BORGES, CO-AUTOR DO POEMA SUJO?

I – A Conexão Andina

Posso dizer de Ferreira Gullar, que dele guardo uma visão do perfil moicano, com uma pasta amarela nas mãos, numa época em que eu o enxergava de um modo especial, com certo ângulo particular, como ignoro se ninguém o viu assim. Recordo-o de rosto taciturno e semblante indiático, uma figura de todo modo singular, sempre com um ar distante, mas atento por detrás do cigarro, isto é, bagana metade cinza, metade cigarro.

Recordo suas mãos afiladas de tecedor, ossudas e enrugadas, as unhas mal aparadas, como as de um moleque jogador de bola de gude e borroca... Recordo-o na janela do apartamento, admirando o pôr-do-sol numa grande Avenida de Buenos Aires, avenida estirada assim como uma esteira de piaçava parda. Circulando pelas ruas de Buenos Aires, geralmente só, outras vezes acompanhado de vários amigos.

Recordo-o num entardecer quente de março, uma vaga paisagem desértica, olhinhos enrugados, pele queimada como a de um veterano pescador. Recordo claramente sua voz seca, ora pausada, nunca ressentida, ora nasalada, quase sempre amena e simpática. Mais de uma vez o encontrei com amigos – mais de três vezes não o encontrei... Na ocasião minha deplorável condição de brasileño me impedia de ser inserido no projeto, este no qual se presta justas homenagens ao seu poema maior – o “Poema” sujo. Portanto subo no palanque da modéstia para dizer que o meu testemunho será, provável, o mais breve e sem dúvida o mais pobre, posto que anônimo. (1)

Eu também estive em Buenos Aires naquela época, vindo de Fray Bentos. Segui em frente, para chegar a Jujuy, seguindo para Santa Fé, depois para Mendoza e continuando a viagem para San Antonio, Santiago, Viña del Mar, Valparaíso – isso já falando das andanças em Arica, depois Santa Cruz e Lima – uma outra história que decerto não interessa neste breve relato. Em Buenos Aires conheci, por indicação segura, o casal Lando Ypuchi e Delmira, que logo de cara me declaram amor e amizade. Também gostei da pareja e nos tornamos irmãos. Logo encetamos longos papos e sobre Gullar – que sabia por ali – confessou que considerava Gullar não um super-homem, mas “um Zaratustra xucro e vernáculo”.

Desse tempo em diante Lando se tornou meu companheiro fiel, se deu de amores por nossa palestra e – sonhador como eu – passávamos o tempo consertando os enguiços do mundo. Delmira não gostava de ficar atrás, não era seu feitio, tinha tradição liberal e revolucionária, por isso participava de todos os nossos movimentos. Numa dessas caminhadas à toa, costume que tínhamos para despistar os bugres que viviam xeretando estrangeiros que viviam delatando, depois de um dia bochornozo, encerramos tomando café com graspa. De repente, uma enorme tormenta cor de ardósia – dessas que os porteños acham tranqüilas, mas que, mesmo para um carioca é assustadora – tomou conta do céu, animada e tresloucada, como uma megera de cabelos longos desmanchados pelo vento enlouquecido do sul, rasteiro e poeirento, que deixa as árvores fantasmas débeis, muitas folhas e galhos no chão.

Só deu tempo de começar uma carreira contra o tempo, contra a água que chegou, contra os granizos impiedosos, gelados, que surravam a minha pele exposta – já que na tropical Ilha de São Luís jamais tive no vestuário roupas para uma meteorologia daquelas. Portanto eu sofria sempre, meus lábios inchados rebentavam, minha orelha doía, meus ossos sentiam a tortura do tempo como a tortura da carne... Na correria Lando e Delmira caminharam para uma ruela da qual não lembro o nome e assim chegamos ao Café Quebracho, cujo salão, que suportava não mais de dez mesas de pés de ferro, cadeiras de assento de palhinha e encosto alto, estava repleto.

O vozerio do ambiente encheu os ouvidos, mas ninguém se deu ao trabalho de olhar para nós que chegávamos meio molhados, meio atrasados, porque a hora do chá tinha passado e agora só podíamos conseguir para espantar o resfriado era algum vinho tinto ou uma graspa com soda. Lá para o fundo do salão, entre muitas falas, descolei uma voz estranha, logo decifrei que se tratava de um sotaque brasileiro. Claro que me alegrei, mas não me expus, porque aquela outra revolução nos acostumou, depois de muito apanhar, a guardar um silêncio de ouro, verdadeiro oxigênio político que mantém os perseguidos vivos e sobreviventes.

Lando Ypuchi conseguiu uma mesa de dois lugares, uma jarra de vinho tinto añejo, um charuto e antes que começássemos qualquer conversa sinalizei que preferia escutar. Apenas consenti que ele fosse enumerando os conhecidos e numa mesa de velhos de cabelos brancos e muita fumaça me indicou Jorge Luis Borges – se eu conhecia – o escritor.

– Está velho e cego, só anda com os amigos, sempre com a secretária, mas não dispensa a reunião de todos os viernes aqui. Um charuto, uma copita de málaga e assim vive apesar de tudo em buena charla, sempre alegre sorrindo, depurando a sabedoria que distribui a todos. Ao mesmo tempo localizei uma mesa mista de brasileiros, chilenos e outros latinos – mostrei a ele, aquele ali, de cabelo índio, é o poeta Ferreira Gullar – que ele conhecia – sim, daqui mesmo do Café Quebracho. – Pois saiba que é meu conterrâneo – disse a ele, não foi sem orgulho, não só é do Brasil, mas também é nascido lá no meu estado, o Maranhão, pelas bandas do norte, nordeste, de lindas praias e belas morenas. Que Delmira e Lando Ypuchi nunca ouviram nem falar. (2)

Também quanto à presença de Gullar foi preferível não abrir o jogo. Era 1975. Estávamos no exílio, enquanto isso na nossa terra tudo acontecia. De algumas coisinhas a gente sabia. Que Chico Buarque recusou ser “símbolo” da resistência ao regime (não é mesmo o estilo de Chico posar de mártir). Que ele havia feito um show com Maria Betânia no Canecão, mas preferia viver em recolhimento, escrevendo, amando, compondo. Assim saiu a música “Tanto mar”, uma íntima saudação à Revolta dos Cravos que havia estalado em Portugal. Escreveu com Paulo Pontes “Gota d'água”, baseada na adaptação de Oduvaldo Vianna Filho. A peça ganha o Prêmio Molière, mas Chico não foi à cerimônia de entrega do prêmio, depois compôs “Vai trabalhar vagabundo” para o filme de Hugo Carvana. Deu notícia que Murilo Mendes morreu em Lisboa e logo Drummond escreveu: "Peregrino europeu de Juiz de Fora,/ telemissor de murilogramas e grafitos, instaura na palavra o seu império".

Dias Gomes roteirizou a novela “A Saga de Roque Santeiro e a Incrível História da Viúva que foi nem nunca ter sido”, baseada em “O berço do herói”, que como esta foi logo proibida e censurada. Motivo: “A novela contém ofensa à moral, à ordem pública e aos bons costumes, bem como achincalhe à Igreja”. A Livraria Muro liderava o agito cultural, promovia eventos culturais, encontros de escritores, fazia mil lançamentos, importações de livros, literatura marxista e outras que a ditadura proíbe. Entretanto, "Pau de arara, a ditadura militar no Brasil", editado pela Maspero na França, por ter capa verde-amarela, pôde circular. É que às vezes a PF apreendia todos os volumes de um lote, só porque os livros tinham capa vermelha! A novela Gabriela estoura a semi-nudez morena de Sônia Braga (Gabriela) e Ana Maria Magalhães (Glorinha). Angelo de Aquino troca Milão por Ipanema, Tom Jobim lança “Urubu”, Cacá Diegues filma Chica da Silva, Hugo Carvana adota a TV como arte, a troupe “Dzi Croquetes” faz sucesso em Paris, Rubens Gerchman assume o Parque Lage, Glauber Rocha é execrado por aproximar-se de Geisel, Zuzu Angel enfrenta a tudo e a todos para encontrar seu filho Stuart, Vinícius de Moraes troca Gesse por Martita. Tudo acontecia no Rio de Janeiro, por isso era mais que triste estar em Buenos Aires à nossa revelia.

