O seu melhor momento

Era uma bela casa, uma bela varanda e a senhora em uma cadeira de balanço absorta em seus pensamentos, olhando o nada, parada no tempo.

De repente, algo lhe chamou atenção. Ficou observando por um bom tempo, se aproximou, chegou bem perto e perguntou:

- Quem és?

- Quem é você, disse ela. De onde veio? Eu te conheço?

- Muito mais do que imaginas! Pode acreditar.

- Eu não o conheço, tenho certeza!

- Conheces sim! Bastante! Vivo junto às pessoas o tempo todo, mas elas não me vêem. Morrem de medo de mim, porém vivem a me chamar.

- Deve estar perturbado, nunca o vi.

- Não me vês, mas constantemente me chamas.

- Isso é um absurdo! Chega de mansinho e vem com essa conversa estranha! Invade a minha vida, tira-me de meus pensamentos, minhas recordações, e, ainda tem a audácia de dizer que te chamo. Realmente deves estar confundindo-me com outra pessoa.

- Bem, então, vamos fazer uma retrospectiva dos nossos bons momentos.

- Queres começar na ordem crescente ou decrescente?

- Como assim? ... crescente... decrescente...!

- Recentemente estavas ansiosa por que queria ver teu filho mais velho bem casado, com a pessoa que gostavas, lembra? A tua filha mais nova arrumou um bom emprego, casou-se com um bom partido, foi morar bem longe, era tudo que querias. O teu filho do meio está na faculdade e já pensa em arrumar a vida, assim como os outros.

-Está bem informado, hein! Como sabes disso? Nunca permiti que estranhos entrassem em minha intimidade.

- Pois é, sei mais do que imaginas!

Lembro perfeitamente do dia em que nascestes. Primeira filha do casal. Linda! Quando começou a dar os primeiros passos até caminhar firmemente. Quando foi pra escola pela primeira vez, como choravas! Quando arrumou o primeiro namorado, quando deu o primeiro beijo. Fantasias e mais fantasias. Sabores e dissabores. Contentamento e descontentamento. Uma vida bem vivida. Como eras feliz!

- Tens saudade desse tempo?

- Muita!

Saudade dos amigos lá da rua, do banho de cachoeira, das bonecas que a mamãe fazia, do cheiro bom de cocada da vovó, do Fofinho, nosso gato. Das galinhas cantando no terreiro. Do vôo das borboletas coloridas, das libélulas que amarrávamos pelo rabo. Que vida maravilhosa!

- Quem és? De onde te conheço? Como ousas falar da minha estória? És meu parente? Se me conheces desde o meu nascimento, como ainda te conservas assim tão jovem?

- Não gostaria de se tornar jovem para sempre? Assim, como eu?

- Isso é impossível.

- Claro que não!

- Jovem para sempre, eternamente.

- Isso é possível?

- Claro que sim! Se conscientemente quiseres!

- O que preciso fazer?

- Podemos congelar o período existencial dos momentos mais felizes e introduzirmos para sempre na eternidade.

-Só um período?

- Sim, só um.

-Qual me sugeres?

-Que tal quando tinhas dezoito anos?

- Esse não, eu era muito insegura.

- Eras tão linda!

- Mas me achava muito feia, gorda, desajeitada.

- E quando tivestes o primeiro filho?

- Esse foi muito bom, entretanto, naquela época não havia fraldas descartáveis, nem máquina de lavar.

- Chega! Já dei muita sugestão. Escolhas tu!

- Ah! O melhor momento de minha vida foi quando, mesmo doente, o meu amor vivia juntinho a mim. Eu podia vê-lo. Tocá-lo. Cuidar dele. Hoje sou só solidão. Vivo de lembranças.

- Congelar esse momento não seria possível.

- Por quê?

- Porque o teu momento mais feliz não pode ser o momento infeliz de ninguém.

- Que tal escolher um momento feliz só teu?

- Será que tenho esse momento feliz sem a participação de ninguém? Por exemplo: quando ganhei do meu pai a primeira bicicleta, ele ficou tão feliz quanto eu, minha amiga morreu de inveja. E quando levei o meu primeiro tombo, minha mãe sofreu junto comigo.

- Ai, meu Deus! Como é difícil essa escolha!

- Não chame ELE!

-Ele, quem?

- Alguém me chamou? - No que posso ser útil?

- Já estou resolvendo. - Não se meta em meus assuntos! Intruso!

- Quem é esse outro aí?

- É um velho nosso conhecido, deixe ELE pra lá. Vai querer interferir em nossa decisão, como sempre. Não o escute.

- Por que não?

- Porque ele quer ser mais esperto.

- Deixe-o falar.

- Pois bem, se queres. Que fale! Depois não diga que não avisei.

- Obrigado.

- Meu amigo e eu estamos tentando escolher o meu momento mais feliz para gozar eternamente.

- E a evolução?

- Como podem querer congelar um momento, um período, um tempo? Já vivemos na eternidade.

- Como assim?

- Eu não disse que Ele ia complicar.

- Cada momento é um instante eterno, pois fica gravado na memória. Se congelares um momento, não terás oportunidade de viver outros para lembrar.

-Cala boca, intruso! Em compensação, ela terá que lembrar dos momentos infelizes também. E a morte já anda a espreita.

- Não há morte. A consciência é contínua. Já vives na eternidade.

- Quer dizer que sou eterna?

- Eterna não, imortal, sim.

- Tua consciência estará sempre se manifestando, continuamente.

- Se congelares o período existencial dos momentos mais felizes e introduzi-lo para sempre na eternidade, serás eternamente infeliz. Depois do teu primeiro momento feliz não tivestes centenas de outros?

- Com certeza, tive sim.

- Será que não farás por merecer e conquistar centenas de outros momentos felizes na eternidade?

-O que! espertinho! Estás usando do artifício da dúvida, como Eu. Essa estratégia é minha. Quem é o demônio aqui?

- Quem são vocês?

...

MARLENE LEOCADIO
Enviado por MARLENE LEOCADIO em 21/03/2008
Reeditado em 20/06/2008
Código do texto: T910320
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