A Quebra do Pacto

Isidora amava poder metamorfosear em vários animais diferentes. Quando estava junto de outras espécies, podia sempre viver grandes aventuras e aprender mais sobre o ciclo da vida. Mas, infelizmente, esse parecia ser o único ponto positivo de ser uma bruxa, porque os seres de sua própria espécie temiam-na.

 

O modo bruxólico de ser era muito diferente do comum na Ilha de Santa Catarina, então muitas vezes recebia olhares tortos devido às roupas que usava ou suas atitudes cotidianas. Esse preconceito com o diferente era comum e não só as bruxas enfrentavam. Por isso, Isidora apenas ignorava e esperava o dia em que a aceitariam do jeitinho que era.

 

O problema maior era entre os cientes de sua condição, todos afastavam-se ao vê-la e ela não tinha nenhuma amiga não-bruxa. O bando bruxólico era mal falado por toda a ilha, acusado das mais diversas atrocidades – sendo elas verdadeiras ou não – e os boatos sempre precediam sua personalidade alegre.

 

Além de ser rejeitada por todos de Nossa Senhora do Desterro, outro desgosto era estar subordinada às ordens do diabo. Nenhuma bruxa gostava dele por causa de seu fedor insuportável de enxofre e até chamavam-no de Bode Cheiroso quando estava longe. Porém, para a infelicidade do clã, as bruxas-chefe não tinham escolha que não fosse obedecê-lo. E ele sempre ordenava que fizessem maldades! Parecia desejar alimentar o preconceito dos manezinhos com o grupo bruxólico.

 

O Bode Cheiroso podia ser a fonte dos poderes de todas, entretanto era também a fonte das suas desgraças. Enquanto outras criaturas do folclore eram amadas pela região, elas eram abominadas e, sempre que possível, tratavam de chamar benzedeiras para atacá-las. Eram cruzes, velas bentas, tesouras abertas em cruz, água benta ou alhos de nove dentes para qualquer direção que ousassem tomar. E tudo o que queriam era se enturmar na cidade.

 

Em uma das reuniões semanais do bando, que aconteciam geralmente na Ponta da Feiticeira, Isidora percebeu que já tinha sofrido demais. Bastava de seguir instruções a contragosto! As bruxas mereciam o livre arbítrio já concedido às pessoas não-bruxas e lutariam por isso. Usando a influência de seu cargo como bruxa-chefe, ela propôs uma rebelião. Por meio de uma votação bruxólica, decidiram romper o pacto com o diabo.

 

O símbolo maior dessa união era o novelo de lã mágico que receberam há muitas gerações. Ele continha a alma de toda a gente pecadora e marcava a liderança da velha bruxa-chefe. Era passado adiante quando a vida dessa chegava ao final. A escolha da sucessora era feita em um ritual bruxólico em que o novelo era arremessado à multidão e as candidatas à vaga deveriam pegar a maior quantidade de fios possível.

 

Era um cargo disputado e muitas bruxas sonhavam em alcançá-lo. Por isso, mesmo cheio de panelinhas e vivendo muito isoladas dentro delas, essa cerimônia de passagem do bastão era mais do que o suficiente para juntar todos os membros do bando. Sendo a mais comum entre as ambições ocupar esse posto tão elevado, nunca foi nada fácil ser melhor do que as outras no desafio.

 

Isidora nem sabia dizer como tinha conseguido juntar o maior comprimento de linha. Seu sonho sempre foi ser uma bruxa-chefe para conseguir unir esse grupo tão dividido e formar uma forte comunidade bruxólica. Mesmo assim, inscreveu-se como candidata apenas por desencargo de consciência, sabia que eram baixas as chances de sucesso. Mas tendo conseguido, precisava honrar o cargo e ir em frente com seu plano de romper o pacto com o diabo. Ela precisava destruir o novelo.

 

Isidora bem sabia que as pessoas e criaturas folclóricas duvidariam do fim do pacto e continuariam julgando o bando bruxólico por muito tempo ainda. Devido a isso, decidiram fazer um grande evento para destruir aquele objeto diante dos olhares de todos. Seria de um simbolismo libertador, com certeza.

 

A divulgação foi tremenda, mas ninguém queria ir à festa do rompimento com o Bode Cheiroso. Todos acreditavam que elas eram traiçoeiras e embruxariam todos os que comparecessem.

 

A tristeza das bruxas foi infinita, todas estavam de coração partido. Sentimentos negativos começaram a brotar dentro delas e uma parte até pensou em não abandonar o Bode Cheiroso mais. Se todos acreditavam que eram malvadas e servas do diabo, para quê tentar ser outra coisa? A vingança tinha um sabor bem mais gostoso do que a rejeição. Muitas das crianças envergonharam-se pela primeira vez do que eram. Por que não poderiam ter nascido meninas normais?

 

Mesmo assim, a bruxa-chefe Isidora não poderia desistir. Não era possível que o destino fosse tão cruel assim com o bando bruxólico, deveria haver uma saída. Todos merecem o perdão quando estão verdadeiramente arrependidos e desejam recomeçar. Aqueles autodenominados mais corretos do que elas deveriam saber disso, ou não seriam tão certinhos assim.

