Caminhos Tortuosos

Era noite e seus longos cabelos loiros esvoaçavam delicadamente em suas costas. Seu vestido branco estava muito velho e possuía alguns rasgos, mas não perdia nem um pouco a beleza. O vestido era preenchido com detalhes exóticos demais para que qualquer outra pessoa pudesse deslumbrar, finos galhos secos de plantas ainda com muitas folhas vivas o rodeavam. Sempre fora tida como estranha por todos, pois era um ser único em meio a milhões, suas orelhas eram levemente afinaladas e pontudas: características de dríades. Sua aparência lembrava sutilmente as ninfas da Floresta Triste - local que ela conhecia muito bem. Seus olhos amarelos vivos pareciam com os de querubins, seres desconhecidos em qualquer ponto do mundo. Seus cabelos de um loiro fosco possuíam um ar lúgubre. Sua pele pálida lembrava a origem dos vampiros e causava certo incomodo naqueles que se aproximavam dela, mas o que mais chamava atenção era uma cicatriz na lateral esquerda de seu pescoço que pegava parte do rosto, como se ela tivesse sido dilacerada há muito tempo atrás pelas garras de um predador.

Por muitos anos Anastacia procurou alguém que lhe explicasse sua origem desconhecida. Pouco lembrava sobre quem era ou como nascera. Apenas havia acordado um dia em meio a um campo florido de margaridas noturnas numa tarde fresca de primavera. Nunca havia entendido o seu passado, menos ainda sua origem.

Agora depois de uma longa busca ela havia encontrado o que tanto procurava. Avistou de longe o pequeno lago perfeitamente circular de águas vermelhas e caminhou até ele com cuidado. Sempre ouvira falar que o Lago de Sal Rubro era guardado por um poderoso ser desconhecido. Não encontrara nada nem ninguém ali que fornecesse ameaça aparente, deduziu que fossem apenas lendas.

Quando chegou à margem agachou-se e tocou a água com os dedos, depois levou um deles à boca. O sabor era extremamente salgado, mais que as águas de qualquer mar, e possuía um peculiar gosto de ferrugem. As águas eram de um vermelho claro, quase róseo, e resplandeciam magnificamente. Ergueu o rosto visando o centro do lago e focou seu objetivo. Uma minúscula ilhota com uma flor de pétalas prateadas.

O lago era realmente muito pequeno, a existência dele ali era um mistério. Não chegava a seis metros de circunferência. Não tão longe uma espécie de cachoeira diminuta transbordava no lago com águas de mesma cor, o local parecia um banho para gnomos, duendes ou outras criaturas da floresta. Anastacia levantou e começou a caminhar em direção à flor, não se importou de molhar o vestido ou a si mesma com aquela água saturada de sal. Na parte mais funda do lago a água mal tocava sua cintura e quando estava já ao alcance da flor era raso novamente.

Quando aproximou a mão da Estigma Prateada, a flor pareceu se abrir mais e girar lentamente acompanhando os toques delicados de Anastacia, como se apreciasse o carinho. Estigma Prateada era um nome interessante para uma flor. Ela lembrava uma rosa, porém com mais pétalas e estas mais abertas e vivas, sua cor prata brilhante era o que mais chamava atenção.

A lenda dizia que naquele local um jovem cavaleiro combateu bravamente um demônio para salvar sua amada. Ele venceu o demônio, mas as feridas da luta eram muitas e não tinha forças para se mover. Morreu ali em meio ao próprio sangue e mesmo depois da morte, não parou de sangrar por dias. A jovem moça, depois de livre, não conseguiu abandonar o corpo de seu finado amado, tentou fazer uma cova com as próprias mãos onde o corpo estava. Queria enterrá-lo onde ele havia dado sua vida por ela. Em meio ao sangue e lágrimas cavou por dias em torno do corpo nunca achando a cova funda o suficiente para enterrá-lo. Ficou ali junto do corpo cavando e chorando até o último dia de sua vida quando morreu de fome. Mesmo depois de morta suas lágrimas continuaram a derramar, pois sua tristeza era eterna. Por conta de tamanha tristeza suas lágrimas eram extremamente salgadas. Os espíritos da natureza presenciaram tudo com seus onipresentes e incontáveis olhos existentes na terra, plantas e animais. Eles criaram tanto a floresta que abrigava o pequeno lago, a cachoeira de origem desconhecida que jorrava eternamente como as lágrimas da jovem moça, quanto a Estigma Prateada, que era a única fonte de beleza suprema em quilômetros, fruto de uma tragédia nunca esquecida, transformada em lenda por bardos e contada às crianças pelas suas mães muitas noites antes delas dormirem.

Anastacia nunca foi de acreditar em lendas e ignorava esta, mas admitiu e admirou a extrema beleza daquela flor que supostamente teria sido um presente dos deuses. Não conteve um sorriso que foi expresso apenas por poder admirá-la. Infelizmente precisava das pétalas. Fechou os olhos e baixou a cabeça sussurrando uma prece:

- Que a mãe terra me perdoe pelo ato profano que cometerei. Que a mãe terra compreenda que meus atos não possuem alternativa. Que a mãe terra sinta em meu ato todo meu desespero.