Ficamos conversando e naquele momento a conversa mais importante era a vida de Lando, como ele confessou as traições, os tropeços e pescoções que seus pais levaram nas manifestações políticas, pois todos os seus familiares eram peronistas arraigados, mas sempre operários. E como, por isso, seguiu os passos da família e andava sempre em busca de perseguidos políticos para proteger – no que ele podia, claro. Essas coisas todas ele me falou. Mas nada parecia com a outra vida ali à sua frente. O tratamento doméstico decerto era similar, mas fora isso nosso convívio, nosso sistema educacional, até o nosso fanatismo não era por personalidades como Perón e sim por regimes. Regimes ideais de felicidade, igualdade e fraternidade – essa herança francesa que entrou no sangue brasileiro. Ainda hoje temos absoluta fé que aquilo que nos rege – bem ou mal – é o regime, o sistema. Os políticos são apenas fantoches de um deus dominador do mundo físico e econômico.

Essas e outras razões foram o principal motivo que uniram Delmira e Lando, posto que também ela tinha sua cota de malsucedidos e graves aventuras de sobrevivência, eram de algum modo irmãos fraternos e amantes eternos. Nem então, nem depois, nem nunca eu as coloquei em dúvida. É incrível que ninguém jamais fizesse referência ao fato de que vivemos adiando o que é adiável. Pensando que somos imortais, que tarde ou cedo todo homem realizará todas as coisas e saberá de tudo nos torna invencíveis? Claro que não!

As atividades políticas do casal datavam do movimento de 1968 em Paris. Ali atuaram por seis meses, antes de ir para Santiago do Chile, se filiar ao MIR. Depois da queda de Allende, Delmira esteve presa no Estádio Nacional. Conseguiu sair e retornou a Buenos Aires, onde reencontrou Lando. Muitos foram os despistes que encheram essa travessia: boatos de que estava morta ou detida num presídio de mulheres. Jornais franceses noticiaram que Delmira havia sido presa pelo governo argentino e sido entregue à polícia chilena. O MIR denunciou que os militares argentinos haviam detido Lando e Delmira e entregue o casal ao governo de Pinochet. Outra informação dava conta que Delmira sofria perturbações de ordem psíquica e que estava internada numa clínica situada na Calle Victorya.

Continuei a relatar ao casal amigo algumas afinidades entre mim e Gullar. – Posso dizer que, como Gullar, também freqüentei o Calabouço, no Rio de Janeiro, que era a sede de cursos, da UME, restaurante, dormitório, reunião de várias entidades estudantis – que ficava ali perto do Aeroporto Santos Dumont, bem próximo também da Casa do Estudante, na esquina de Avenida Churchil com Rua Santa Luzia. E ali cheirei muito gás lacrimogêneo, ganhei muita porrada e tive meu nome levado com os arquivos do Calabouço quando da última investida policial que finalmente encerrou as atividades daquele centro estudantil.

Então, revendo Gullar numa outra dimensão, noutro espaço, não sei se a imagem de um passarinho engaiolado cai bem para descrevê-lo. Pode ser muito pífia, muito chã, mas é a que tenho da infância, quando chorei ao ver meu pai soltar todos os meus passarinhos. Vi com os olhos mareados as pipiras, os bigodes, os canários do ceará, voando livres sumindo entre o arvoredo, mostrando todos eles uma alegria que me chocava, considerava aquilo como a mais pura ingratidão!

Foi com esse sentido que comecei a freqüentar o Café Quebracho, em Palermo Viejo, até a me chegar mais para o grupo de brasileiros, que nem sempre tinha a presença do poeta Gullar. Por outro lado, o casal Lando sempre me convocava quando tinha tempo – pode-se dizer que era um apaixonado pelas coisas do Brasil, nem mesmo o futebol renegava – fazia questão de afirmar que sempre achou nossos jogadores superiores em qualidade – coisa rara em se falando de um porteño.

Sob a batuta do Señor Recabarren, com o corpanzil quase sempre coberto com um poncho, ali se tomava o melhor café de Buenos Aires, cujos grãos tostados vinham direto de uma fazenda cafeeira de Cali. Servia-se também bons vinhos tintos do Valle Inclán e as cepas de verão das encostas de Mendoza, servidas mais frias que o comum. Os charutos eram trazidos das pequenas fábricas independentes que sobrevivem na fronteira argentino-gaúcha.

Na mesa dos “gringos” predominavam os brasileiros. O destaque – além de Gullar e do chileno Skarmeta – ficava por conta de Vinicius e Toquinho, que naquela época estavam apresentando shows com suas últimas composições em Buenos Aires , geralmente em bares e teatros de caráter intimista. Destaque incontestável para os sucessos “Na tonga da milonga do kabuletê” e “Tarde em Itapoã”.

Logo depois chegou Borges, com uma bengala escolhida entre muitas da sua coleção, vestindo um sobretudo de estilo tradicional. Ele foi recepcionado à porta pelo Señor Recabarren com sua turma, na qual se incluíam Bustos Domecq, Bioy Casares, Maria Kodama, Martínez Estrada, Benito Suárez, Lynch Davis, Gervasio Montenegro e outros. Todos foram recebidos com entusiasmo, com reverência de inúmeros saludos e alguns aplausos isolados, agraciados pelos freqüentadores presentes. (3) A mesa de Borges era concorrida e a conversa era interrompida com freqüência, ora pelo cumprimento exaltado dos que chegavam, ora pela despedida carinhosa dos que saíam – o que demonstrava todo o amor que os porteños sentiam por ele, uma unanimidade nacional. (4)

De longe se ouvia a voz roufenha de Borges. Ele contava, pela enésima vez, como solucionou um crime antigo, mostrando o que todos sabiam: sua queda por coisas misteriosas, de causa natural ou não. Há uns anos atrás – dizia – numa viagem de trem que fazia entre Buenos Aires e Mendoza, quando – na estação de Córdoba – a viagem foi interrompida. No vagão dos correios havia ocorrido um assassinato duplo e o roubo das malas postais que continham mais de dois milhões de pesos. Borges foi ao local do crime observando tudo e quando menos se esperava, igual a um Sherlock gaucho, chamou o chefe de polícia a um canto e com meia dúzia de palavras deu todas as pistas para solucionar o crime. As ordens foram dadas, os cadáveres foram retirados e a viagem prosseguiu. Antes de chegar a Mendoza, Borges recebeu mais uma vez a visita do chefe de polícia, desta vez entre sorrisos e calorosos apertos de mão. O criminoso foi preso e apesar de ser de importante família política, julgado e condenado.

Os brasileiros, como sempre, eram de arrumar discussões inconclusas, o peculiar jeito de saltar de um tema para outro sem mais nem menos, de falar alto e soltar vastas gargalhadas. Com a presença da dupla formada por Vinicius e Toquinho, em pouco tempo a mesa se transformou em palco e todos estavam cantando. Foram muitas as reuniões de Gullar com os brasileiros que passavam por Buenos Aires – isso trazia sempre um ânimo renovador. Algum tempo depois Borges chamou o Señor Recabarren para saber quem eram os componentes daquela mesa barulhenta e quando tomou conhecimento do nome de todos que estavam ali, de imediato pediu que os convidassem a participar da sua mesa. Señor Recabarren em pessoa foi fazer o convite, acedido prontamente, tratando de juntar o grupo de mesas. Logo depois das apresentações de praxe o que se viu foi uma discussão superior às acadêmicas, na qual prevalecia o caráter e a nacionalidade da América Latina. Em algum momento foi posto em destaque a lástima do fato, trágico, que era estar a região submersa em governos autoritários e déspotas, fosse causador, sin embargo, como alguém ressaltou, desse memorável encontro – absolutamente inconcebível em outras circunstâncias.

