A LENDA DO HOMEM QUE NÃO DAVA "PONTO SEM NÓ"

O meu personagem lendário até seria um ser corriqueiro pela vida não fosse ele o ímpar protagonista da sua fatídica história.

Aparentemente, tratava-se dum homem ainda jovem e produtivo, alguém como qualquer pessoa "normal" do seu tempo.

Nascera numa família descendente de imigrantes para quem a vida nunca fora fácil, época onde sobreviver tratava-se dum árduo trabalho.

Todavia, escondia do seu entorno suas dificuldades advindas das suas origens mais simples, bem como as características mais intrínsecas da sua personalidade.

Assim, brilhava na sua retórica impecável, mas cansativa e repetitiva, sempre se revelando aos incautos um ser imponentemente superior .

Era um homem, a primeira vista, bem simpático, manso e sedutor.

Filho dentre muitos, destoava dos demais irmãos pela saudável ambição de "crescer na vida".

Para tal, na época da sua geração, bastaria estudar bastante , se destacar nos estudos e com toda certeza o caminho do mérito ao esforço estaria garantido.

Era muito inteligente, o que lhe abriria ótimas oportunidades, todavia tal lhe dava o equívoco de julgar-se um "homem grande", de grandeza incomparável e inatingível, que lhe conferiria a falsa ideia do direito de desmerecer os demais seres a sua volta.

Às vezes, dava à plateia boquiaberta a impressão de que o mundo fora construído por ele, mas, aos poucos, a vida revelaria, a todos os entornos pelos quais ele passava, que não se tratava ele dum tão "grande homem' assim.

Postava-se sempre numa linguagem corporal claramente imponente, sua eloquência era incomum e suas narrativas de vida, sempre na primeira pessoa do singular, imperavam com muita frequência nos seus "curriculum vitae" , os que orgulhosamente apresentava pelo seu tempo, tanto na vida profissional como na pessoal.

Julgava-se um líder inato na capacidade de "mandar fazer", porém não era dotado do dom de perceber a capacidade e o talento alheios.

Não lia as leituras de si nos olhos dos outros.

Pendurava o paletó no local do trabalho coletivo mas logo iniciava seus afazeres de interesses puramente particulares.

Não era um ser sociável.

No trabalho, acreditava ele que todos dependiam da sua opinião que, quando dada, mais parecia uma ordem a se cumprir do que propriamente uma sugestão de desempenho em prol do bom trabalho.

Os bons resultados, ele sempre os comemorava como sendo apenas dele.

Passou então, a medida que suas ações não combinavam com seu "portifólio", ser um um homem não muito bem vindo aos entornos que trilhava.

Se num cargo de direção, sabia como humilhar os subordinados e assim, vez ou outra, alguém acima o encampava para vigiar e delatar algum ocorrido dos que trabalhavam a sua volta.

Tornava-se um "laranja organizacional", todavia, sua vaidade não o deixava perceber que era usado.

Os assédios eram a via final comum nos seus caminhos.

Não gostava das mulheres, achava-as traiçoeiras e perigosas. No máximo as considerava um objeto dos seus desejos.

Todavia tinha ele um belo estereótipo para conquistas femininas, sedutor no momento oportuno, mas dizia-se que investia ele nas relações humanas como se investe nas "bolsas de valores" e , assim, passou a ser tido como um homem que não dava um "ponto sem nó". "Nenhunzinho!"

Ouvia-se dizer que tudo na sua vida tinha uma avaliação financeira do custo-benefício, afinal, também era ele um homem dos negócios imperdíveis e das vantagens tributárias inadiáveis...em tudo.

Era incapaz de dar uma esmola no trânsito, oferecer um café a um amigo ou se compadecer duma tragédia humana.

Seus egoísmo e egocentrismo não cabiam no tempo de seu tempo. Saiam pelos poros.

O dinheiro , em qualquer valor nominal, fosse irrisório ou volumoso, era sua única finalidade.

Não aceitava prejuízo algum e seu foco era sempre o lucro, que quando conseguido o revertia no investimento em si mesmo.

Usava o tudo das pessoas - sua energia, seu conhecimento, seu tempo, sua boa vontade, sua comoção, sua caridade- dentro do que poderia lhe render irrefutáveis dividendos de "zona de conforto".

Amigos, vizinhos, familiares, cônjuges, chefes, colegas de trabalho, subordinados, todos lhe eram como "comodities" a serem negociadas em algum momento oportuno da vida.

Economizar, mesmo que fossem centavos, dava - lhe um imenso prazer, não lhe importava onde, com quem ou com o quê.

Porém, ele não se dava conta da progressão da sua tragédia doentia que jamais lhe fora avaliada como grave doença existencial.

E seguia ele...a valer-se das pessoas como se vale duma máquina de fabricação de benesses a disposição dum patrão .

O tempo passou e, aos poucos, o tal homem se isolou nos seus aposentos herméticos, onde o custo de vida lhe aproximasse do valor mais irrisório possível.

Contava moedas para sobreviver com economia garantida.

Fazia contas e planilhas o dia inteiro...já sem perceber que a economia já não lhe garantiria a sobrevivência doentia.

Chegou-lhe o dia que sempre chega: aquele em que economizar já não faz mais sentido algum pelas horas.

Ainda assim, tinha ele um certo medo de pagar pelo ar que respirava, dizia-se.

Ninguém mais o reconhecia...pois já todos sabiam de que se tratava dum avarento, homem anormal só disfarçado de ser normal.

Seu afeto pessoal amorfo, insensível e manipulador, vitimista, de empatia forjada e inexistente, sempre trancafiado em si mesmo, nunca tivera um dono a quem doar...

Todos foram embora espoliados de algum sentimento a melhor.

Um dia, dizem que o tal homem subiu as escadas ao seu aposento, um quarto pouco iluminado, acendeu brevemente a luminária escassa ao lado da cama solitária e sofrida; e, com era do seu costume, logo abriu a janela para o ar entrar e ficou ali, o resto do seu tempo, a fitar a vida passando lá fora...na calçada totalmente alheia à sua existência e à sua trancafiada conta bancária cuja senha ele já nem mais se lembrava.

Conta-se pelas suas redondezas longínquas que , um dia, a despertar já tarde demais, o homem que nunca dera um ponto sem nó, enfim, constatou-se ali, totalmente amarrado para sempre.

Era um homem pespontado.

Nunca se dera conta de que , ao longo do seu tempo, havia dado um hermético nó cego no próprio destino.

Nó que dinheiro algum do mundo conseguiria desatar...a tempo de lhe resgatar a vida já ida, totalmente perdida.