O JULGAMENTO DE GIL

Meados do mês de agosto, ano de 2006. Congresso de empresários do ramo têxtil, numa cidadezinha à beira mar. Fim de tarde, sol escaldante, baixa umidade do ar. Minúsculos pedaços de cinzas voavam e caiam pela orla marítima, denunciando as queimadas e o devassamento das matas. Mesclava o cinza, frio, ao multicolorido dos transeuntes que iam e vinham numa caminhada sem rumo definido... Pipas sobrevoavam.

Final de expediente. Todos cansados acharam por bem aproveitar a aragem. Vestiram suas roupas de banho, deixaram os quartos, e, afundando os pés na areia quente, sentaram-se nas cadeiras, debaixo de frondosas árvores e tendas onde se servia: água de coco, petiscos, cerveja, refrigerantes... À frente, uma vastidão inebriante! As nuvens brincavam de esconde – esconde; ora apareciam, ora sumiam, ora imitavam animais com seus formatos mirabolantes, mudando a cada instante a performance, como se quisessem brincar com quem as admiravam da terra. Uma turminha jogava bola, enquanto as mães papeavam. Passaram horas ali... Embevecidos com a paisagem, embriagados pelo som suave das ondas que batiam nas pedras. Sabia os empresários, que, naquele lugar tão belo, algo escabroso havia acontecido anos atrás. Tudo era místico..., uma cidade renascida, após um incêndio.

Enquanto conversavam, aproxima - se deles, um Senhor de cabelos brancos, 86 anos de idade, meio corcunda, dotado de uma memória brilhante. Sobrevivente da tragédia e dono de várias tendas ao longo da praia. Aproxima e apóia no balcão da tenda ao lado. Na pele alva e úmida brotava pequenos olhos d’água, provocadas pelo excessivo calor

- Boa tarde! Sejam bem vindos! - disse com um sorriso triste.

- Boa tarde! - Em coro responderam.

- Vocês são Congressistas? – Perguntou o velho.

- Sim, somos. E o Senhor, sempre viveu aqui? Como se chama? Perguntou um visitante.

- Sim filho! Sempre vivi aqui. Sou Joaquim Tiriba. Essa tranquilidade carrega uma mancha muito triste! Houve um período tenebroso! Uma imagem que nunca esqueço! Eu era um jovem de apenas 20 anos, quando tudo aconteceu:

Um moço chamado Gil Félix, esguio, corpo atlético, gerente e filho do dono desta pousada que vocês estão hospedados. Isso aqui era quase tudo de Coronel Firmino, pai de Gil – disse, apontando os imóveis ao redor – Exímio cantador e compositor! Com a música ele denunciava injustiças e ao mesmo tempo falava de amor. Nunca vi um artista tão completo!Era carinhosamente chamado “Gogó de Ouro”, dono da mais bela voz que já ouvi! Era o cantor mais solicitado, pelos predicados que possuía. Poeta e prosador: leu Machado de Assis; castro Alves; Poe; Dostoievski... O coitado armou para si próprio uma arapuca, ao carregar no peito um amor proibido e inesperado. Vivia em função de uma mulher que o desprezava e ao mesmo tempo o seduzia. Gil cometeu uma sandice e, por isso, foi julgado. Lembro - me bem de seu julgamento.

- Era final de tarde, um alvoroço na porta do fórum. Curiosos disputavam um lugar para ver de perto o ocorrido. Viaturas da polícia abriam caminho entre a multidão. Um movimento nunca antes visto tomou conta da cidade!De um camburão desceu Gil, moço desfigurado, algemado e escoltado por dois policiais. Réu confesso!Entre lágrimas de comoção e vaias, entrou na sala de audiência. Sua mãe Doralice Félix, uma distinta Dama, chorou!

- Gil Félix, na cadeira de réu! Quem diria?! Todos comentavam, admirados!

Fiquei do inicio ao fim sem arredar o pé de lá! Lembro até hoje da composição da sala: Á esquerda de Gil, os “jurados”; à direita, o promotor; à frente, o advogado; às costas, uma multidão ansiosa aguardava o desenrolar do julgamento. Doralice Félix não cessava o suspiro que era ouvido em qualquer canto da sala:

“Será o que vai dar: Condenação ou absolvição?” Perguntava à amiga que a amparava.

Em meio ao burburinho entrou, Dr. King, o Juiz. Todos, em respeito, levantaram. Dirigindo-se, aos presentes, com a autoridade que lhe era cabida, friamente, ordenou:

– Sentem-se, por favor! Venha à frente o réu.