Se existia uma mesa mais barulhenta do que a dos brasileiros, essa mesa era a dos milongueiros. Ficavam lá para o fim do salão, unidas duas ou três mesas, encostadas na parede. As cadeiras se espalhavam em volta e não era raro ter gente rondando em torno ou ouvindo a conversa entre um cigarro e outro. Chegavam aos poucos, mas em pouco tempo se multiplicavam como moscas no lixo. Eram os aficionados pelo tango que ali faziam uma preliminar antes de se dividirem entre as várias casas de tango e milonga nos arredores. Nesse caso, o tango – como a milonga – era cantado apenas com o acompanhamento do violão, à moda antiga, mais ritmado, volta e meia em solos curtos, deixando à voz o principal papel. (5)

Era raro alguém chegar com um badoneón, quando isso ocorria era tocado em surdina, um fiapo de som que invadia todo o salão e acabava por calar todo mundo: agora eram dois instrumentos – bandoneón e voz – que dividiam entre si os aplausos incontidos dos presentes. Quando Borges chegava com a sua turma era já uma tradição a aproximação dos milongueiros à sua mesa para prestar uma singela homenagem ao grande poeta porteño. Borges, é claro, se orgulhava desse reconhecimento porque, tendo algumas de suas poesias sido musicadas por compositores de milongas, também ele se considerava um poeta da milonga. Mas a verdade é que Borges não gostava do som choroso do bandoneón (instrumento importado da Alemanha), talvez por alguma lembrança de um poema arrependido, Remordimiento (escrito logo após a morte da mãe), cujo tom “sensiblero y llorón” se aproxima muito das letras de tango. Para ele o tango ou a milonga só o violão como acompanhamento bastava. Gostava de poucos tangos, à moda antiga, cujas letras não eram tão afetadas, chorosas e trágicas. (6)

Um dos tangos mais apreciados por Borges era “Yira yira” de Enrique Santos Discépolo. (7) Não obstante o tom dramático que a letra tratava do cotidiano – ou talvez por isso mesmo – Borges considerava a letra de “Yira yira” recheada do surrealismo mais puro:

Yira yira

Cuando la suerte qu' es grela,

fayando y fayando

te largue parao;

cuando estés bien en la vía,

sin rumbo, desesperao;

cuando no tengas ni fe,

ni yerba de ayer

secándose al sol;

cuando rajés los tamangos

buscando ese mango

que te haga morfar...

la indiferencia del mundo

-que es sordo y es mudo-

recién sentirás.

Verás que todo el mentira,

verás que nada es amor,

que al mundo nada le importa...

¡Yira!... ¡Yira!...

Aunque te quiebre la vida,

aunque te muerda un dolor,

no esperes nunca una ayuda,

ni una mano, ni un favor.

Cuando estén secas las pilas

de todos los timbres

que vos apretás,

buscando un pecho fraterno

para morir abrazao...

Cuando te dejen tirao

después de cinchar

lo mismo que a mí.

Cuando manyés que a tu lado

se prueban la ropa

que vas a dejar...

Te acordarás de este otario

que un día, cansado,

¡se puso a ladrar!

Essa letra, realmente cheia de elementos surreais, ainda que urbanos, serviu para levar ao ridículo o escritor español Francisco Umbral tudo por causa de um versículo que incluiu no seu “Diccionario para pobres” (Sedmay Ediciones S.A., Madrid 1977, Pg. 183), aquí citado verbis:

“YIRA. Realmente, no se sabe quién es Yira. El nombre sale en un tango argentino muy famoso. Y el cantante del tango, que suele ser un señor muy desafortunado y con poco sueldo, le dice: “Verás que todo es mentira, verás que nada es amor, que no se encuentra en la vida, Yira, Yira, una mano, ni un amigo, ni un favor”. Vale. Es verdad. Es Nietzsche con música del suburbio de Buenos Aires e los acordeones de Palermo. Es Heráclito pasado por Jorge Luís Borges. Pero ¿quién coños es Yira? “Cuando no tengas fe ni yerba de ayer secándose al sol, cuando estén secas las pilas de todos los timbres, que vos apresentás...” ¿Quién es esa Yira que ha perdido la fe, que ya no va a misa ni al estanco, sino que fuma yerba de ayer puesta a secar al sol, que ya no toma el mate en la pastelería, con Gardel y Cortázar, sino que se lo fabrica ella misma, que se pasa el día apretando timbres para fastidiar al vecindario, y ya ha secado las pilas? Yira. No sabemos quién es Yira, pero nos gusta ese tango, como casi todos los tangos, y nuestra gran frustración, che, es no conocer a Yira, y que se deje de pavadas y andar poniendo porquerías al sol, faltando a la misa tan linda y tocando timbres en vez de llamar por el teléfono de góndola recién”. Sem comentários…

No princípio da carreira de Astor Piazzolla (que Borges apelidou de “Pianola”, fazendo gozação das estruturas pianísticas e sinfônicas que o compositor elaborava), o poeta cismou com seus tangos “que não eram tangos”. Depois do reconhecimento internacional de Piazzolla, Borges se deu conta que não poderia ignorá-lo: o poeta escreveu algumas milongas e também muitas letras para compositores de tangos. Por fim, acabou por se entregar ao tango moderno e entrou com Piazzolla em estúdio para gravar vários discos com tangos compostos de suas letras, como também vários poemas recitados com trilha musical exclusiva para a ocasião.

II – Intermezzo para lembrar Mirna

“Estamos hablando del compañero Jorge Julio López, el testigo en la causa contra Miguel Etchecolatz. Represor que sigue gozando de buena salud, mientras este trabajador de la construcción, honesto y valiente, sigue desaparecido. Desaparecido en 1976, desaparecido en 2006 y vuelto a desaparecer por la actitud desapacible y responsable del Estado, los medios de comunicación masiva, que induce al olvido a la opinión pública y, sólo en algunos sectores del movimiento obrero se lo recuerda, se exige su aparición”.

Estávamos eu, Lando e Delmira, vasculhando uma livraria em busca de novidades quando Mirna entrou. Ao se verem – ela era velha conhecida do casal– Delmira e Mirna correram a se abraçar como amigas íntimas que não se viam há muito tempo. Depois que fui apresentado, a conversa correu mais animada, já que Mirna sempre tinha informações quentíssimas e notícias políticas frescas. Ela trabalhava na redação do El Clarín¹ como repórter e revisora, além de muitos trabalhos como freelancer em outros jornais e revistas. Fizemos alguma compra na livraria, o que a grana curta permitia, em seguida fomos juntos caminhar pelas ruas. Algum tempo depois, muita conversa tinha rolado, paramos em um café desses de cadeiras na calçada, toldo listrado e muita gente a circular.

Mirna Val (de Valiente), um sobrenome que ela não usava com ela, porque nas raras matérias que assinava – ela na verdade preferia o anonimato da reportagem – firmava apenas “Mirna” ou “Mirna Val” e foi assim que se tornou conhecida no meio jornalístico. Mirna realmente tinha as melhores informações possíveis, porque, trabalhando na redação podia ler que corria entre as agências de notícias, inclusive (e principalmente) o que era censurado pelo governo militar. Para mim ela teve o prazer de dar notícias do Brasil e de muitos companheiros, chegados, saídos, desaparecidos. As quedas, as fugas, as pequenas conquistas, tudo aquilo que muitas vezes chegava até nós como boato, na voz de Mirna tinha fundo de verdade. E nos alegrava e nos entristecia, conforme fosse.

Na saída do café, por algum motivo que hoje não recordo, Mirna me convidou para ir ao seu apartamento e foi nesse mesmo dia que a conheci, que começou nosso relacionamento. Ela morava sozinha, era solteira, não tinha um namorado à vista e nem mesmo foi preciso perguntar esses detalhes. Foi uma coisa normal, que ocorreu num momento exato, porque assim as coisas acontecem e dão certo. E foi no apartamento de Mirna que pela primeira vez em meses pude tomar um banho decente e vestir roupas decentes e cheirosas, as dela, enquanto as minhas passavam por uma faxina geral para tirar o cheiro do uso abusivo e constante. Algumas roupas se mostravam até imprestáveis e foram descartadas por ela, entre chistes e risos. Eram poucos os momentos para sorrir.

