Um Projeto de Vida

As sombras, sons e odores lhe passavam sem resistência, sem marcas e sem réplica. Encostado ali, naquele canto, poderia bem ser tomado por arte qualquer a adornar o recinto. Passaria incólume se a luz, de quando em quando, não lhe ofuscasse a vista e denunciasse sua presença. O olhar focava lugar nenhum, indicando um devaneio distante, melancólico.

O episódio de hoje à tarde o atormentava. Aquele estúpido erro provocou muito mais que um mal-estar. Provocou a sua vida inteira. O arquivo anexo à mensagem eletrônica, não continha somente os detalhes corriqueiros de local, data, horário e contexto. Miseravelmente lhe foi enviado um dossiê com nomes, contatos, profissão, família... tudo. Ele pensou em fechar o arquivo, mas já era tarde demais. Sua mente lia e absorvia impressionantemente rápido qualquer tipo de informação. Fosse uma página da lista de endereços, um mapa ou prospecto técnico. Só não podia ser um dossiê, contendo os dados da pessoa que ele iria matar.

Nunca conheceu o morto. Há anos vivia na mais completa alienação. Distante de rádio, televisão ou jornais. Mídia escrita ou falada, a nada assistia. O dinheiro era depositado em duas ou três contas distintas, abertas em nome de laranjas ou mesmo de defuntos. Se fosse coisa grande, o dinheiro ia lá “pra fora”.

Podia usar qualquer nome, pois já não fazia a menor diferença. Estava pensando em se aposentar em dois anos, no máximo. Mas isso era segredo. Se alguém tivesse a menor desconfiança disso, seu tão desejado descanso seria eterno.

Nunca se confessou. Compartilhava apenas histórias fantásticas e vivia personagens virtuais. Mais que o suficiente para ter mulheres e amigos de ocasião. Não ficava mais que um ano na mesma cidade, porquanto não se apegava a nada material. Exceção feita aos seus livros de contos. A despeito do incompreensível preconceito por essa cativante forma literária, amava as histórias rápidas e intensas, sobretudo as heróicas, de Alexandre Herculano à Gilles Massardier.

Enviava todo mês o dinheiro que mantinha pelo menos uma dúzia de crianças no Lar em que crescera. Amava a Irmã Maria e aquele sentimento de entrega que ela nutria por seu projeto de vida. Às vezes, ria com ela dizendo que ele só tinha projetos de morte. Ela nunca entendeu. Melhor assim.

Olhou o relógio que marcava exatamente 21:55h e uma bebida foi servida no Pub próximo a ele. Desprendeu-se, suavemente chegou ao balcão e, elegantemente, pediu um coquetel especial. Sorriu ao homem de terno azul e corte alinhado que observou a sua chegada. Esse o respondeu com uma educada reverência com a cabeça. O homem virou-se, tomou o copo e o levaria à boca se o seu braço não fosse contido pelo estranho que mal acabara de cumprimentar. Por uma fração de momento se olharam, ambos surpresos e mudos. E antes que o outro fizesse qualquer inquisição, colocou o dedo indicador ereto sobre os lábios sinalizando silêncio. Com calma absoluta segurou o copo e, lançando um olhar de extrema frieza, falou:

- Dentro desse copo, a poucos centímetros de tua boca estava a morte. Ácido prússico. Provoca terríveis queimaduras no sistema digestivo, perderias a consciência e teria morte súbita por parada respiratória. Não haveria socorro. Apenas a breve agonia e o fim.

Veja o relógio - apontou na parede enquanto com a outra mão despejava o liquido maldito na pia e abria a luxuosa torneira - marca quase 22:00h. Nascestes novamente e, acredita, somos gêmeos.

- Vai daqui – continuou – sem olhar para trás. Vai para tua casa, ama tua mulher e beija teus filhos. Faz da tua vida, não importa o quanto dure, o teu melhor.

O homem tentou balbuciar alguma coisa, mas não conseguiu. Procurou pelo barman que, distante, preparava distraído um coquetel.

- Tua conta será paga – tranqüilizou.

Deu os primeiros passos de costas, não conseguia tirar os olhos daquele insólito homem. Virou-se e foi embora, agora rapidamente.

Ele então, tirou o dinheiro da carteira e pagou as duas doses. Já ia deixando o lugar quando escutou o jovem gritar-lhe por detrás do balcão:

- Senhor, o coquetel!

Ele então fez cara de desagrado, balançou a mão espalmada e respondeu;

- Não, obrigado. Não bebo mais.