– Promete, em nome de Deus, dizer a verdade, nada mais que a verdade?

– Sim, prometo – respondeu Gil Félix, pousando a mão sobre a bíblia.

Dr. King, o Juiz, ordenou ao Escrivão Benevides que relatasse o crime pelo qual Gil estava sendo julgado

. Pausadamente, com voz firme:

– Senhores jurados, mês de junho, ano de 1940, no Recanto da Baralândia, uma pousada de propriedade de Coronel Firmino Félix, conhecido por “Rei de Ouro”... Era “Festa de São João”. Ânimos exaltados, não sei se pelo excesso de vinho, ou simplesmente pela euforia da celebração. Todos reunidos cantavam ao redor de uma imensa fogueira.

Sirinéia Gibriola, uma dama alegre, extrovertida, “esposa” do coronel Verdato Gibriola, conhecido como “ Valete”,insinuou-se para Gil Félix. Um desejo incontrolável inundou aqueles dois! Gil que a tempos a desejava, não titubeou. Ofereceu-lhe uma taça do que bebia. Um desmedido amor apunhalava noite e dia o seu coração. Enfim, a oportunidade de ter em seus braços o grande amor de sua vida.

Em um gole, Ana, tudo bebeu. Sua cabeça rodopiou... Olhou para um lado, olhou para o outro. Num impulso, apertou a mão do rapaz que a levou a um lugar ermo e distante... Alheios às conseqüências que iriam sofrer pelo ato irresponsável, se aninhavam.

Gil com o travessão em punho, num instinto animalesco, tirou o hífen de seu idolatrado beija flor; sugou-lhe o néctar: proliferou o pólen... Sirinéia, possuída por um desejo incontido; uma sensação estranha invadia seu corpo. Embriagada, mais e mais se entregava, sem forças para lutar, apenas cedia.

Enquanto Benevides, o Escrivão, relatava o ocorrido, Gil, inquieto, gritava:

– Excia! Excia! EXCIA!

– Silêncio! Por favor! - ordenou o Juiz. –Desesperado, Gil continuou desobedecendo às ordens.

– Excia! Não sou o único culpado. Sirinéia coagiu-me! Dei-lhe a bebida, é claro, mas Ela levou-me ao desespero, deixando-me em um estado de apoplexia amorosa. Não usei o travessão de forma brusca como fora relatado pelo Escrivão. Mesmo enlouquecido de desejo, tive calma, quando, com firmeza, Sirinéia deu-me um sinal ortográfico, dizendo: “Não trema, seja firme, vai direto ao ponto”. Diante da argumentação dela mal tive tempo de fazer uma análise morfológica...Esbaforido, encontrei sua vogal temática, abri o léxico em êxtase e,numa paixão alucinante usei a consoante de ligação. Ela, parassintética, nada fez. Numa justaposição de amor-perfeito, aglutinamos! Foi uma verdadeira onomatopéia: Zaz! Pum! Ploft! Aff! Ai... Submetemos um ao outro em um paradoxo. Depois de algum tempo libertamos um grito horrível de alegria, uma flexão verbal. Emudecidos, percebemos que havia mudado o rumo de nossas vidas! Pretérito, futuro.Nada mais importava. O presente estava perfeito.

Gil falava cegamente como se nada mais no mundo existisse a não ser o momento ao lado de Sirinéia.

Dr. King, possesso com a intransigência do réu, estridente e imperativo, batendo forte na mesa,gritou:

– Silêncio rapaz! Seu aspecto incoativo, sua voz ativa, sua negação à responsabilidade, nada disso o livrará do voto condenativo dos jurados. Será julgado pela proeminência comutativa e desrespeitosa às regras deste Tribunal.

Sem forças para provar sua inocência, Gil Félix baixou a cabeça. Angustiado ao ouvir o relato de Benevides que o tratava como “um bêbado inconsequente”;enraivecido por tantas calúnias, desobedeceu mais uma vez as regras do Tribunal. Levantou, dirigiu-se á insolente Sirinéia, com o dedo em riste, esbravejou:

– Não perdoo o ato analítico desta dama..., ela desmantelou o trono do “Rei de Ouro” e as minhas ilusões, numa metafonia de cornos de miolo mole que somos...

– Cale-se, senhor Gil! Por favor! Ou será condenado, sem mesmo ser julgado.

– Desta vez o juiz o repreendeu euforicamente.