“Encapuchados y fuertemente armados, personas de civil, identificados como oficiales de la Policía Federal, golpearon brutalmente la puerta de la vivienda de Salas y Valdez 1.079 del ex senador provincial justicialista Guillermo Vargas Aignasse a las 3.30 de la madrugada negra del 24 de marzo de 1976. Después de avisarle que quedaba detenido, bajo amenazas de armas de fuego, Vargas Aignasse fue encapuchado con la funda de una almohada y retirado del lugar. Y luego fue alojado clandestinamente en la Brigada de Investigaciones. Allí fue sometido a tratos crueles inhumanos e interrogatorios bajo torturas y el 31 de marzo fue trasladado al penal de Villa Urquiza en calidad de detenido por orden militar en estado incomunicado. El 1 de abril fue la última vez que Vargas Aignasse fue visto con vida por su esposa, mientras caminaba solo en el patio de la cárcel”.

Acreditem, nos dias em que a barra pesava tínhamos de circular com tanta velocidade que era impossível fazer as necessidades higiênicas de maneira civilizada. Tanto usávamos as mesmas roupas que, por essa causa, muitos companheiros perderam, pois eram identificados pela camisa, pelo casaco, pelo conjunto que usava no momento. Nessas horas limites, eu fedia tanto que nem mesmo eu agüentava. O recurso era usar um banheiro público, dos que não fossem muito vigiados. Eles sabiam que vivíamos como ciganos e assim a vestimenta se tornava um ponto de identificação.

Todos que viveram um pouco esse momento histórico sabem que o pior mal que o exilado sofre é a carência de amor, de afeto, de amigos. Dessa maneira, frágil como todo homem solitário é frágil, foi que passei a freqüentar o apartamento de Mirna. Nossa amizade se transformava em amor e de novo em amizade, numa relação que os amigos Lando e Delmira aprovaram tão alegres, que em nós viram aquela velha história de feitos um para o outro. Além do mais Mirna tinha muitos cuidados para comigo. Devido a minha situação irregular, tomava precauções. Só íamos juntos a lugares cuja segurança era absoluta, sem nenhum risco nem para nem para ela, se fosse o caso de ser pego pela segurança. Se houvesse algum sinal de presença que pudesse pôr minha liberdade em risco ela me afastava logo e saíamos para outro lugar distante e seguro. Muitas vezes retornamos para sua casa, comprávamos vinhos, queijos, salames e – se possível – chamávamos algum casal amigo, de confiança, para se entocar com a gente. Eram noites animadas para esconder os dias tristes...

“Entre el silencio y la angustia, los días van pasando y la oscuridad se apodera de nuestro ser para dar paso a la renovación de nuestra exigencia por la aparición con vida de Jorge Julio López, por el cese de la impunidad y por el juicio y castigo a los responsables de su secuestro. Nuevamente, al igual que los once anteriores meses, volvemos a seguir exigiendo que el Estado asuma sus responsabilidades, que informe acerca de lo que sabe para, al menos, intentar mantener la esperanza viva. La ausencia de novedades acerca de lo acontecido, en este largo período, no hace más que alimentar la zozobra de familiares y amigos por la suerte corrida por el compañero, que declaró valientemente en el juicio contra el genocida Etchecolatz. También para quienes todavía conservan el fuego sagrado de la lucha en estos tiempos discepolianos donde la Biblia se mezcla con el calefón, donde la petición de derechos, y de su garantía por parte del Estado, solamente recibe como respuesta la endiablada represión”.

Também foi assim que retornei aos poucos à civilização, presente que Mirna me deu e que eu aceitei de bom grado. Agora passei a dividir minha vida entre o quarto de pensão e o apartamento de Mirna, lógico, guardando eu também os cuidados necessários para que e vida dela de nenhum modo fosse afetada em razão de minha presença. Por isso na maior parte das vezes nosso encontro era na rua, em apartamentos de amigos seguros, nos bares e cafés, nas livrarias. Ocasionalmente fui à redação quando ela trabalhava até mais tarde, ali podia usar alguns meios de comunicação que me traziam notícias de casa, dos amigos do Rio de Janeiro. Outras vezes, nos fins de semana,fugíamos da cidade para algum bairro distante ou mesmo uma das muitas cidade satélites próximas a Buenos Aires. Uma vez fomos para Entrerríos, outra até Santa Fé, a visitar amigos e parentes dela, sempre amistosos e acolhedores e também, porque não, para filar generosos almoços e o sempre constante vinho caseiro.

Mirna era alta e magra, mas o seu corpo guardava as proporções, de modo que não demonstrava uma magreza assim ossuda. Pelo contrário, seus contornos eram parecidos com o corpo das modelos. A pele muito alva contrastava com a morenice índia de Delmira, ao passo que Mirna tinha o corpo esguio salpicado de incontáveis sinais pretos, de todos os tamanhos. Os seios pequenos e pontudos se misturavam aos sinais de sangue num só conjunto. Muitas vezes eu acordava de manhã cedo – hábito que todo fugitivo adquire e preserva para toda a vida – os raios de sol começando a entrar pelas frestas da janela me davam a oportunidade de observá-la ainda dormindo. Afastava com cuidado o lençol e o cobertor para admirar o corpo esguio, bonito, mais do eu merecia naquele momento.

Uma das particularidades da personalidade de Mirna sobressaía quando o assunto era preso político. Como todos nós ela lutava pela liberdade dos prisioneiros políticos, mas de uma maneira imperceptível e super discreta. Isso explica porque o resultado de sua atuação era muito mais eficiente do que nós poderíamos fazer juntos. Os membros da família de Mirna, de classe média alta, participavam da vida cultural, comercial e social de Buenos Aires. Então o inevitável se deu: quando os militares tomaram o poder e chegou a hora de tomar posição, a família se subdividiu em camadas. Havia aqueles, sendo militares de carreira, não tiveram alternativas senão apoiar o golpe, enquanto que os que pertenciam ao grupo comercial optaram pela continuidade dos negócios fosse sob esse ou aquele regime. Os voltados para os ramos culturais (havia músicos, diretores de cine, teatrólogos, jornalistas), trabalhavam em defesa da legalidade, dos direitos humanos, da liberdade. A discrição – que não se confundia com omissão – com que Mirna tratava desses assuntos, acabou por transformá-la numa profissional respeitada, inatacável.

“El sábado falleció Alberto Argentino Augier (1921-2007), una de las víctimas de los años negros de la última dictadura. Augier había ejercido la medicina y la docencia en su ciudad natal Aguilares. Allí el 29 de octubre de 1976, cuando salía del establecimiento fue interceptado por tres polizontes (la clandestinidad del operativo no merece siquiera llamarlos policías), que luego lo alojaron en el Centro Clandestino de Detención Arsenales Miguel de Azcuénaga, dependencia del ejército argentino ubicado sobre ruta nacional Nº 9 y en ese campo de concentración, fue víctima de torturas físicas y psíquicas. Em marzo de 1977, es arrojado como paquete en la periferia de la ciudad de Concepción. Su coherencia y convicciones democráticas le valió el reconocimiento de la sociedad, al margen de las extracciones partidarias, sean peronistas, radicales, socialistas, comunistas o liberales, que como despedida y a través de las palabras de Eugenio - su hijo menor frente al mausoleo expresó: - Los ejemplos de vida quedan para siempre”.

Quando chegaram as notícias deque se iniciava a abertura política no Brasil, Mirna foi a primeira a me informar. Agora já estávamos juntos há mais de seis meses. Mirna havia conseguido algum trabalho para mim, o que me deu a garantia de uma pequena renda própria. Já não dependia mais das remessas de dinheiro do Rio de Janeiro, das vaquinhas dos amigos, das penduras em bares conhecidos. Entre alguns bicos escrevendo artigos e crítica sobre cinema, teatro e arte, surgiam oportunidades para escritos mais longos: folhetos de exposições, traduções, prefácios de livros, como também uma ou outra palestra sobre literatura brasileira.

