de dinheiro perto do cotovelo direito do rapaz - Pode parecer que não, Denis... mas eu te amei demais. Mas quer saber? Você merece coisa muito melhor.

Ele soltou um riso sarcástico e não fez mais nada.

Ao sair do recinto, Lucibelle desaba. Ela não o amou demais, ainda o amava. Incrível como ele tinha tudo e agia como se quisesse sempre mais, inclusive quando se tratava de pessoas ao seu redor. Sempre quis estar rodeado de pessoas, não importava de que meio elas fizessem parte, e as tratava da melhor maneira possível. Não era o tipo de playboyzinho mimado e muitas vezes abusavam da sua boa vontade por ser bonzinho demais, em especial seus pais. Ela o admirava por isso. Às vezes até acreditava que formavam um casal perfeito, sendo ele o lado emocional e ela o racional, mas não sabia como acompanhá-lo no restante. Sempre teve dificuldades em se associar. Também não sabia como lidar com a família dele, pois a achavam estranha e sempre o quiseram com uma moça de família, alguém com status. Alguém que pudesse dar a ele muito mais do que ele já tinha. Pareciam sempre ter um plano para estragar o relacionamento deles. Algo que nunca foi comprovado completamente, por outro lado talvez nunca foi preciso provas concretas.

Encarando isso tudo, acabou se sentindo como alguém que não valhia a pena para ele. Por isso o deixou. O largou. Não o fez porque a situação estava ruim. Sua mãe lhe ensinou que esperar pelo pior é pessimismo e considerar a hipótese do pior existir é algo totalmente diferente. É algo... racional. E ela não conseguia ver futuro na relação que Denis insistia em manter com ela, pois haviam no caminho os piores obstáculos de todos em um namoro: os outros.

“Me perdoe, Denis. Eu o amo demais, mas você definitivamente merece alguém melhor... para você. Você não sabe o quão lixo eu me sinto por não ser essa pessoa e talvez você esteja sentindo o mesmo, mas iremos superar tudo isso. Só não faremos isso juntos.”

Ela não acreditava no amor da vida dela, mas acreditava na importância que Denis teve em sua vida. Ela decidiu guardar essa importância dentro dela para sempre, como uma lição para, quem sabe, ensinar para quem precisar, ou até mesmo para si mesma.

Para si mesma...

Ela volta a si. Alguns segundos foram suficientes para recapitular a essência de tudo isso e entender o que precisava.

Os guardiões ainda estavam se golpeando, com a plataforma ainda oscilando, mas a partir de agora as coisas serão diferentes.

Sentiu sua existência se estabilizando. Agora estava no controle da situação.

Os dois lutadores se jogaram para trás. O menor prendeu sua espada no chão. O outro continuou apenas o encarando.

Lucibelle sentiu a coragem fluir em seu corpo. O lado direito da plataforma começou a subir novamente e seu guardião correu para cima de seu oponente como um touro o faria contra um toureiro encurralado.

O homem de armadura correu para a mesma direção, dando as costas para o adversário. Lúcifer observava. Nessa hora alargou o canto da boca em um sorriso quase imperceptível.

Ao chegar quase na beira da plataforma novamente, o guardião da razão se virou contra o guardião da emoção e esperou até que o mesmo desse sua última investida.

E então o homem dos escudos usa um deles para fortalecer sua investida, mas o homem de armadura resistiu, agarrando-se no escudo que dava metade do tamanho do seu corpo, como se estivessem de igual para igual. Ele se deixou empurrar pouco a pouco e já estava a no máximo um palmo do fim da plataforma.

E assim houve o golpe final, com o homem menor ainda com sua mão esquerda agarrada no escudo do grandalhão e com sua mão direita agarrando as vestes do oponente, na parte da cintura. O ergueu, como um troféu ganho. Agora parecia mais iluminado ainda com os raios do sol que estava a pouco tempo para ser mergulhado no horizonte, irradiando toda a sua armadura de um metal que era difícil de acreditar que existia nesse mundo. O guardião da razão se virou para o buraco negro e se desfez do guardião da emoção que, sem nenhum grito, caiu. Sumiu, deixando para trás o escudo ao qual o outro guardião continuou segurando com sua mão esquerda.

