Bianca Neves e a Rainha Maria

Nota: Tomei a liberdade de aportuguesar os nomes dos personagens. Tanto os históricos quanto os originais.

 


 

Quando o Palácio de Versalhes foi inaugurado por Luís XIV, os protestos foram grandes. Mudar a corte de Paris afastaria o povo do governo e seria mais difícil de realizar manifestações populares. Não que meros agricultores e comerciantes pudessem mudar a mentalidade do grande Rei Sol. Afinal, a França era ele, não aqueles reles plebeus.

 

Para a festa de inauguração do palácio, todos aguardavam ansiosamente a anunciação da apresentação de balé da tradicional família Lola. Todas as mulheres dessa linhagem, desde Ana Paula Lola, seguiam a vida na dança e via de regra eram fantásticas. Desde a fundação Ópera Nacional de Paris há uns 20 anos, pelo mesmo rei Luís XIV, a posição de primeira bailarina era ocupada pela Lola mais nova. Naquele tempo, tratava-se de Maria Alexandrina.

 

Devido a isso, mesmo sem nenhuma divulgação prévia, todos os presentes na inauguração do Palácio de Versalhes esperavam uma apresentação solo da famosa bailarina. Afinal, vários membros da Ópera de Paris, incluindo seu comandante João Batista Lully, estavam presentes. Havia relatos de que Maria Alexandrina também fora vista.

 

Quando chegou um momento propício para iniciar um espetáculo, as fofocas começaram. Todos comentavam sobre a última apresentação de Maria Alexandrina. Alguns diziam que era a mais fraca da família, uma vergonha para sua antepassada Ana Paula Lola. Outros a defendiam, dizendo que fazia jus a qualquer outra da família Lola.

 

Entretanto, para a surpresa de todos, quando o espetáculo de dança começou, entrou no palco uma novata: Bianca Neves. Os murmúrios foram imediatos, ouso dizer que nem prestavam atenção na apresentação de tão concentrados que estavam nas fofocas.

 

Bianca Neves, coitada, estava dando seu melhor. A dança era o que a libertava desse mundo cheio de regras. No palco, qualquer movimento era liberado e visto como arte, diferentemente da vida lá fora. O absolutismo do Rei Sol cerceava os direitos de muitos, incluindo os dela. Tentava, por meio dos passos de dança, viver aquilo que não podia. Queria mostrar seu sonho ao público e fazê-lo sonhar também. Um passo de dança representava todos os passos reprimidos fora do palco.

 

Foi a mais sortuda das damas quando conseguiu a oportunidade de entrar na companhia da Ópera Nacional de Paris. Com seu talento e treinos rígidos, conseguiu crescer rapidamente lá dentro, mas isso tinha um preço. Ao dar-se por si, estava rivalizando com Maria Alexandrina Lola. Ah, ela não fazia ideia do quão caro pagaria por isso...

 

– Como ousa colocar aquela novata no meu lugar?! – Maria Alexandrina esbravejava com João Batista Lolly nos bastidores.

 

– Você pode ter o sangue da saudosa Ana Paula Lola, mas não está no mesmo nível dela. Os boatos correm. Talvez seja a hora de abrir alas para uma nova dinastia no balé.

 

Maria Alexandrina surtou internamente. Quem era ele para insultá-la dessa maneira?! Ah, se ele soubesse com quem estava falando, não teria essa mesma audácia e temeria irritá-la. Magrelo daquele jeito, poderia beber todo o seu sangue em segundos. Não sobraria nada daquele decrépito para tirá-la de seu posto.

 

Ela seria uma rainha no balé, a Rainha Maria. Assim como sempre tinha sido quando usava outros nomes. Tolos eram os que pensavam que descendia de Ana Paula, ela era a própria Ana Paula. Como seria possível falhar em honrar o próprio legado?

 

Entretanto, uma pequena vozinha na sua cabeça ficava irritantemente comentando que podiam estar certos. Há quanto tempo dançava? Há uns 100 anos mais ou menos, quando ainda se chamava Ana Paula e morava na Itália. O envelhecimento chegava para todos, até para os vampiros, mesmo que sua expectativa de vida fosse maior. Viu a aposentadoria de vários bailarinos quando seus níveis começavam a cair. Foi ingênua em pensar que não chegaria sua vez.

 

Era difícil para Maria Alexandrina calar essa dúvida, mas o fez mesmo assim. Ela ainda conseguia dançar, estava longe de sua aposentadoria. Sua nova identidade precisava, no mínimo, alcançar o posto de rainha. Aí sim poderia pensar em encerrar a dinastia Lola. Se Bianca Neves ameaçava seu posto, então deveria ser eliminada. Ainda não havia espaço para a dinastia Neves prosperar.