Mirna se interessou tanto pelo tema do retorno dos exilados brasileiros, que chegou a escrever reportagens e artigos seguidamente, registrando do certo estardalhaço a notícia de que os primeiros banidos retornavam ao país. E quando chegou minha vez havia aquela expectativa da separação. Mirna sequer cogitou considerar um convite meu para ir ao Brasil. Após tanta convivência com exilados de todos os cantos que chegavam a Buenos Aires – e dos milhares de portenhos que deixavam a sua terra para fugir da teia – ela guardava na própria carne as amarguras e desastres que ocorriam a cada um de nós.

Engrossou o coro que faziam Lando e Delmira alimentando nossa esperança no retorno à terra natal, a certeza de que as instituições iriam se normalizar no Brasil. Mas quando ficávamos sós Mirna se mostrava ora triste, ora alegre, ao mesmo tempo insistia em me transmitir a sua convicção que tudo iria dar certo. Nunca compreendi bem esse tipo de sentimento. Era como se fosse uma missionária que tinha como objetivo o bem estar da pessoa que amava, sem se importar consigo mesma.

“Otro público, más reducido, sabe que hubo un estudiante Miguel Brú, un albañil Andrés Núñez, un joven Sebastián Bordón y varios más. Para colmo el testigo contra el genocida Miguel Etchecolatz. Ahora vuelve al primer plano con el aniversario pero puede que en el futuro se repita el esfumado y así hasta que apenas quede el recuerdo en los núcleos más concientes. El resto andará ocupado con el precio de la papa y el tomate, lo que no está mal pero no debería excluir estas preocupaciones sobre la vida y los derechos humanos. Después sí, hubo numerosos allanamientos y entrecruzamientos de llamadas telefónicas entre los sospechosos del grupo de policías vinculados con el condenado Echecolatz, en Marcos Paz. Pero ya era tarde. Esas actuaciones siguieron revelando complicidades del aparato policial: 9.000 policías ingresados durante la dictadura seguían prestando funciones actualmente. El Servicio Penitenciario no es ninguna pinturita democrática y su jefe perdió el cargo, se supone porque hombres bajo su responsabilidad avisaron a Etchecolatz de los allanamientos que habría en la prisión”.

No aeroporto nos despedimos da maneira mais carinhosa possível. Tapava a minha boca com a mão toda vez que iniciava algum agradecimento ou alguma sugestão de reencontro. Mirna parecia ter nas mãos o controle do destino, de tal maneira eficiente e corajosa, que só podia ser coisa consangüínea, vindas dos seus ancestrais. Queria se despedir da mesma maneira natural como me conheceu na livraria. E assim foi. Depois de algumas poucas cartas e telefonemas trocados espaçadamente nunca mais tivemos notícia um do outro. ³

¹El Clarín foi fundado em 28 de agosto de 1945 em Buenos Aires pelo jornalista, político e ex-ministro Roberto Noble. Tinha o formato de tablóide, ilustrado, fácil de ler, focado no entretenimento e nos esportes. Bem recebido pelos leitores, levou algum tempo para se consolidar e ganhar influência. Em 1963 se transformou no jornal de maior circulação de Buenos Aires. Em 1967, com o fechamento de "El Mundo" (o primeiro tablóide editado na Argentina), El Clarín época passou por muitas inovações e a publicar uma revista semanal. Com a morte de Roberto Noble, em 1969, o jornal foi herdado pela viúva, Ernestina Herrera de Noble.

² A fonte das informações intercaladas ao texto são da Argenpress.

³ Não, não contei tudo sobre Mirna. Talvez um medo da distância tenha calado fundo sobre algum segredo. Mas agora me pesam duas informações e tenho de ceder. Não contei que Mirna não depilava as axilas. Tampouco aparava os pêlos pubianos. Nem raspava as pernas. Era uma curiosidade que se transformava em charme. Quando usava camiseta os pêlos vazavam das axilas e ficavam à mostra. Quando a vi nua pude acompanhar o rastilho que se formava no umbigo, numa tira fina, reta, para depois se alargar sobre o sexo e desaparecer entre as coxas, atravessar as nádegas e desaparecer na bunda, onde duas covinhas se sobressaíam. De qualquer modo era um lance de prazer deitar o nariz em seus pêlos e ficar aspirando um cheiro único que não se forma em mais lugar nenhum. E como depois de transarmos ela, simples e pura, se virava de costas para mim para um último ritual. O outro segredo eu guardei por amor e fidelidade. Várias vezes me advertiram sobre a leve suspeita de pairava sobre Mirna, que poderia ser uma doble, isto é, que também servia informações aos agentes da ditadura. Tudo porque era sobrinha de um general. Mais leve que a suspeita era nosso relacionamento e portanto ignorei todos os boatos a respeito.

III – A Conexão Rio

Na realidade, enquanto Delmira se encantava com as coisas femininas (costumava glosar Guevara dizendo – Sin perder la feminilidad jamás!), a Lando Ypuchi agradam as simetrias e os leves anacronismos. O primeiro frescor do outono, depois da opressão do verão escaldante, era como o símbolo natural de seu destino. A cidade, desde as seis da manhã quando jogava as primeiras cargas de água no rosto, não havia ainda perdido o aspecto de casa velha que a noite infunde. As ruas eram amplos saguões, as praças não eram os pátios?

Reconhecia com felicidade e sintomas de vertigem as esquinas, recordava os cartazes coloridos de Coca Cola, as modestas diferenças de Buenos Aires, que se esticava até aonde principiava o sul, do outro lado de Rivadavia. Uma vez, sem mais nem menos, Lando Ypuchi começou a falar bruscamente de um café que existia na Calle Brasil, a poucos metros da casa de Yrigoyen (8), onde vivia um enorme gato peludo como um tigre, que se deixava acarinhar apenas por determinadas pessoas, como uma divindade desdenhosa. Um gato prostituto que esnobava daqueles que o cheiro ou a aparência não o agradava...

– Mais para lá – Lando apontava para o infinito onde a linha do horizonte topa com o ruço azulado da atmosfera – desgarram-se todos os subúrbios da Grande Buenos Aires. E descreveu o mapa de uma visão cheia de estradas, as estâncias, jardins de haciendas famosas, viñas de cepas premiadas e quintas soberbas, só visíveis ao olhar da imaginação.

Pois foi num desses dias de verão, quando a temperatura chega fácil aos 40ºC, que a gente disputava cada centímetro cúbico do ar que os ventiladores do Café Quebracho enegrecidos pelo fumo lançavam, num dia desses aconteceu de passar ali uma patrulha do exército. Ao pressentir a manobra que o veículo militar se preparava para fazer, tomando assim o retorno em direção ao café, o Señor Recabarren correu de imediato para o grupo dos estrangeiros, como éramos conhecidos. Encaminhou todos por uma escada, caminho até então desconhecido, que descia a um sótão que servia de escritório e tinha a adega como anexo. Entre os freqüentadores locais, não se viu movimento algum: na verdade, já estavam acostumados e pouco ligavam a essas batidas militares.

Quanto a nós, lá fomos todos, os estrangeiros e alguns locais, embrulhados no mesmo saco, rumo ao porão. Quase tudo que tínhamos nas mãos, livros, jornais, maços de cigarro, isqueiro – foi largado sobre a mesa. Gullar, temeroso como todos nós, na pressa, deixou uma pasta amarelada tipo escolar, dessas fechadas com elástico nas extremidades. A pasta continha, entre vários papéis, as 52 laudas datilografadas da primeira versão revisada de um poema ainda sem nome (como título apenas a palavra “Poema”). Era o embrião do Poema Sujo. (9)

Sob a batuta do Señor Recabarren, com o corpanzil quase sempre coberto com um poncho, ali se tomava o melhor café de Buenos Aires, cujos grãos tostados vinham diretos de uma fazenda cafeeira de Medelín. Recabarren, apesar do corpo expandido para as laterais, era irrequieto e incansável. Atravessava as mesas atropelando os obstáculos para chegar e atender com amabilidade a quem o havia requisitado. Volta e meia entrava as frases com um carajo, joder e outros palavrões de uso vulgar e com essa maneira democrática de receber, afagava tanto escritores, músicos, intelectuais, pintores, como também os bigardos. No café serviam-se também bons vinhos tintos do Valle Inclán e as cepas de verão das encostas de Mendoza, servidas mais frias que o comum. Os charutos eram trazidos das pequenas fábricas independentes que sobrevivem na fronteira argentino-gaúcha.