A plataforma ainda estava inclinada, com sua parte direita para cima. O guardião vitorioso, ainda com o escudo, resgatou sua espada e continuou caminhando para o outro lado. A plataforma foi ganhando outra posição. O lado direito continuou a levantar até ficar completamente vertical. E no topo ficou o guardião da razão, com sua espada de um lado e o escudo do outro, se tornando estátua novamente. E o sol se pôs.

Lúcifer surgiu ao lado de Lucibelle novamente fitando a moça com um leve rancor escondido em um sorriso simpático.

_ Parabéns! Venceu esta etapa. Se tivesse perdido, teria virado automaticamente minha serviçal. Torci muito por isso. Você nem imagina o quanto.

Ela parecia estar totalmente recuperada. Sem lágrimas, nenhuma parte do corpo tremendo, tudo sob controle.

_ Seria surpresa se eu não tivesse saído vitoriosa dela. Quando se trata de emoção e razão... Bem, a vida me ensinou muito bem que a razão e as emoções devem coexistir. As emoções são o acelerador, a razão o freio. Assim que se deve viver, não é? Transformando a razão em um guardião para guardar o lado emocional.

Aquilo pareceu ter enchido os olhos de Lúcifer de chamas bem amareladas.

_ Um desperdício! Você é realmente encantadora. Daria uma ótima escrava para os meus propósitos.

_ Não serei.

_ É o que vamos ver. Você não parece estar com problemas para enfrentar o último estágio, então lá vamos nós.

Ao estalar os dedos novamente, Lúcifer lança na escuridão a dama que mais uma vez não consegue ver nada, levando as mãos na altura de seus olhos na intenção de enxergá-las, mas foi em vão. Só enxergava escuridão e nem conseguia ter certeza se suas mãos estavam realmente à sua frente.

Tão de repente quanto da primeira vez, sentiu algo em suas mãos, em seu corpo, na ponta de seus pés. Agarrava com firmeza em algo rochoso e, como se ela estivesse abrindo os olhos, a escuridão começou a se dissipar, sendo substituída por uma visão alpinista. Ela estava escalando uma montanha. Às suas costas, um horizonte com nuvens cinzentas, assim como acima dela. Abaixo a escuridão ainda reinava em um buraco tão sem fundo quanto o da etapa anterior, onde o guardião das emoções fora jogado.

A brisa, por mais leve que fosse, estava ameaçadora dessa vez. Lucibelle sentia que mal começara a etapa e já estava em apuros. Mais uma vez seu coração começa a acelerar, ao mesmo tempo que Lúcifer se aproxima com as mãos para trás, caminhando na horizontal, como se aquele penhasco estivesse na vertical apenas para a moça.

_ Segure firme. – disse ele em tom de falso cuidado na voz - Se cair, será o fim da etapa. E não é isso que você quer, eu presumo.

_ Droga! Diga logo quais são as malditas regras.

Fora derrotada na primeira parte do desafio, saiu vitoriosa da segunda, seu corpo estava disposto a enfrentar a próxima, porém seu estado psicológico ainda estava abalado.

_ Um conselho: Se acalme. Agora é hora de você colocar a prova seu estado mental e físico. Você obviamente precisa chegar ao topo da montanha, mas assim que começar a etapa, dependendo do que passar pela sua cabeça, sua mente vai controlar totalmente seus sentidos e se você não tomar cuidado será inteiramente dominada por seus próprios medos, fazendo com que seu corpo apure seus sentidos para qualquer impacto. Seja ele doloroso, prazeroso, que cause incômodo, etc.

Lucibelle olha para cima e não consegue ver o topo da montanha. Isso a deixa com receios.

_ O que perderei se falhar? – ela interroga, sem sentir alívio dessa vez, por ainda estar hipnotizada com o fato de não conseguir ver a linha de chegada.