Prosseguiu o julgamento. Um debate de alto nível entre o Advogado e o Promotor. Exibiram provas cabíveis e provas forjadas. Ouviram testemunhas...

Gil foi condenado por cinco votos a dois. O Juiz proferiu a sentença:

– 20 anos, oito meses e sete dias...

– Meu Deus! – balbuciou Doralice Félix, enxugando uma lágrima que em seu rosto corria.

Levado para a cela da cadeia pública, à dor se sucumbiu... O tempo foi passando, Gil mostrava-se frio, reflexivo, ferido com os próprios atos. Fez uma viagem pela memória locupletada de sonhos, realizações, esperanças... Sempre o visitava. Triste, revivia sua infância, adolescência numa relutância enumerativa, em pensamentos diversos e recapitulativos: fantasias, sonhos, anseios, raiva... Certo dia, enquanto conversávamos, Gil lembrou nitidamente o momento em que Sirinéia, maliciosamente, o abordou:

– Por que não resisti? Gritou batendo a mão fechada na parede da cela.

Revoltado, desiludido e louco de amor. Gil tinha dentro de si um desejo ardente de novo encontro vocálico ou consonantal com Sirinéia, sua amada. Foi tomado por uma miscelânea de ódio e amor. Queria abraçá-la, ao mesmo tempo, destruí-la. Vivia distante, olhos indagadores, fixos no infinito. Buscava decifrar porque errara tanto em um curto período anacoluto onde quebrara uma estrutura para introdução de uma ideia sem nexo sintático:

– Pensa numa Dama que não me ama!A preposição que me coloquei na vida por causa de uma fêmea, não vale o mundo de ninguém! Minha sentença foi definida, a morte de todos, anunciada.

Quanto mais o tempo passava, mais firme o seu desejo de vingança. “Minha sentença foi definida, a morte de todos anunciada”. Este refrão era entoado a todo instante em sua mente; era tanto que o atormentava.

Enquanto Gil se acabava na prisão, seu pai, Coronel Firmino Félix, o “Rei de Ouro” relutante em aceitar sua sina, encontrava-se numa antítese gerada naquele momento composto de controvérsias. Doralice, envelhecida, dia –a dia se aniquilava.

Coronel Verdato, numa figura de linguagem expressiva, amaldiçoou Sirinéia.

– Honra é honra! Continuou a esbravejar. Precípete, acariciou o projétil que se salientava no bolso da calça. Desiludido, confuso, indeciso. A desonra gerou dilema e conflito. Dois desejos tentando lhe persuadir: o orgulho e a paixão. Entrou em confronto sua imagem de “homem” e seu lado humano sentimental. A voz da vaidade, da imagem, do orgulho foi mais ativa, sobrepôs sentimentos de perdão, amor e compaixão. Sua figura de homem ficou distorcida, confundiu-se com a sombra da traição. Foi um período composto por insubordinação, bochichos, olhares maliciosos, desconfiança e discórdia. Os caminhos de todos foram decididos. Sirinéia sentia-se uma estranha na cidade. Os destinos tornaram-se opostos: a morte e a vida.

Anos se passaram. Mais de trinta. De certa forma o episódio estava enterrado e esquecido. Gil cumpriu honrosamente sua pena, porém, a vingança o atormentava.

Certo dia, do nada, uma chama crescente e ofegante. Famílias sentadas nas cadeiras que enfileiravam frente às portas de suas tendas ao longo da orla. Jovens batendo bola na areia, peteca... Crianças jogando biloca, brincando de pique esconde em meio às árvores.

O fogo avançava cada vez mais, destruindo vidas, desmoronando casas. Todos sem distinção estavam apavorados. Tudo desvaneceu. Sirinéia foi a primeira a ser atingida, como se aquele fogo a ela fosse destinado.

Morreram todos!

– Como o Senhor se salvou, já que toda a orla foi destruída? – Perguntou um visitante.

Desconfiado, o velho senhor, respondeu:

– Não me lembro como me salvei.

– E Gil Félix, o que aconteceu a ele? – perguntou novamente o visitante.

– Gil, pobre Gil! Respondeu o velho com uma lágrima escorrendo pelo rosto, se afastando. Ficou livre das grades, mas preso ao desejo mórbido de vingança. Tudo que adotou como virtude trocou por tristeza e amargura. Destruiu -se moralmente junto ao incêndio.

Morri em vida!

Fatima Paraguassú
Enviado por Fatima Paraguassú em 18/02/2008
Reeditado em 31/07/2013
Código do texto: T864300
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