O Señor Recabarren prontamente recolheu tudo, inclusive a pasta amarela de Gullar, jogou na mesa mais próxima, justamente a de Borges e seus amigos. Foi assim, dessa maneira e não de outra, que o rascunho do “Poema” sujo foi parar nas mãos do insigne autor de Ficciones. Depois nada se soube do que tinha ocorrido.

Quando emergimos do porão que era ao mesmo tempo a adega – chamados pelo próprio Señor Recabarren – Ahora pueden salir tranqüilos – nos disse. Nessa hora vimos que o salão já estava vazio e as portas do Café arriadas, os empregados limpavam o assoalho e faziam todos aqueles preparativos para encerrar o expediente. Fomos encaminhados para a rua por uma porta lateral, sempre cautelosos e apressados. Ainda naquele momento não passou pela cabeça de ninguém recuperar os objetos que ficaram na mesa. Apressados para sair do local, uns pegaram os táxis que passavam vazios, de retorno dos subúrbios, outros mais duros seguiram para a estação do metrô, eu e Lando fomos caminhando a pé, como era seu costume. Foi com Lando que aprendi que é bastante seguro e muito eficaz andar a pé, atravessando becos entre as quadras, misturado com a população comum.

Aqueles anos ’70 também foram de sangue em Buenos Aires. A impressão que se tinha era de uma eterna vigilância: nos espiavam dormindo, acordando, no banheiro, comendo, bebendo e até follando. E como até para follar é preciso intimidade, o medo de brochar vinha em seguida – naquelas circunstâncias morrer e brochar era tudo igual. Por outro lado, Lando também era o meu fornecedor de más notícias, função esta que Delmira contrabalançava com prazer, destinando suas falas às notícias culturais e esportivas. Foi assim que soube dos patrícios que caíam nas mãos da Seguridad e jamais se tinha notícia. (10)

Foi assim que soube acerca de Tenorinho, pianista que tocou em Buenos Aires acompanhando Toquinho e Vinícius. Ele sumiu em 1976, tragado pelos paramilitares clandestinos da repressão, sem deixar pista. Vinícius, junto com Toquinho e alguns amigos, como o próprio Gullar, se mobilizaram para localizá-lo, mas foi inútil. Procuraram em hospitais, clínicas, delegacias, buscaram ajuda na embaixada brasileira. Nada sabiam. O próprio cônsul brasileiro informou que nada sabia.

E de Maria Regina Marcondes, desaparecida desde 1976, também cercada de boatos para despistar: “desapareceu após ser seqüestrada”; “em 08 de abril de 1976, foi presa na Argentina”; “está detida no Estádio Nacional de Santiago”; “está internada numa clínica paramilitar destinada a torturas”; “fugiu para São Paulo para visitar os familiares”. As notícias falsas eram espalhadas pelos milicianos de direita. Mas quando recebíamos nossos olhares emudeciam de tristeza. Era mais um companheiro caído. Essas e outras tantas informações que são plantadas, difundidas e espalhadas por aí, ora em notas pequenas dos jornais, das rádios e vinhetas de TV, justamente para confundir e dificultar a localização de pessoas que sumiram e estão sendo procuradas. E assim foi com Roberto Rascardo, com Sidney Marques, com Walter Fleury e tantos outros brasileiros, argentinos, chilenos, que simplesmente sumiram nas mãos da repressão.

Apesar de tudo alguns sobreviveram, usando táticas diferentes. Era o que chamávamos “técnica de sumiço”. Cada um inventava a sua, à sua maneira particular. A que escolhi era diversificada, sem agenda. Ir a lugares cuja presença de gente fosse quase nenhuma, a locais freqüentados pela classe média baixa da população. No Chile, vivendo em Valparaíso, zona portuária, acostumei a me largar lá pelas bandas de Reñaca, uma praia de areias vermelhas, pouco freqüentada – assim como era a Grumari dos anos 1970. Em todas as duas, em certas horas dava para tomar banho nu sem ser incomodado. No Peru vivia no entorno da periferia, onde eram realizadas as feiras populares. Se a barra estivesse muito pesada ou me viesse a desconfiança de algum recém chegado, sumia e ia dormir nas igrejas antigas, onde tem sempre um quartinho nos fundos para abrigar os viajantes.

Os frades dessas igrejas de bairros pobres eram jesuítas, mais doutrinadores e sabiam com certeza que éramos fugitivos políticos. Eles tinham muitas informações sobre o que ocorria tanto no Peru de Alan Garcia, quanto nos países de governos militares vizinhos. Em Buenos Aires tive a sorte de encontrar Aymara e o casal Yapucho e Delmira, que eram mais especializados em sumir do que eu e não tive dificuldades. Sumir por bibliotecas, universidades, igrejas, bairros antigos, pequenos estádios de futebol onde os campeonatos de segunda divisão eram disputados, toda essa mobilidade dificultava nossa localização.

Nunca facilitar, essa era a regra de ouro. Assim ocorreu conosco, os sobreviventes, infelizmente não o foi o mesmo para centenas de companheiros. As informações falsas são plantadas, difundidas e espalhadas por aí, ora em notas pequenas dos jornais, das rádios e vinhetas de TV, justamente para confundir e dificultar a localização de pessoas que sumiram e estão sendo procuradas. E assim foi com Roberto Rascardo, com Sidney Marques, com Walter Fleury e tantos outros brasileiros, argentinos, chilenos, que simplesmente sumiram nas mãos da repressão. Não era mesmo aquela Buenos Aires dos tangos e das milongas. Nem mesmo aquele sonido do qual Borges dizis: "El tango hacía su voluntá con nosotros y nos arriaba y nos perdía y nos ordenaba y nos volvía a encontrar". Até o futebol – paixão declarada de todos argentinos – até o futebol sentia a opressão natural que vinha pelo ar, na expressão das pessoas, nas transfigurações do tempo.

Aconteceu o que era normal acontecer: sem aviso prévio, todos nós que estávamos à margem da sociedade política resolvemos nos entocar, sumir, desaparecer para sobreviver, embora isso soe estranho. Como? Deixando de freqüentar os locais que serviam para reunião, embora muitos deles se mostrassem na aparência alguma segurança. Entre eles sem dúvida o Café Quebracho era o mais garantido, não só por ser um lugar de aparência invisível, como pela segurança que o seu proprietário e empregados oferecem, como defensores legítimos da liberdade.

Um dia Delmira chegou mais agitada que de costume: “Salomon, trago notícias. Estive no Café Quebracho e falei com Señor Recabarren. Disse-me que agora está tudo tranqüilo, os milicos só aparecem para filar o vinho, o café, cigarros. E veja o que trouxe!” – e exibiu com as duas mãos, como se fosse um troféu, a famosa pasta amarela com o “Poema” do Gullar.

“A secretária de Don Jorge Luis deixou a pasta para entregar a alguém que fosse daquele grupo de brasileiros que esteve lá reunido. Parece que sobrou só você mesmo”. Naquele momento de perigo, Gullar – e todos os demais – sumiram de vez, com toda razão. Diziam que a repressão no Brasil continuava braba, mas já dava sinais de estar nos últimos estertores, em virtude da grande pressão internacional pela legalidade democrática. E Delmira desandou a dar uma série de notícias, muitas delas a gente já sabia, chegada assim no boca a boca diário, ora em forma de boato, que a gente já tinha experiência em refinar. Jorge Luis Borges tinha viajado para a Espanha. Na agenda muitas palestras, lançamentos e a honraria do Prêmio Cervantes, que lhe seria entregue pelo Rei Don Juan.