_ Praticamente sua existência. Terá total liberdade para vagar na terra, poderá tocar objetos, comer, beber, sentir as coisas, se machucar, mas não será mais vista, ouvida, seu calor não será mais apreciado por mais ninguém. Talvez você nem ligue p/ isso. Se tornará um fantasma que pode ser atropelado na próxima esquina. Não é um sonho? Viver pela terra sem ser notada, sem precisar se preocupar com os caprichos que a vida dos outros poderiam influenciar na sua e, ao mesmo tempo, poder usufruir de tudo o que este mundo tem. Para mim, seria perfeito ter um servo com esse... dom.

A palavra que Lúcifer usou para definir a maldição não empolgou Lucibelle para fazê-la pular direto no buraco negro, ao invés de começar a subir antes que o ser na horizontal estalasse os dedos.

_ Apressada? Então que comece esta etapa. Cuidado com a queda. – Lúcifer estala os dedos.

_ Digo o mesmo. – ela disse sem olhar para o lado - Quem vai cair será você.

_ Estarei esperando lá em cima.

Lúcifer se afasta e some enquanto Lucibelle continua a subir.

No meio do ruído que a brisa produzia, ela começa a ouvir uma música. Era Jazz. Ela procura por todos os lados para onde sua cabeça consegue virar em uma tentativa vã de achar quem ou o que estava tocando aquilo.

Ela detestava Jazz. Seu pai tocava em uma banda de Jazz e Lucibelle gostava bastante do estilo. Depois de um tempo, a única coisa boa que o Jazz trazia para ela era a memória de seu pai. Mesmo tendo se divorciado da mãe de Lucibelle, ele manda junto com a verba uma carta para cada uma, fazendo Lucibelle soltar algumas leves risadas (ele ainda fala com ela como se sua filha ainda fosse uma criança) e sua mãe chorar de emoção.

Mas o Jazz se tornou algo insuportável. Viu os esforços de seu pai sendo jogados no lixo por ver que a indústria musical não se importa muito com o estilo. Pela ingratidão, inclusive, daqueles que fazem parte do meio jazzístico. Pelas traições que amigos que se diziam bem próximos cometeram contra ele e que o fizeram ir p/ bem longe para sabe Deus quando poderá voltar. O jazz, no final das contas, a fazia lembrar da real natureza do ser humano.

A raiva e a tristeza travando um duelo mortal dentro de seu ser. Queria sair logo daquele inferno para abraçar seu pai de novo, mesmo que a vitória sobre Lúcifer não lhe garanta isso.

E então ela sente seu corpo começar mais pesado. Suas mãos parecem estar agarrando rochas engorduradas e escorregadias. O medo começa a possuí-la. Seu corpo começa a tremer quase descontroladamente. Ela desfere um soco na imensa montanha na intensão de canalizar seus pensamentos na dor da sua mão e solta um grito de dor misturado com alívio. Parece complexo, mas dentro de Lucibelle isso fazia total sentido.

Feito! A tremedeira parou e suas mãos não estavam mais escorregadias. Seu corpo perdeu o peso que sentia e então continuou a subir. Decidida e tomando cuidado com seus pensamentos.

O jazz ainda estava soando em sua cabeça. Estava começando a ligar o ritmo das batidas com o de suas mãos e pés na escalada, mas resolveu parar um pouco antes que pudesse levar essa ligação à perfeiçao. Estava cansada e precisava parar. Ela olha para cima e não consegue ver nada além de nuvens cinzentas formando um horizonte junto com o paredão rochoso. Ela pensa que isso é muito estranho, pois já escalou uma quantidade considerável daquela montanha. Alguma coisa deveria ter mudado. Ela faz o ritual de respiração profunda com os olhos fechados novamente. E continua.

“Quero sair logo. Tenho que sair. Preciso vencer... Apesar de ter poucos motivos para tal. Significativos, mas poucos...”

Dúvidas e chateações surgem de sua mente. Para o que ela seria tão necessária para Lúcifer? Para qualquer outro ser vivo ou divino ela seria totalmente descartável ou abusariam de suas maiores qualidades e, assim, não sobrando mais nada dela no final. Qualidades essas que, no momento, ela não consegue lembrar de nenhuma. Talvez nunca tenha conseguido...