Abriu novamente os olhos e segurou a flor pelo fino caule para arrancá-la. A Estigma pareceu perder um pouco do brilho, como se soubesse a intenção de sua assassina, como se entristecesse por ser logo a primeira pessoa que havia lhe descoberto, tocado e acariciado, também aquela que findaria sua existência.

Antes de Anastacia cometer o ato que ela considerava como mais repugnante possível, notou algo perto da Estigma: uma mínima semente prateada, pouco menor que uma mosca. Não havia percebido ela ali antes por estar compenetrada na beleza da flor. Decidiu usar seus conhecimentos e habilidades para não precisar tirar a vida de uma planta. Pegou a semente e a enterrou na pequena ilhota de terra fofa. Depois, com as duas mãos unidas, regou o solo com um pouco da água vermelha. Começou a mexer na areia umedecida com o indicador, fazendo movimentos circulares com o dedo. Segundos depois a semente germinou aceleradamente, ela acompanhava o movimento da planta com a mão, sem tocá-la. Surgiu quase instantaneamente um botão que desabrochou num esplendor de beleza natural, mas Anastacia não parou. Continuou agora com as duas mãos, e a flor atingiu seu ápice de magnificência até começar a perder o brilho, suas pétalas começaram a cair e apenas quando trinta delas estavam no chão Anastacia parou deixando a segunda Estigma praticamente morta.

Ela colheu as pétalas numa das mãos, depois levou a outra mão para a Estigma que ela havia plantado e sussurrou consigo mesma:

- Cópias não podem existir perante a obra dos deuses...

A flor começou a regredir com o toque dela, voltando ao seu ápice, depois tornando-se novamente um mero botão e por fim enterrando-se de volta como semente. Pegou a semente prateada com carinho e colocou dentro da flor original e essa se fechou engolindo sua prole. Anastacia acariciou-a mais uma vez e a flor se abriu novamente intensificando seu brilho. A semente havia sumido.

Anastacia também resolveu sumir, não se achava digna de habitar por tanto tempo um local sagrado, não de uma tragédia romântica mortal, mas que fora tocado pelos deuses. Isolou-se no bosque em um ponto onde o brilho do luar pudesse penetrar por entre as árvores.

Aquele bosque era um tanto estranho, tudo ali parecia vivo demais, muitas foram as vezes que ela imaginou que as árvores se destacariam do chão e começariam a andar, talvez até falar. Afastou tais pensamentos e colocou as pétalas no solo, pegou de uma das árvores uma folha grande onde começou a esfregar as pétalas entre as mãos formando assim um tipo de prata em pó. Retirou do vestido um estranho fruto, pequeno como uma cereja e azul como o céu, o partiu em dois em seguida esfregando as duas metades no pó, fechou os olhos e comeu uma metade sussurrando após engoli-la:

- Eterno Ceifador. Aquele que antes de tudo veio. Aquele que depois de tudo ficará. Receba minha oferenda como um presente de alguém que lhe suplica por clemência.

Receou abrir os olhos, não sabia o que lhe esperava. Além disso, ainda tinha a idéia pessimista de que aquilo não daria certo. As pétalas não eram exatamente da Estigma Prateada verdadeira. Ousou por fim abri-los vagarosamente e quando percebeu que a outra metade do pequeno fruto havia sumido ergueu-se em desespero repentino. A entidade mais poderosa de todas estava ali, atendera seu chamado, mas ela não via nada, ninguém. Girou em círculos procurando algo entre as árvores, um vulto, uma sombra, qualquer coisa. Nada.

“Quem oferendou-me rara e deliciosa preciosidade? Diga-me teu nome!”

A voz surgia de todos os lugares, ecoando nas árvores e vagando com o vento. O corpo de Anastacia estremeceu quase por inteiro, tomou coragem e disse vacilante:

- Meu nome é... - parou, tomou fôlego e disse dessa vez com maior determinação - Chamo-me Anastacia Le’Morg!

“Que queres de mim jovem donzela da Floresta Triste?”

Novamente a voz grave e onipotente a assustava, podia sentir a reverberação da voz dentro de si mesma.

- Quem... Quem sou eu? - após uma leve pausa continuou - Não compreendo que tipo de ser... A que tipo de raça pertenço! Por favor, grande Ceifador, procurei respostas em todos os cantos do mundo, busquei até o auxílio dos deuses, mas eles negaram-me resposta! Minha última esperança é o senhor... A única pista que tenho sobre quem sou é esse cordão. - e puxou um cordão grosso de prata pela gola do vestido. O cordão possuía um pingente com três “vês” gravados e ela o segurava como se fosse seu maior pertence. - Esse era o único bem que eu possuía quando despertei num campo de margaridas... Não lembro nada anterior a esse dia...