Vinicius de Moraes encerrou a excursão que fazia com Toquinho em Buenos Aires e depois de passar em Punta del Este voltou para o Rio de Janeiro. Teve o cuidado de levar consigo uma cópia e uma fita cassete gravada com o “Poema” de Gullar. Chegando ao Rio, Vinicius de Moraes imediatamente tratou de chamar os amigos, Paulo Mendes Campos, Rubem Braga, Afonso Romano, Marina Colasanti, pois estava impressionado com a importância que o “Poema” de Gullar teria para o momento político e intelectual. Com a adesão irrestrita desses e de outros autores, tratou de promover uma série de leituras nas universidades e salas culturais, apoiada por todos os amigos escritores, compositores, poetas, intelectuais. (11)

A partir dos bares de Copacabana e Ipanema, o “Poema” começou a circular em cópias pelas faculdades de letras. Alguns grupos se movimentaram rápido e de modo incontrolável, como fogo num roçado, a poesia de Gullar transitava por todo território brasileiro, era recitada em saraus improvisados, teve excertos dramatizados na versão anual ao Teatro do Estudante e alguns trechos começavam a ser musicados, ganhando vida independente. Ênio Silveira, editor da Civilização Brasileira, publicou o “Poema” inteiro, quase em forma fac-similar, no formato de um caderno escolar de escrita horizontal, como aqueles pautados para estudantes de música. A edição feita em papel jornal dava uma aparência rústica semelhante a um folhetim. Saiu a um custo barato e o livrote também se tornou figura obrigatória nas mãos dos jovens estudantes. (12)

Dentro da pasta amarela que Delmira me entregou vinha também uma carta de Borges em folhas datilografadas, um texto irregular, mas preciso. À margem do texto do “Poema”, em letra feminina, algumas não poucas anotações sobre o “Poema”, claramente ditadas por Borges. Ao fim um arremedo de assinatura, da qual só ficou uma fotocópia. (13)

NOTAS

(1) Depois da derrocada do Governo Allende, Gullar passou por Lima, mas logo depois se mudou para Buenos Aires. Recebeu avisos para não ir, mas alguma coisa falava mais alto ao seu coração e logo estaria na Argentina. Gullar tinha muitos amigos argentinos e não dava para perceber que havia em gestação um golpe militar, que não tardou em chegar. Foi lá, temendo pelo pior, já que alguns de seus amigos haviam sumido, que Gullar decidiu "escrever um poema que dissesse tudo o que me restava dizer, um poema final", como contou em várias entrevistas e também no depoimento que deu na FLIP.

(2) Em 1975 Borges havia sofrido um choque com o falecimento de sua mãe Leonor Acevedo, de 99 anos de idade. Nesse mesmo ano Borges publica La rosa profunda, livro de poesía e El libro de arena, de relatos "cujos sonhos — declara em entrevista — continuem ramificando-se na hospitaleira imaginação" dos leitores. Neste último volume, como un eco do esplêndido "Tlön, Uqbar, Orbis Tertius", brilha a trama do esotérico relato "El congreso", nova metáfora do cosmos borgeano. Foi neste ano que Maria Kodama se torna sua secretária particular e a acompanhante permanente de suas viagens.

(3) Na mesa dos “gringos” predominavam os brasileiros. O destaque – além de Gullar e do chileno Skarmeta – ficava por conta de Vinicius e Toquinho que naquele época estavam apresentando shows com suas últimas composições em Buenos Aires, geralmente em bares e teatros de caráter intimista. Destaque incontestável para os sucessos “Na tonga da milonga do kabuletê” e “Tarde em Itapoã”.

(4) Vinícius de Moraes iria relembrar depois: “Eu tinha convidado uns amigos para ouvir a gravaçãodo último e belíssimo poema de Gullar, chamado Poema Sujo, que o poeta lera para mim em Buenos Aires, em outubro do ano passado, e que mexeu comigo até a medula. Um poema de fôlego - 52 laudas datilografadas, contendo umas 13.000 palavras - em que ele, partindo de uma evocação da meninice em São Luís do Maranhão, sua cidade natal, atinge uma a universalidade como não se via na poesia brasileira desde Sentimento do Mundo e A Rosa do Povo”.

(5) Hay algunas diferencias entre el tango y la milonga: Aunque tanto la milonga como el tango están en compás de 2/4, las 8 semicorcheas de la milonga están distribuidas en 3 + 3 + 2 en cambio el tango posee un ritmo más «cuadrado». Las letras de la milonga suelen ser picarescas.. El escritor argentino Jorge Luis Borges criticó en algún momento el tango y prefirió la milonga, que no trasmite la melancolía del primero. Borges es autor de Jacinto Chiclana en la que le emboca a un corajudo un cuchillo (un guapo que solía poner su habilidad para pelear con el cuchillo al servicio de caudillos políticos). La milonga es ligera, se interpreta con guitarra y no tiene coreografía. El origen de estas formas musicales es muy discutido y probablemente la milonga provenga de un cruce de la forma campera con el tango primitivo de los suburbios de Buenos Aires y Montevideo. Las mujeres milongueras tienen dedicados varios tangos, cuyas letras suelen aludir a un pasado humilde y a un presente en el que la frecuentación de las milongas de lujo les permite relacionarse con hombres adinerados (los bacanes), vínculo que refiere a un modo de prostitución. Sin embargo, las milongueras actuales bailan por gusto y pueden tener compañeros de baile con los que forman una pareja que se entiende bien en la pista, pero que no mantiene otro tipo de relación fuera de ella.

(6) Borges creía que Gardel era una desgracia para el tango, que el tango en sí era una desgracia, el tango conocido y reconocido como tal. El tango sensiblero de Gardel era rechazado por un Borges que deseaba morir bajo el cielo de la pampa en un sur lejano. Borges habla de milonga, de milonga campera no de tango. Se ha afirmado que a Borges no le gustaba el tango, y sí, mucho, la milonga. Y esto es verdad. Pero con una precisión: apreciaba algunos tangos, todos de la guardia vieja, como "La Morocha", "La Tablada", "El Choclo", "El Marne". A Borges le gustaba oír a los buenos guitarreros con su rasgueo de aires de milonga. Y Gardel se apoyó ampliamente en la guitarra como acompañamiento en los primeros tramos de su trayectoria. Entonces: el sonar de la guitarra criolla, tan especial, triste y alegre a un tiempo, simple y complejo, siempre bordeando honduras sin caer en ellas, es un elemento artístico que hermana al cantor y al escritor. "El tango está en el tiempo, en los desaires y contrariedades del tiempo; el chacaneo aparente de la milonga ya es eternidad." (Borges)

(7) Enrique Santos Discépolo (Buenos Aires 1901-1951), poeta, compositor, actor y autor teatral. A pesar de haberse iniciado en el teatro, sus éxitos y por ende su fama los logró en la canción. Hijo de Santos Discépolo, músico del 900 nacido en Nápoles y autor de algunos tangos y hermano de Armando Discépolo, uno de los grandes del teatro argentino, elevó la jerarquía del apellido con tangos inmortales. En 1925 escribe su primer tango, "Bizcochito", que no tuvo éxito alguno, por eso se dice que el titulado "¿Qué Vachaché?" es el primero que hizo. Pero su formidable pegada de 1928 con "Esta Noche me Emborracho", lo sacó del anonimato. Carlos Gardel, su amigo de tantas horas, llevóle al surco del disco "¿Qué Vachaché?", "Esta Noche me Emborracho", "¡Yira, Yira!", "¡Chorra!", "¡Victoria!", "Secreto", "Confesión", "Malevaje", "Sueño de Juventud", "El Carrillón de la Merced" y "¡Justo el 31!" También hizo "Tres Esperanzas", "Soy un Arlequín", "¿Qué Sapa Señor?", "Alguna Vez", el formidable "Cambalache", "Desencanto", "Martirio", "Tormenta" "Infamia", "¡Uno!", "Canción Desesperada", "Cafetín de Buenos Aires", "Noche de Abril", la mayoría suyas totalmente; "Sin Palabras", "El Alma del Bandoneón", "Condena" y otras hechas en colaboración con Luis César Amadori, F. García Jiménez, Marianito Mores, Francisco Pracánico. Su primera incursión cinematográfica la realizó junto a Carlos Gardel en 1930, donde el gran Carlitos incluye su mejor tango, "¡Yira, Yira!", y mantiene con él un diálogo interesante, más o menos así: "Decíme Enrique. ¿Qué has querido hacer con el tango «¡Yira, Yira!»?, pregunta Gardel. El contesta: "¿Con «¡Yira, Yira!»? Una canción de soledad y esperanza". Gardel: "Hombre... Así lo he comprendido yo". Discépolo: "Por eso es que lo cantás de una manera admirable". Gardel: "Pero el personaje es un hombre bueno. ¿Verdad?" Discépolo: "Sí; es un hombre que ha vivido la bella esperanza de la fraternidad durante 40 años y de pronto un día ¡a los 40!, se desayuna con que los hombres son unas fieras". Gardel: "Pero dice cosas amargas". Discépolo: "Carlos, no pretenderás que diga cosas divertidas, un hombre que ha esperado 40 años para desayunarse". (Fonte: http://www.todotango.com/)

