"A Campeã" = Conto=

- Maria Terezaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa...

O grito corta os ares, desce o morro e alcança Minhoca a poucos metros do asfalto, lá embaixo.

- Puxa vida! A mãe tem que me chamar logo agora que eu ia jogar uma pelada com a turma? Que sujeira...

Não tem outro jeito. O que pode fazer é obedecer. Subir tudo aquilo de novo até sua casinha lá no alto do morro.

Minhoca volta correndo. Fôlego não lhe falta, energia tem de sobra e a flexibilidade...bem, é tanta que lhe puseram o apelido que ostenta orgulhosa. Contorce-se, revira o corpo, dá cambalhotas e põe o corpinho miúdo de dez anos em qualquer posição que deseje. Só a mãe a chama de Maria Tereza. Tirara esse nome de uma velha revista “O Cruzeiro”. Era de uma madama da alta sociedade que colecionava óculos. “Devia ser cega até no olho do...”, dizia o pai de Minhoca.

- Pronto, mãinha.

- Filhoca, vai no asfalto e compra um quilo de batata pra mamãe. Diz pro portuga botar na nossa conta.

Fosse mais velha e Maria Tereza teria se irritado. Porquê a mãe não deu o recado no mesmo grito com que a chamara? Só pra isso a chamara até em cima do morro?

Desce com toda pressa o morro. Os pezinhos miúdos mal tocam o chão, a saia de chita das mais vagabundas sobe à sua cinturinha e o morro some em poucos minutos de descida.

- Seuportugamedáumquilodebatatasepõenacontadamãequeeutôcompressa...

- Ó minina, repita bem devagaire que eu cá não entendi nada do que dissestes.

- Seu Portuga, me dá um quilo de batatas e põe na conta da mãe que...

- Seu Portuga é o diabo que te carregue, ó pestinha. Meu nome é Manoel. Ma-no-el, entendeste? Deu pra aprender, pirralha?

A negrinha sobe o morro com o quilo de carga e logo o desce quase que voando. Não quer perder a pelada, deixar de marcar os gols contra o time dos meninos, confirmar, mais uma vez, sua ascendência sobre eles. É a melhor nas brigas, nas peladas, nas corridas, nos jogos que inventam e também nas respostas rápidas às ofensas com que a brindam de vez em quando.

Deu nove a quatro. Nove a quatro no placar se placar houvesse no campinho pelado que jamais vira grama. Minhoca marcou quatro gols, Cristina três e Suzi Beterraba dois. Os meninos marcaram quatro de pênaltis inventados. Apelação pura.

Sobe o morro ao cair da tarde ouvindo o coro adversário a segui-la, bem de longe:”Minhoca, Minhoca/ Me dá uma beijoca/ Minhoco, Minhoco/ Cê tá ficando louco../. Não liga. Não importa a mínima. As meninas ganharam o jogo e os despeitados, os pernas-de-pau gritarão ainda mais se ela reagir. A molecada continua tentando atazaná-la com os estribilhos que inventam: “Maroca, Maroca/ Maria com minhoca/ Moleza, moleza/ Minhoca com Tereza/

Maria Tereza Minhoca sobe o morro impassível. Aprendera com a mãe que apelidos só pegam em quem se irrita com eles e ela não retruca para não dar prazer a seus adversários. Sorri, simplesmente, e promete a si mesma nova e esmagadora derrota para os despeitados.

Eles, os meninos, sabem que ela não lhes dará o prazer de um palavrão raivoso, uma lágrima de ódio, uma reação qualquer, e partem para novo alvo. Susi Beterraba é boba. Chora e grita respostas raivosas aos moleques, que não querem outra coisa a incentivá-los: “Susi Beterraba/ Mulher do Beterrabo/

Quando o jogo acaba/ Ela vai dar o rabo/”.

Susi esperneia, xinga, chora, atira pedras, e a meninada chora de rir da cara dela.

Maria Tereza chega aos quinze anos. Distingue-se na escola. Nota dez em tudo, o ano inteiro, todos os anos. Também é a considerada sempre a melhor desportista do colégio. Seus recordes são superados apenas pelos seus próprios recordes. Chega a aparecer nos jornais de sua cidade e acaba por tornar-se mais ou menos conhecida no país.

Emocionada, recebe a notícia de que participaria, se assim o quisesse, das Olimpíadas. Claro que quer. Jamais desejara outra coisa na vida com tanta gana, tanta garra, tanto empenho. Queria conhecer outros países, representar seu país, ajudar seus pais. Prepara-se como nunca, corre como uma gazela inspirada e um dia parte para o exterior. O coração mal lhe cabe no peito. Mais um negro representará o Brasil no confronto internacional dos desportistas.

Medalhas, subidas ao pódio, entrevistas filmadas e escritas, palmas, ovações, exclamações de espanto geral. O negro, porém miscigenado, delicado e aquilino perfil de Maria Tereza permanece quase impassível. Apenas seus negros e grandes olhos traduzem um pouco da emoção avassaladora que a possui.

De volta à pátria, é novamente entrevistada, fotografada, aclamada e convidada para muitas coisas com as quais jamais sonhara. Seus olhos são observados pelos profissionais da imprensa. Exploram de todos os ângulos seu doce olhar de vitoriosa e fazem dele sua marca registrada. Foi a única desportista que não chorou em momento algum. Nem mesmo ao desembarcar no Brasil! Os repórteres esperavam o momento em que ela se debulharia em lágrimas para noticiar sua “emocionante volta à terra natal”. Desiludiram-se.

Abraça emocionada o namorado comovido, abraça os pais saudosos, às amigas triunfante, e só começa a chorar de verdade na subida do morro quando todos os antigos “inimigos” cantam em coro: “Minhoca, Minhoca/ Me dá uma beijoca./.

Um dia qualquer de julho de 1981. São Paulo

Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 03/01/2008
Código do texto: T801248
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.