 

Depois de muitos debates e reflexões, chegaram à conclusão de que o único meio para a redenção das bruxas ser levada a sério era enfrentando seu maior medo: as benzedeiras. Essas feiticeiras eram as únicas capazes de reverter as bruxarias e fazer mal ao bando. Portanto, todos acreditariam em uma aliança entre Isidora e uma delas.

 

Era aterrorizante chegar perto da residência de uma benzedeira, ainda mais depois de ter aberto mão de qualquer magia de proteção. Para sua tranquilidade, a atitude estava no caminho correto. Essas feiticeiras eram capazes de sentir a aura das pessoas e percebeu logo as boas intenções da visita da bruxa-chefe. Até retirou do buraco da fechadura a cera de abelha virgem, a qual impedia a entrada caso uma bruxa virasse um inseto penetra.

 

Muito surpresa com sua presença, a benzedeira nem soube direito como agir e ficou toda constrangida. Isidora nem ligou para esse detalhe, não receber nenhuma reza ou benzedura foi a melhor recepção que poderia ter.

 

Sem rodeios, todo o plano foi esclarecido e a feiticeira sentiu-se honrada em ser a porta-voz dessa grande mudança. Seu voto de confiança foi fundamental para convencer as pessoas e as criaturas folclóricas a comparecer ao tal evento de cancelamento do pacto com o diabo e destruição do novelo mágico. Por isso, a bruxa-chefe foi eternamente grata.

 

O sucesso da parceria com a benzedeira gerou muita festa no bando bruxólico. Seu voto de confiança pareceu ser o suficiente para convencer a todos da sinceridade das intenções daquela reunião. Por isso, uma grande quantidade de convidados confirmou presença no evento. Ele seria realizado na praia de Itaguaçu, um dos lugares mais belos da região, assim como o ato que nele ocorreria. Era a esperança de um recomeço, talvez as bruxas pudessem ser amigas das pessoas e criaturas folclóricas do futuro.

 

O clima estava feliz e Isidora nunca tinha visto tanta alegria entre as suas. Momentos como aquele eram responsáveis pela sua realização pessoal. Ter sido candidata à bruxa-chefe parecia um acerto diante daquela animação. Sentiu-se em paz consigo mesma e com as gerações futuras sabendo que o bando bruxólico não mais seria odiado e atacado. Talvez as benzedeiras até compartilhassem o segredo de sua magia depois que perdessem os poderes ao destruir o novelo. Deixariam de ser bruxas e seriam feiticeiras, quem diria?

 

O dinheiro não foi problema. O conselho bruxólico queria fazer algo nos moldes da alta sociedade, todas as criaturas folclóricas teriam do bom e do melhor enquanto elas fossem anfitriãs. E para agradar todo o tipo de criaturas que esperavam, tudo foi milimetricamente calculado.

 

Felizmente, o esforço foi compensado no final. Lobisomens, vampiros, mulas-sem-cabeça, boitatás, curupiras, caiporas, sacis, benzedeiras ou mesmo pessoas comuns, todos estavam com um sorriso no rosto e dispostos a aceitar as bruxas entre as criaturas queridas.

 

Quando o clímax da festa finalmente chegou, os olhos estavam em Isidora. Como bruxa-chefe, seria dela a honra de quebrar o novelo. Todos estavam tensos de expectativa, vidrados nas hábeis mãos da bruxa-chefe, que fazia alguma bruxaria para destruir o novelo. Só que essa situação não permaneceu assim por muito tempo.

 

O diabo apareceu de repente, furioso, entre raios e trovões, querendo saber o porquê da insubordinação súbita de suas servas. Sem que Isidora tivesse tempo de expor sua opinião sobre a situação do bando bruxólico entre os manezinhos, foi transformada em pedra e teve o novelo tomado de si.

 

Ou ao menos isso é o que vocês acham que aconteceu, não é mesmo? Conhecem a história do Gelci José Coelho, suponho? É, eu também. Mas quando a história foi escrita, as pedras já estavam lá há muito tempo, já estavam lá há bem mais tempo que os açorianos e seus descendentes, já estavam lá há mais tempo que os Carijós.

 

As bruxas sim deixaram de existir em Nossa Senhora do Desterro. Esse nome também, aliás. Afinal, você já conheceu alguém do bando bruxólico em Florianópolis? Só que o assassino delas é tão sem graça quanto óbvio e, por isso, deixo para você nomeá-lo em meu lugar. O papel que cabia a mim, combatê-lo e talvez ressuscitar suas vítimas, está feito.

 

Só tenho a dizer que as benzedeiras estavam preparadas para a aparição do diabo e jogaram rapidamente várias benzeduras nele. Entoadas por suas novas parceiras bruxas, algumas rezas foram o suficiente para expulsá-lo e a nova fase inaugurada por Isidora foi um sucesso. Suas descendentes vivem até hoje na Ilha de Santa Catarina, misturadas entre pessoas normais, sem mais sofrer discriminação.