A PRIMEIRA "FAKE NEWS" DE BELÉM

(NOTA DO AUTOR - texto reservado para o primeiro concurso literário de Ananindeua... só agora "descobri" que não poderei participar pois já estou em diversas coletâneas não sendo, por isso, um autor inédito. Fazer o quê ?!)

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A PRIMEIRA "FAKE NEWS" DE BELÉM !

A tarde se arrastava lenta como um riacho preguiçoso e eu, sem nada para fazer, me imaginei "no fim do Mundo", no dia fatal para a humanidade. Eis que me surge a luminosa idéia de desbravar o sótão de nossa bicentenária residência no quatrocentão bairro da Cidade Velha, lá onde nasceu Belém, a tupiniquim "Bethlém", brasileiríssima, explico. Casas muito antigas tinham duas raridades: o porão, abaixo do chão de tábuas e o sótão, este acima do teto, ambos com o mesmo objetivo de arejar o madeirame, retardando ou impedindo o apodrecimento dele. E funcionava !

Me senti um bandeirante, um desbravador com vocação alpinista, ía-se ao teto por um "escadão" colado à parede e ao lado de um "alçapão", portinhola no teto, que era afastada para dar entrada a um corpo esguio, os gordinhos ficavam impedidos de lá penetrarem. Como chegavam as coisas "lá em cima" ?! Por um cesto de vime, vários deles, içados por alguém já naquele "purgatório" das coisas inservíveis. Adentrei de olhos arregalados, mais por receio do que curiosidade, a escuridão protegia aquele paraíso de aranhas e baratas, talvez até ratos. Umas e outras protestaram, baratinhas sendo pisadas por um "Passo Doble", sapatões com "2 dedos" de sola e meio quilo de peso cada calçado, digo, cada pé.

-- "Miserável... arruinou-me a casa que teci por anos" !

-- "Cucaracho maldito, què hace acá" ?!, protestou outra, esta a terceira ou quarta geração de uma barata argentina que se meteu no baú dos meus trisavós, em visita a Buenos Aires:

-- "Soy PORTEÑA, não me ofenda, boludo" !

Acendi o toco de vela que trazia comigo e vislumbrei os diversos balaios ("caçuás", segundo a vovó) com os trecos antigos não mais usados pela família, quase tudo roupas estranhas, inimagináveis no clima paraense. Notei pequena caixa de madeira entalhada, bordas de frisos dourados ainda mantendo vestígios da antiga beleza. Dentro, o de sempre: "photos" de meio século de bondes, pessoas na praça, o casario antigo. Alguns recortes de revistas, os inevitáveis cartões postais bem curiosos e (epa !) uma folha de jornal inteira, com manchete sensacionalista: "A NOVA 'PARADA' DA BERLINDA", de uma certa "Folha do Norte", jornal para mim desconhecido. Desdobrei-o tremendo, relembrei os tempos dos Boletins no Colégio Marista, de padres... até chegar ao texto da manchete reveladora, datada dos anos 1940 e "lá vai fumaça". Por pouco não me jogo lá de cima, desci às pressas, esbaforido, a perigos escada e quase pulei no colo de vovó, 80 e tantos anos de estórias no cérebro enevoado da cabeça encanecida. Precisava saber o que era aquilo ! Vovó perdeu o ar distante, seus olhos pequenos recuperaram o brilho, deu uma gargalhada e me disse, com ar de troça:

-- "Vou lhe contar "essa parada", Luís Fernando" !

Vovó fora "desguiada", transviada, "da pá virada" na juventude, andara até fumando uns cigarrinhos caseiros, "sem marca", antes que o Governo moralizador de Getúlio proibisse seu uso. Vargas ganharia até rua com seu nome aqui em Belém, justo a avenida onde a Santa "subia" há cem anos ou mais, vinda... da Cidade Velha. Iniciou a narrativa:

-- "Seu bisavô Fernando Luís, meu pai, era motorista na Cathedral de Nazareth e foi encarregado, junto com um mecânico, de levarem a nova Berlinda para a Igreja do Carmo, de onde sairia o Círio de Nazaré, 2 dias depois. Eram 3 da tarde, hora da chuva e o Ford-"bigode" furou o pneu bem diante do "Bar AMARELINHO", Na Avenida 15 de Agosto, hoje Pres. Vargas, rota da tradicional procissão. Enquanto o mecânico consertava o pneu avariado, começou a chover... decidiram "salvar" o andor, que ficaria imprestável com a violência do temporal. Levaram a Berlinda para dentro do mal-afamado botequim, "antro de perdição".

"Deram azar... um fotógrafo de Jornal topou com a vistosa Berlinda sobre duas mesas -- na varanda do Bar mal falado -- registrou o fato insólito e criou a manchete escandalosa, a primeira "fake news" da história da Imprensa belemita. Completou "insinuando" que o tal Bar seria a "nova parada" da Santa durante a procissão" !

-- "Mas isto é um absurdo ! E o povo acreditou" ?!

-- "O jornal vendeu feito manga verde... o Bispo ficou muito aborrecido, demitiu meu pai e foi aos Jornais desmentir a estória toda, mas a foto de teu bisavô e do mecânico -- copos de cerveja brindando à saúde da Santa -- rodou o Estado. Foi um escândalo, tacharam o jornal de comunista, de "crente" de ateu e tentaram até depredá-lo" !

-- "E como acabou a estória toda" ?!, questionei atônito.

-- "Pensaram em DEMOLIR o "Amarelinho"... era tarde para qualquer coisa, a "Santa" virou chacota na boca dos detratores da tricentenária tradição. A "solução" foi construir às pressas um tapume que ocultasse o motivo das galhofas de meia cidade, "cathólicos" inclusive. Até Jesus, lá em cima", protestou contra a palhaçada" !

-- "Minha Santa Mãezinha, não vais fazer nada ? Toque fogo naquela joça" !!!

-- Meu Filho, a culpa não foi do Bar, isso não seria justo" !

E vovó finalizou aquele relato inacreditável:

-- "O arcebispo mandou comprar toda a edição nas bancas, assim que soube ! O povo correu à sede da "Folha do Norte" e exigiu ao menos a capa do Jornal estarrecedor... durante a procissão não foram poucos os fiéis -- até então contritos -- que seguraram o riso ao passar pelo tapume denunciador, imaginando o "brinde" infeliz dos "cachaceiros juramentados". Ao ver meu pai na rua gritavam, entre gargalhadas:

-- "À NOSSA... "NAZIIINHA" ! Viva Nossa Senhora de Nazaré" !

"NATO" AZEVEDO (em 23/nov. 2023, 4hs)