Primeiro Encontro

O nome do soldado-aranha era conhecido por todos na vizinhança: Oficial “Sete Pernas”. O responsável por ele ter recebido esta alcunha era também notório: uma jovem ladra chamada Ixia. Naquele exato momento, Lothar estava segurando Ixia pelo colarinho do sobretudo de couro, olhando-a como quem contempla um troféu muito cobiçado.

— Ora, ora, se não é minha inestimável amiguinha... quanto tempo Ixia?

— Não é um prazer revê-lo, Oficial “Sete” – retrucou com alguma dificuldade por causa da posição em que estava.

— Você sabe que estava ansioso por nosso reencontro, não sabe? – içando-a a uma altura ainda maior com os braços, os únicos membros de seu corpo ainda vagamente humanóides.

— Oficial... veja... eu sinto muito pelo acidente com sua perna. Mas olhe pelo lado positivo. O senhor ainda tem... outra sete! – disse com um sorriso escandalosamente sarcástico.

— Muito gentil de sua parte recordar-me esse detalhe – disse rangendo os dentes, retesando o corpo aracnídeo. Aproximou-a de si, ficando cara-a-cara com ela. Continuou – Serei bastante breve, mocinha. Vou cobrar o prejuízo na mesma moeda, se é que você me entende...

Ao dizer isso, olhou maliciosamente para as coxas da menina, esboçando um sorriso malévolo com os afiados dentes metálicos. Em seguida, sua pata dianteira moveu-se com um chiado. A extremidade, à medida que se aproximava do corpo de Ixia, abriu-se em duas metades, revelando uma serra circular já em funcionamento.

A garota olhou rapidamente à sua volta, um tanto apavorada: não havia ninguém que pudesse socorrê-la. Teria de contar com a sorte que, até então, nunca falhara. E ser muito, muito rápida. Em um instante, arquitetou o plano. “É agora ou nunca!”

— Senhor Oficial Lothar – gritou, suplicante e agitada – por favor! Eu tenho uma proposta, sim?! Uma proposta!

— Vejamos. Talvez hoje seja seu dia de sorte, mocinha. – diminuindo a velocidade da serra.

Aproveitando a oportunidade, enquanto o bizarro policial divertia-se com a própria ironia, Ixia livrou-se do casaco, escorregando até o chão. Ao tocar no solo, pondo à prova todos os seus anos de prática, sacou sua pistola, encostando a boca do cano na articulação da sétima pata mecânica – a mesma da ponta-de-serra. Dedo no gatilho, o disparo estrondoso esfacelou ligamentos metálicos e tubulações de borracha, espalhando aço retorcido, parafusos e uma nuvem de vapor pressurizado por todo o beco. A jovem correu como louca na direção oposta, saltando o muro de tijolos no final da ruela sem saída onde fora capturada. O soldado-aranha perdeu o equilíbrio e a noção do espaço, caindo de cara no asfalto. Ele urra como o monstro que era. Tiros de suas pistolas pesadas ecoaram no beco, sem direção definida. Ixia fugira dele mais uma vez.

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Krinn observava atento o motor à vapor em funcionamento; o antracite¹ que conseguira era suficiente para fazê-lo quase entrar em colapso. O propulsor elétrico estava pronto, e alinhado. Rapidamente, o estudante posicionou-se no assento, afivelando firmemente as correias no peito e nas pernas. Com um movimento, acionou o arranque da hélice acima da cabeça, que, ruidosamente, iniciou sua rotação com um solavanco. Estava tudo pronto.

Respirou profundamente. Com o polegar, premiu o botão no topo do manche, acelerando a hélice a fim de testar o mecanismo. Um redemoinho de poeira e folhas levantou-se à sua volta, no bagunçado quintal de seu estúdio. Com o pé, Krinn livrou a trava do propulsor elétrico. Cinco segundos até a descarga acionar a catapulta. Quatro segundos. Cobriu os olhos com os óculos especiais. Três segundos. Um último olhar para a o altímetro. Dois segundos. Lembrou que o antracite seria combustível suficiente para, no máximo, três horas. Um segundo. Teve impressão de ouvir uma voz feminina. Zero! O som agudo das baterias irrompendo a descarga elétrica no mecanismo propulsor.

Uma garota, vinda não se sabe de onde, atirou-se no colo de Krinn no instante em que as molas estouraram, jogando o veículo e seus dois tripulantes a uma velocidade alucinante em direção ao céu.

O rapaz acelerou. A caldeira fervente e o motor impulsionaram a hélice da obra-prima do jovem técnico, mantendo o veículo estabilizado no ar, exatamente como no projeto.

— Funciona!!! Funciona!!! Estamos voando!!!

Só então, passada a emoção de seu enésimo teste – desta vez com êxito – o rapaz dá-se conta da situação mais que inusitada.

— Puxa... eu não esperava ter um passageiro logo na primeira viagem. M-muito prazer – disse, um pouco timidamente, e um pouco nervoso, pensando que o motor poderia não dar conta do peso – meu nome é Krinn.

— O prazer é todo meu, Krinn. Meu nome é Ixia.

A visão das luzes da Cidade-Continente era inexplicável da altura onde estavam. À distância, chegava a ser bonita, quase romântica. Um vôo de algumas horas levou-os para longe de sua vizinhança, do laboratório, dos subterrâneos onde os bandidos se escondiam dos Soldados-Aranha. Assim foi o primeiro encontro de Krinn e Ixia.

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Depois desse dia, Lothar passou a ser chamado Oficial “Seis-Pernas”.

¹Antracite: variedade compacta e dura do mineral carvão que possui elevado lustre. Difere do carvão betuminoso por conter pouco ou nenhum betume, o que faz com que arda com uma chama quase invisível. Os espécimes mais puros são compostos quase inteiramente por carbono. Um antracito libera alta energia por quilo e queima limpidamente com pouca fuligem, o que o faz uma variedade carvão procurado e desta forma de valor mais alto.