“Queres saber resposta que lhe foi negada pelos próprios deuses e para isso me oferece metade do Fruto de Nectarina e pó de falsas pétalas da Estigma Prateada???”

A voz abrandou-se e dessa vez ecoou tão forte que até mesmo o chão pareceu tremer, não apenas por conta das vibrações, mas também por medo.

- Desculpe-me meu senhor! É contra meus princípios tirar a vida de uma planta. Para minha pessoa, neste mundo, as plantas e os animais são os únicos seres viventes que têm o direito de vagar em plena liberdade. Mas se provoquei sua ira senhor, penso que...

“Pensa? VOCÊ PENSA???”

O céu nublou de imediato, trovões e relâmpagos quebravam o silêncio da noite e o vento se tornava cada vez mais forte. Anastacia ficou de joelhos e baixou a cabeça, pensou em qualquer coisa para dizer, mas não encontrou nada que pudesse aplacar a ira de grandiosa entidade. De repente tudo parou, o céu ficou limpo, o silêncio estridente tornou a preencher o local e apenas uma brisa sutil permanecia. Passos simples eram ouvidos e uma voz de criança aplacou o silêncio:

- Se realmente pensasse compreenderia bem as lendas que dizem que amo rosas negras. Filha, não era preciso que te sacrificasse tanto para encontrar-me.

Uma pequena e carinhosa mão tocou o rosto dela, Anastacia se sentiu pela primeira vez plenamente livre, não sendo perseguida por um passado desconhecido. Quando a pequena mão de criança parou de tocá-la ela se sentiu novamente vazia. Ergueu a face para vê-lo.

Ele não parecia ter mais de nove anos, os cabelos curtos e negros eram muito belos, os olhos eram também completamente negros e pareciam refletir um céu de infinitas estrelas, sua pele era branca e vestia um manto escuro. Em sua outra mão carregava um estranho báculo de quase dois metros que lembrava um galho de árvore retorcida.

- Senhor? Essa é sua aparência? – ela não conseguia conter sua curiosidade.

- Não, esse é um de meus muitos avatares, meu preferido. Quero que pare de chamar-me de senhor, estou farto disso. Deve chamar-me por Mordred de agora em diante.

- Mordred...? Por acaso seria seu verdadeiro nome?

- Não, apenas um nome que muito gosto. Não possuo nome.

Ele demonstrava uma simpatia enorme, sorria com tranqüilidade enquanto a olhava nos olhos. Anastacia não podia compreender como um ser tão superior podia tratá-la quase como uma igual. Não tinha mais medo, na verdade sentia agora uma estranha e enorme afeição por ele. Tinha desejos de agarrar aquela pequena criança, enche-lo de mimos e beijos, cuidar dele como se fosse seu próprio filho. Nem se deu conta de que estava sorrindo, percebeu menos ainda que não conseguia parar de sorrir para ele. Com algum acanhamento pediu:

- Senh... Mordred. Poderia ajudar-me?

- Claro! Esperei muito por esse dia, você é minha filha mais preciosa. Dou maior valor a ti que aos deuses. Eles não a ajudaram por pura inveja e medo de interferir em seu destino.

Anastacia se espantou com as palavras dele. Como poderia ser para ele mais preciosa que os deuses, seus próprios filhos? Ficara mais confusa do que antes.

- Bom, então queres saber sua origem. Aviso que podes não gostar.

- Não me importo! Preciso suprir essa necessidade que me corrói a alma.

- Uma necessidade quando suprida apenas abre portas para novas necessidades.

Pensou nas palavras dele por alguns segundos, sabia que havia riscos em conhecer seu passado e compreendia parcialmente o que ele tentava lhe dizer. Antes que conseguisse formar uma linha de raciocínio ele perguntou:

- Algum sonho repetidamente invade suas noites?

Anastacia se abalou um pouco com aquelas palavras, mas no fundo estava preparada para aquilo. Como poderia um criador de mundos não saber o que ela sonha?

- Sim. Sempre o mesmo sonho onde sou outra pessoa, uma jovem chamada Laeria, irmã mais nova de um jovem chamado Sirian...

- Concentre-se nesse sonho. - disse ele enquanto repousava a mão em sua cabeça - A partir de agora seus sonhos serão mais claros e contínuos, por intermédio deles você entenderá os passados que modelaram seu presente.

A bela ninfa aos poucos foi se relembrando de seus sonhos e também encontrando lembranças há muito tempo perdidas, sentiu-se sonolenta e deixou-se cair em um sono profundo onde finalmente começou a entender as origens de sua existência com imagens tão nítidas quanto a própria vida...

Ao acordar ele havia desaparecido, mas não importava. Sabia que ele sempre estaria olhando por ela, e agora compreendia seus dois passados distintos. Um como a jovem e humilde Laeria, outro como uma bela ninfa chamada Ninse...