Ela sente uma forte dor na ponta dos dedos, como se ela tivesse cutucado algo duro com força, de mão gelada. Deixa uma das mãos agarrada no penhasco e a outra ela examina. Não vê nada, olha para o lugar onde a mão estava e também não havia nada. Tinha alguma coisa errada. Por que tinha que sentir dor naquela hora? Não é possível que seu corpo era tão frágil assim.

A escalada continuou e seus pensamentos de insignificância continuaram torturando-na junto com a dor na ponta de cada um de seus dedos. Ela agarra em uma parte frágil que cede. Por pouco ela não cai no buraco negro. Conseguiu se agarrar com a outra mão, porém o dedo anelar dessa quebra. Ela sente uma dor aterrorizante e ela passa a sentir náuseas. Não conseguia pensar em nada com exatidão, nem no fato de como a dor conseguiu lhe provocar náuseas tão facilmente. Estava suando frio, o vento se ausentou e o jazz continuava a tocar. Especialmente agora, que parecia ser o auge da música onde, o saxofone solava violentamente acompanhado da bateria e o contrabaixo, também violentos.

Lucibelle não conseguia mais subir. Estava ofegante, sentia o suor fazer curva nos detalhes de seu rosto. Fechou os olhos e apoiou sua cabeça no paredão. Tentou ganhar novamente a tranquilidade antes que algo acontecesse, mas mesmo que conseguisse manter a calma novamente... O que viria depois? Parecia não ter fim aquela maldita montanha.

Sua mente estava inquieta. Começou a pensar em sua vida sem a sua mãe, já que Lúcifer já havia prometido que ela não a veria mais. Será que precisava mesmo sair dali? Ganhou o direito de ser amada algum dia, mas quem garantia que isso aconteceria de novo? E como ligaria p/uma coisa dessas sem seus pais por perto? Desespero, culpa, pessimismo, martírios contra si mesma... E de repente aquele buraco negro que esconde o pé da montanha não lhe era mais tão assustador. Parecia até sedutor.

“Pule, Lucibelle. Pule...”

Pôde ouvir Lúcifer sussurrar com empolgação.

Sua mente absorvia qualquer coisa. Eis que surge uma simples pergunta: “Vai perder aqui e virar uma escrava das trevas para sempre?"

E o grave problema estava na expressão "para sempre".

"PARA SEMPRE? DEFINITIVAMENTE NÃO!"

Não queria. Parecia ser a única coisa que lhe restava, mas negava com todas as forças. Se sentia uma perdedora logo de início quando a desafiante era ela própria, mas não era o caso quando a desafiavam. Sempre foi assim a sua vida toda. Naquela hora, ela estava desistindo, algo que não era do seu feitio.

“Se for para perder, que seja da vida. É a ela que eu lanço meu desafio, pois não quero viver para sempre. Você que me desafiou, Lúcifer. Logo é você quem perderá!”

Continuou a escalar. O vento não havia voltado, mas seu corpo não mais suava e parecia estar mais leve, mais resistente. Seu dedo quebrado estava mole, porém não havia mais nem sequer pontadas de dor. A música ainda soava como se estivesse havendo um mega concerto, mas aquilo parecia estar lhe servindo como um motor. Novas ideias começavam a brotar de sua cabeça, novos planos. Era como se ela conseguisse materializá-los ali mesmo, naquela situação. Só não tentava fazê-lo para evitar chateações caso não tivesse sucesso e também por ser algo inútil àquele momento.

Ela sente novamente o vento, só que agora de baixo para cima, o que a faz olhar primeiramente para baixo e, logo em seguida, para cima. Estava perto! Finalmente viu o final do árduo caminho vertical.

Mas para sua surpresa, Lúcifer surge à sua frente da mesma forma de antes, na horizontal, lhe tampando o horizonte lá acima. Ele se agacha para a moça, aproximando seu rosto ao dela.

_ Quero te perguntar uma coisa.

Ela nota uma certa preocupação em seu olhar.

_ Não pode me perguntar lá em cima? Estou quase chegando. – ela diz com uma tranquilidade anormal em seu jeito de falar, dadas as circunstâncias pelas quais ela passou e ainda passa.

_ Se você chegar lá em cima, estará tudo acabado. Preciso lhe perguntar agora mesmo.

_ Então faça.

