O Supersticioso

“Como o louco furioso que lança flechas incendiárias, setas e morte. Tal é o homem que engana o próximo e diz : Fí-lo por brincadeira”. (Provérbios 26:18-19)

Cada um de nós traz na memória recordações de fatos extraordinários ocorridos nos tempos de infância ou que nos tenham sido narrados por alguém que vivera tais experiências.

Quando criança, tinha eu o hábito de periodicamente visitar meu tio Abelardo, uma criatura simpática. Apesar da idade um pouco avançada, conservava um constante bom humor. Sendo ele aposentado e nada tendo a fazer, muito se alegrava com minha presença.

Mal eu chegava, ia logo perguntando pelas novas. E ele com seu sorriso amigável, fazia suas mensuradas saudações e prontamente convidava-me a sentar ao seu lado e punha-se a relatar as aventuras por ele vividas nas suas constantes viagens, no tempo em que trabalhava como caixeiro-viajante.

- Bem meu filho, “as novas” já não são tão novas, pois já se passaram tantos anos. – Era sempre assim que começava suas explanações.

- Isso ocorreu em 1936. Naquela época, encontrava-me no interior de Goiás, hospedado numa velha pensão. Quando digo velha pensão, quero realmente demonstrar sua aparente antiguidade e sua má conservação. Tratava-se de um prédio de dois pavimentos, que apesar dos maus tratos ainda não perdera seu austero estilo colonial, muito comum no século XIX. Possuía vastos janelões. Sua pintura branca apresentava-se amarelada e suas paredes impregnadas de limo, devido a umidade. A parte interna, também se encontrava bastante deteriorada. As longas tábuas do assoalho estando soltas, constantemente causavam tropeço aos menos atentos. O forro de madeira do teto, devido seu precário estado, também já ameaçava cair.

Mas se por um lado o prédio mostrava-se em mal aspecto, por outro lado, nada devo reclamar quanto aos serviços de mesa que eram sempre de melhor qualidade, pois era a própria dona da pensão, Dona Margarida, que se encarregava da cozinha e confesso que seus pratos eram sempre de esmerado paladar; e além do mais, o preço da estadia era bem módico, o que vinha a me favorecer, pois as coisas no comércio não iam lá muito bem.

Gastava toda parte da manhã tentando vender alguns de meus produtos, e voltava para almoçar sempre depois das 14 horas. Almoçava calmamente e recolhia-me ao quarto para descansar das longas caminhadas, ocasião em que aproveitava para conversar com meu companheiro de estadia, o Francisco, que na intimidade, como acontece com quase todos os Franciscos, era conhecido por Chiquinho.

Chiquinho era um sujeito baixinho, muito ativo e sempre disposto a contar uma anedota ou fazer um gracejo. Passava horas esquecidas arquitetando uma nova brincadeira. Naquela tarde, por exemplo, quando entrei no quarto, já o encontrei e pelo seu sorriso sádico, pude adivinhar que uma grande troça estava por vir.

Assim que meu viu, pôs-se contar o seu miraculoso plano.

- Lembra-se do Almeida?

- Sim; não é aquele português que morava no térreo?!

- Exatamente, ele mesmo, como sabe, o Almeida morou aqui na pensão por muito tempo. Dizem que foi “convidado” pelo marido da D. Margarida a mudar-se, desde que este começou a ter certa desconfiança da amizade que travara com sua mulher. Você sabe como essa gente fala! Outros, porém, afirmam que o Almeida recebeu uma grande herança deixada por um tio que faleceu em Portugal.

Pois bem, hoje pela manhã, eu o encontrei lá na barbearia; enquanto aguardávamos a nossa vez, conversamos muito. E na conversa, disse-me que está hospedado no Hotel Real, aquele hotel de luxo lá da Avenida Principal. Pelo visto agora resolveu esbanjar um pouco de suas economias que, segundo dizem, já vão em muitos milhões.

Quando lhe perguntei por que havia se mudado, disse-me que não suportava mais as constantes aparições noturnas. Pude então constatar que continuava supersticioso como sempre. Foi então que me ocorreu uma brilhante idéia.

Enquanto falava, Chiquinho aproximou-se do armário, abriu a gaveta e do seu interior, retirou algo. Ao aproximar o objeto que retirara da gaveta, pude então identificá-lo. Tratava-se de um boneco “vodu”, daqueles usados em magia negra. Grande foi meu espanto ao constatar que as feições do boneco eram idênticas as do Almeida.

Ao ver-me espantado, Chiquinho começou a detalhar seu diabólico plano.

- Pois é, diz a crendice popular que quando uma pessoa vê sua imagem num desses bonecos “vodu” é sinal de que seu fim está próximo. Dizem também que cada espetada ou qualquer dano feito ao boneco, seu representante sentirá a dor.

Como sei que o Almeida possui verdadeiro horror a qualquer tipo de feitiçaria, ocorreu-me uma idéia de pregar uma grande peça e tentar arrancar-lhe algum dinheiro por intermédio deste boneco.

De alguma forma, tentarei introduzir este boneco em seu quarto; tal será seu medo, que logo oferecerá qualquer quantia pata ter o bruxedo desfeito. É aí, então, que apareço para oferecer meus serviços e um poderoso antídoto, capaz de desmanchar qualquer “despacho”.

Dizendo isso, Chiquinho pegou sua mandinga, embrulhou-a e saiu porta à fora, dirigindo-se ao Hotel Real para concretizar seu maldoso plano.

Confesso que sempre achei suas brincadeiras muito espirituosas, mas essa já tinha passado dos limites da razão. Muito aborrecido pela sua falta de humanidade prevendo as trágicas conseqüências que poderiam surgir, resolvi, então, preparar uma lição para combater o mal.

Tentando virar o feitiço contra o feiticeiro, preparei um boneco com as feições de Chiquinho, coloquei no seu armário e saí.

Mais tarde, voltei e o encontrei alvoroçado com o boneco na mão. Logo que me viu, perguntou:

- Então também resolveu entrar na brincadeira, heim?...

Fitei-o com tal firmeza e espanto, que ele ficou na dúvida quanto a minha culpabilidade.

Tamanha foi sua fúria que pegou a figura de trapo, varejou-a, indo o boneco bater de cabeça na parede. Foi, então, que Chiquinho deu um pulo e afirmou que estava com terrível dor de cabeça. Dei boa gargalhada e disse-lhe que estava auto-sugestionado, e ele insistia que a dor era real. Começou, então, examinar o boneco para ver se a pancada havia provocado outras lesões. Constatou, então, que uma das pernas do boneco estava pendurada, quase separada do corpo.

Quase fora de si, Chiquinho pegou uma agulha e linha e pôs-se a reparar os danos. Em seguida, colocou zelosamente o “feitiço” em uma caixa e saiu em busca de alguém que pudesse auxiliá-lo no sentido de desfazer o “despacho”. Com grande agitação desceu a escada em direção a rua.

No dia seguinte, após o almoço, tornei a encontrá-lo no quarto; passara a noite fora.

Pude, então, notar que já não era o mesmo. Cabisbaixo, sem dizer uma palavra, retirou-se assim que entrei.

Passaram-se alguns dias sem que eu o visse. Olhei seu armário e observei que seus pertences ali já não se encontravam mais. Mudara sem nada dizer.

Ouvi comentarem mais tarde que Chiquinho fora visto perambulando pelas ruas, descalço, cabelos e barbas crescidos e roupa esfarrapada.

Laerte Creder Lopes
Enviado por Laerte Creder Lopes em 27/12/2007
Código do texto: T793129
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