(8) Não se pode dizer que Borges já havia alcançado a senectude, mas é impressionante como mudava de opinião em suas falas e ações. Mais tarde diria dele mesmo, como se falasse de outra pessoa, de um dublê: “É ao outro, a Borges, que acontecem as coisas. Eu caminho por Buenos Aires e demoro-me, talvez já mecanicamente, a olhar o arco de um alpendre e o guarda-vento; de Borges tenho notícias pelo correio e vejo o seu nome num grupo de professores ou num dicionário biográfico. Gosto dos relógios de areia, dos mapas, da tipografia do século XVIII, do sabor do café e da prosa de Stevenson; o outro compartilha dessas preferências, mas de um modo vaidoso, que as converte em atributos de um actor. Seria exagerado afirmar que as nossas relações são hostis; eu vivo, eu deixo-me viver, para que Borges possa tecer a sua literatura e essa literatura justifica-me. Nada me custa confessar que conseguiu certas páginas válidas, mas essas páginas não me podem salvar, talvez porque o que é bom já não é de ninguém, nem sequer do outro, mas sim da linguagem ou da tradição. Além do mais, eu estou destinado a perder-me, definitivamente, e apenas algum instante meu poderá sobreviver no outro. A pouco e pouco vou cedendo-lhe tudo, embora não desconheça o seu perverso costume de falsear e de magnificar. Spinoza entendeu que todas as coisas querem perseverar no seu ser; a pedra quer eternamente ser pedra e o tigre um tigre. Eu hei-de ficar em Borges, não em mim (se é que sou alguém), mas reconheço-me menos nos seus livros que em muitos outros ou que no laborioso zangarreio de uma viola. Há anos procurei libertar-me dele e passei das mitologias do arrabalde aos jogos com o tempo e com o infinito, mas esses jogos são agora de Borges e terei de idealizar outras coisas. Assim, a minha vida é uma fuga e perco tudo e tudo é do esquecimento ou do outro. Não sei qual dos dois escreve esta página”.

(9) Entre os muitos amigos de Borges estavam Silvina Ocampo (1906-1993), escritora e poetisa, assim como sua irmã Victoria Ocampo e Adolfo Bioy Casares – o inseparável. Silvina iniciou-se na literatura com um livro de contos, depois cultivou a poesia próxima às formas clássicas. Nos livros de relatos entra na literatura fantástica, mistura humor negro, observações irônicas, costumes e pessoas comuns, que lhe garantem um lugar na literatura argentina. Em colaboração com Adolfo Bioy Casares publicou um romance policial e com J. P. Wilcock publicou uma peça teatral. Com Bioy e Borges publicou antologias da literatura fantástica e de poesia. Adolfo Bioy Casares (1914-1999). Escritor, autor de contos, romances e ensaios. Iniciou a carreira literária com relatos surrealistas. Autor de La invención de Morel, El sueño de los héroes y Diario de la guerra del cerdo, todos de cuidadosa trama. Com Borges fundou a revista Destiempo e escreveu livros de ficção policial, incluindo no texto observações irônicas sobre a sociedade argentina. Em seus romances, contos e sinopses de filmes, Bioy estudou os mitos clássicos na modernidade, alguns aspectos paranormais e a psicologia do amor. Carlos Mastronardi (1901-1976), escritor nascido na província de Entreríos. Iniciou estudos de Direito em Buenos Aires, porém abandonou a carreira para se dedicar ao jornalismo. Uniu-se ao grupo Martín Fierro e ali se relacionou com Ricardo Güiraldes e outros autores da época. Foi amigo íntimo de Borges e do grupo que o cercava.

(10) Hipólito Yrigoyen, fundador da Unión Cívica Radical (UCR). Yrigoyen foi deputado por Buenos Aires em 1880. Após o suicídio de Leandro Alen, Yrigoyen lidera da UCR e assume uma política de total oposição ao regime de alternância no governo. Levou a UCR à ação armada em 1893 e 1905. Mais tarde, orienta sua ação de forma pacífica pregando a abstenção. Sua luta é recompensada com a promulgação da Lei Sáenz Peña, que estabeleceu o voto obrigatório, secreto e universal. Apesar das medidas de caráter social, por ação ou omissão deixou que setores do exército e grupos paramilitares atuassem contra os trabalhadores. O velho Yrigoyen vive rodeado por assessores infiéis. Com a situação grave, os fascistas conspiram abertamente. Em 1930 José Félix Uriburu dá um golpe, depois da derrubada, Yrigoyen é detido e confinado na ilha de Martín García. Faleceu em Buenos Aires em 1933, seu cortejo fúnebre foi acompanhado por uma impressionante multidão. Jamais confundir com o jóquei Francisco Yrigoyen, que fez muito sucesso nas pistas da Gávea e Cidade Jardim na mesma época.

(11) Conforme o próprio Gullar: “Sabia-se que a polícia da ditadura brasileira atuava em acordo com a argentina e isso aumentava minha intranqüilidade. Enfim, temia que a qualquer momento, também eu sumisse. Então decidi escrever um poema que dissesse tudo o que me restava dizer, um poema final. Um belo dia, em maio de 1975, comecei a escrevê-lo e só o terminei em outubro. Durante esses meses não vivia outra coisa senão o poema. Não foi nada planejado. Ao me debruçar sobre a máquina para escrevê-lo sabia que sua matéria era minha própria vida com tudo o que vivera e pensara”.

(12) No governo de Jorge Rafael Videla começou uma nova e genocida ditadura na pátria de Borges, que celebra a chegada do governo militar. Em 1976, con 77 de idade, o autor argentino publica La moneda de hierro, livro de versos e prosa. Poemas onde vislumbra, pessimista como sempre, o vazio da existência, tal como em "Soy": "Soy el que sabe que no es menos vano/ que el vano observador en el espejo/[...] Soy el que pese a tan ilustres modos/ de errar, no ha descifrado el laberinto/[...] Soy el que es nadie, el que no fue una espada/ en la guerra. Soy eco, olvido, nada". Em seu prólogo intempestivo, Borges se confessa "indigno de opinar en materia política, pero tal vez me sea perdonado añadir que descreo de la democracia, ese curioso abuso de la estadística".

(13) É, ainda, de Vinícius de Moraes: “A poesia solteira tinha deixado de me interessar diante da impotência dos poetas para fecundá-la, para manchá-la de sangue, suor e sêmen, para banhá-la de lágrimas de amor, para cobri-la da saliva grossa de beijos apaixonados. De maneira que para mim o reencontro dessa poesia simples, orgânica, crua, fecunda, emocionante, - e paralelamente dotada de um grande poder de síntese; essa poesia nascida no quintal das palavras e escrita por esse que eu considero o último grande poeta brasileiro, me tocou até as vísceras. Justo no momento em que um bando de papanatas começa a querer decretar a morte da poesia, chega esse gavião maranhense, sem outra rapina que não aquela contra os predadores do homem, todo enrodilhado em sua própria magreza da qual sobram pernas e joelhos e braços e dedos e gênio poético e de repente alça vôo do telhado de sua casa em São Luís do Maranhão e se põe a planar sobre sua cidade, vendo tudo com olhos perfunctórios, transfixiantes, capazes de enxergar através das paredes; logo baixando picado para observar detalhe ínfimo, curioso ou dramático, que carimbam a infância e são arquivados no subconsciente para subitamente serem computados no ato de criação...”

Salomão Rovedo
Enviado por Salomão Rovedo em 11/01/2008
Código do texto: T812471