_ Por que quer tanto morrer? Estou te oferecendo algo novo! Não é simplesmente viver para sempre. Você terá a oportunidade de ver a evolução ou a decadência humana de perto, sem se preocupar em ser engolida por aqueles que são impuros. Terá o poder de fazer justiça com suas próprias mãos, caso sinta necessidade de tal. Poderá ver sua mãe diversas vezes, em vida e morte... Isso eu te prometo!

Ela o estranhou. Esse interesse que ele tinha nela lhe pareceu algo doentio. Talvez as divindades não eram tão perfeitas quanto dizem seus seguidores. Mas ela entendia que uma pessoa qualquer poderia querer tudo aquilo. Naquela altura o seu orgulho já havia atingido um nível tão alto quanto aquela montanha.

_ Não quero morrer de imediato, mas eu quero que a minha consciência suma desse mundo por completo um dia. Talvez eu consiga isso, mas esse será mais um dos feitos que conseguirei com meu próprio esforço. Me tornando sua serva, não conseguirei nem metade disso. E minha mãe... Eu a amo mais que tudo, mas a morte é um destino que todos aqueles que caminham por aquelas terras terão de enfrentar. É a única certeza que temos nessa vida, não é? Apenas não parei ainda para pensar na minha vida vendo quem eu amo indo para bem longe de mim, para onde eu perderia totalmente o contato com ela. Mas depois disso aqui, com certeza o farei.

_ Então te pedirei apenas mais uma vez: Fique.

Ela respira, abre um sorriso e responde:

_ Não.

Lúcifer levanta e a escuridão toma conta do céu também. Lucibelle se sente intimidada.

_ Cansei! – ele solta em um berro – Vai para o inferno!

A montanha se desmonta. A moça cai. Ela fica desesperada, vê tudo se desfazendo, parecia que até a escuridão se desfazia. Via apenas Lúcifer entre os pedaços da montanha, se distanciando a medida que seu corpo era levado pela gravidade para o fundo desconhecido.

_ Mentiroso! Desgraçado! Trapaceiro! Eu ía vencer! Como pôde?! COMO?!

Ela solta um último grito: “AAAAAHHHH!”

E acorda. No meio da calçada, na avenida onde fica a empresa onde trabalhava. O tempo está ensolarado agora.

Estava desnorteada e sua vista foi ficando menos turva a cada segundo. No mesmo ritmo, sua audição foi retornando.

Quando se viu nos braços de um senhor que ela não sabia quem era, no susto acabou o empurrando com certa força, o fazendo tropeçar mas ele não caiu.

_ Não se assuste comigo! – ele a alertou - Você ía cair de cabeça, por sorte eu te segurei.

_ Nossa! – seus sentidos tinham voltado o suficiente para se comunicar e se manter em pé - Mil desculas, senhor. Obrigado por me ajudar... sei lá.

As pessoas ao redor a fitavam com curiosidade. Ainda estava confusa. O que tinha acontecido?

Olhou para o chão. Sua carteira estava caída a alguns metros à frente ao lado da coxinha de frango com requeijão que ela comia instantes antes. Recolheu sua carteira e a coxinha, agradeceu ao senhor, se desculpou novamente e saiu andando, sem entender muito bem o que aconteceu.

Pois é. Ela não se lembrava direito do que havia acontecido. Somente flashes. Era como se tudo isso fosse apenas algo que acabara de passar pela sua cabeça, como um sonho acordado, e que talvez eventualmente ela acabaria esquecendo.

O senhor continuou observando-na. Observou até Lucibelle sumir de vista.

Jesus Cristo aparece às suas costas.

_ Posso te fazer umas perguntas, Lúcifer?

_ Fique à vontade para acabar com a minha existência insignificante, se quiser.

_ Não fale assim, meu amigo.

Lúcifer se vira para Jesus.

_ Não fale como se fôssemos tão íntimos.

_ Que seja, Lúcifer. O que eu quero saber é o que você fará com a mãe dela. E desde quando você lê mentes?