 

Luís XIV subiu ao palco após o término da apresentação de Bianca, tinha o intuito de parabenizar a bailarina. Contudo, para seu horror, foi o primeiro a ver o ataque vampiresco. Surgida do absoluto nada, a criatura demoníaca pulou em cima da bailarina e o rei não teve outra escolha além de ajudá-la. Afinal, era só o que faltava posar de covarde! Não havia maior humilhação para um homem, principalmente se o homem em questão era um monarca do calibre dele.

 

Mesmo com sua honra em jogo, ele estava desarmado e era muito mais fraco que a criatura. Assim que percebeu o interesse exclusivo do vampiro em Bianca, pensou com seus botões e saiu correndo. Não podia morrer naquele dia, era muito cedo! Seu reinado ainda levaria décadas, isso ele jurou para os Céus. Seu reinado seria grandioso como o Sol, intitulado astro-rei.

 

No final das contas, ninguém pensou que ele fosse covarde. Todos estavam mais preocupados em salvar suas peles do que em fiscalizar as atitudes do monarca. O palácio foi evacuado, ficaram apenas sete clérigos que rezavam por proteção divina. O rei só esperava que esse novo empreendimento não fracassasse e ele fosse obrigado a retornar a Paris.

 

Bianca Neves não teve a menor chance contra Maria Alexandrina. Quando a quantidade de sangue em seu corpo baixou muito, a bailarina mais nova desmaiou. Seria questão de tempo até que alcançasse o outro plano. A vampira sorriu, finalmente não haveria mais empecilhos para conquistar novamente o título de rainha. Aquela coitada precisava partir a fim de garantir a coroação da Rainha Maria, eram ossos do ofício. Não existia remorso.

 

Ao abandonar o Palácio de Versalhes, a vampira liberou caminho para que a ajuda chegasse. Os sete clérigos que ficaram não perderam tempo em prestar atendimento à bailarina atacada. Também não hesitaram em criar teorias da razão dessa aparição na festa. O rei estaria em pecado contra Deus? Ou seria a Ópera de Paris? Será que a dançarina tinha feito um pacto com o demônio e acabou por traí-lo?

 

Independentemente do que tinha acontecido, Bianca perdera muito sangue. Não havia muito jeito de impedir seu desfalecimento. A única maneira que ocorreu aos sete clérigos foi pavorosa. Imediatamente, olharam para a cruz de Cristo na parede do palácio e pediram sabedoria. Estavam para cometer um crime, mas ela morreria se não o fizessem.

 

Sem demora, um dos sete clérigos foi atrás de João Batista Denys, médico de Luís XIV. Ele estudava transfusão de sangue de cordeiro para humanos, prática que foi proibida na França e o impediu de continuar os estudos. Os resultados incertos justificavam o banimento do tratamento, mesmo assim, era o único meio.

 

João Batista Denys ficou bastante empolgado com a oportunidade de fazer a operação. Por mais que essa empolgação fosse condenável, ele não conseguiu conter o sentimento. Sentia no fundo de sua alma que a transfusão de sangue era algo revolucionário e capaz de salvar vidas, ele só precisava de uma chance de mostrar isso ao mundo. Além disso, se Bianca morresse, era só pôr a culpa no vampiro e dizer que não chegara em tempo.

 

O médico deu tudo de si, pois sabia ser a última oportunidade de mostrar o potencial dessa prática. Infelizmente para ele, a transfusão não foi bem-sucedida e Bianca Neves foi ao outro plano. Os sete clérigos juram guardar em segredo o que ele tinha feito, até porque estavam envolvidos no crime.

 

Enquanto isso, em sua residência em Paris, Maria Alexandrina comemorava o sucesso do seu ataque. Finalmente, o caminho estava livre para mais uma vez ocupar o posto de rainha do balé. E ela conseguiu. Mesmo com os boatos de que o nível da família Lola estava caindo, conquistou o título de Rainha Maria.

 

Apesar disso, foi obrigada a aceitar seu envelhecimento e reconhecer o momento de sua aposentadoria. Quando Maria Alexandrina chegou na idade de se retirar, não apareceu nenhuma filha para continuar a dinastia Lola. A nova identidade assumida por ela carregava um outro sobrenome e um outro objetivo de vida. Afinal, nada é eterno. Nem mesmo a juventude de um vampiro.

 

Alguns sofriam com o envelhecimento, mas nossa vampira bailarina estava tranquila. Aproveitara a juventude e motivou gerações a dançar. Estava pronta para uma nova fase de sua vida e seus desafios inéditos.

 

Todavia, existiam pessoas preocupadas demais com riscos e opiniões alheias. Medos idiotas que as impediam de fazerem o que queriam. Essas envelheciam com arrependimentos.

 

Para elas, era sempre bom lembrar de palavras ainda a serem ditas por Charlie Chaplin. A vida é uma peça de teatro sem direito a ensaios. Devemos rir, chorar, cantar, dançar, viver intensamente. Afinal, nunca sabemos quando as cortinas vão se fechar e a peça terminará sem aplausos.