_ Se você sabe a respeito disso, então você sabe também o que Lucy disse sobre todos os que caminham por essas terras. Preciso fazer alguma coisa a respeito de mortes? Acho que você sabe mais do que eu e qualquer um outro ser vivo. E eu não leio mentes, leio comportamentos. Mas explicar isso p/um ser humano dá trabalho e tempo era algo que eu sinceramente não queria ter p/ explicações. Queria que meu tempo fosse só dela.

Jesus solta um riso solidário.

_ Você é realmente o pai da mentira. O anjo caído que, agora, caiu mais uma vez. Como os cordeiros dizem: Caiu de quatro.

_ Eu queria poder rir com você, Jesus. Você não imagina o quanto.

Ele se aproxima um pouco mais de Lúcifer, o suficiente para sua mão alcançar o ombro do amigo.

_ Volte para lá. Não faça mais isso. Meu Pai está furioso.

_ Eu sei que está, mas quem disse que eu ligo? Ser tão semelhante ao ser humano a ponto de me apaixonar por um não é algo que escolhi. Foi o que restou naquele maldito dia. A minha existência está cada vez mais... pesada. Ele sabe disso. Ele sabe! Não sei por quanto tempo mais vou aguentar essa tarefa de balancear as energias. E se quer saber o que eu acho, deveríamos fazê-los lutar depressa. - disse apontando para as pessoas passando que, obviamente, não podiam vê-los - O tempo está acabando.

_ Se acalme, Lúcifer. Não faça nada precipitado e não justifique suas ações com esse argumento! Esse é um assunto completamente diferente. O que você fez foi... muito mais arriscado. Ela quase nem perdeu a memória. Isso a levaria a loucura mais tarde e foi uma sorte dela você ter tido o bom senso de não dizer quais eram suas reais intenções.

_ Como se isso fosse fazer alguma diferença.

_ Faria!

_ Tudo viraria apenas flashes em sua memória. - Lúcifer estava amargurado.

_ Seres humanos são fracos e você sabe até onde eles podem ir com essas coisas. Ela estaria totalmente desacreditada de tudo! Perderia totalmente a vontade de viver nesse mundo fazendo-na passar por tudo isso. Perder a mãe e nunca mais ser amada novamente. Lutar contra seus próprios limites... Eles são importantes, Lúcifer!

_ Repito: Não faria a menor diferença. Ela é diferente. Todos os meus planos deram de cara com um beco sem saída. Ela não é fraca.

_ Não importa! Você não sabia disso antes de chegar até aqui. Em um vacilo, ela não teria nem se livrado de você e nem se tornado sua amada para sempre. Ela simplesmente jogaria sua vida fora e se transformaria em mais uma alma ecoando seus gritos no inferno - seu lar. Estaria ao seu lado, mas não seria nada além disso.

Houve uma pausa. Lúcifer estava olhando para o chão, perdido e vencido.

_ Foi perigoso, Lúcifer. Mas... – Jesus tenta afagar o amigo, mas é impedido.

_ Eu sei! – Lúcifer vociferou - Eu sei... Mas enfim! Me deixe sozinho.

Lúcifer dá as costas para Jesus. Um portal de chamas se abre e ele passa pelo mesmo enquanto Jesus apenas o observa. As pessoas continuavam passando, normalmente. Sem que as chamas pudessem fazer mal algum a nenhuma delas.

“Sozinho, amigo? Não era justamente disso que você estava fugindo?”

Lúcifer chega em seu lar. Ou no inferno mesmo, se preferir. Quente, podre, fétido, horripilante... A cor vermelha predomina o lugar cavernoso, porém amplo. Esse vermelhidão impediria qualquer pessoa normal de enxergar algo a mais de um palmo de distância de sua visão. Os gritos das almas sendo castigadas são ensurdecedores.

O trono estava vago, mas logo foi oculpado pelo seu dono. Sentou-se e bufou. Encostou sua cabeça na parte de trás do trono, retomou à sua real forma e ali permaneceu, acompanhado pelas almas gritantes e de seus pensamentos... e de suas lamentações.

“O verdadeiro inferno não está lá fora, nem aqui neste lugar. Está em um lugar em que ninguém nunca fará questão de visitar: Dentro de mim.”

O Plutoniano
Enviado por Segredos do Orum ao Ayê no Ori em 04/12/2022
Código do texto: T7664439
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