A Síndrome do Corpo Alienígena

Olhos lentos, estranhos. Pálpebras pesadas. O que estava havendo ?

Ernst fez um esforço maior, e conseguiu entreabrir os olhos. Imediatamente, foi tomado pela estranheza. Onde exatamente viera parar ?

“Estrelas, tantas delas. Nunca vi tantas.”

Para onde ele olhava, de um posicionamento que acabou por reconhecer como horizontal, afinal nada mais faria sentido, milhares de corpos celestes ocupavam a paisagem. E planetas.

“PLANETAS ???”

Sim. Um gigante gasoso de aparência irreal, perto demais, para parecer seguro ou coerente, circundado por três luas ambarinas. Parsecs distantes à frente, milhares deles, visíveis, sabe-se lá Deus como, dois outros planetas, menores que o gasoso. Ambos vermelhos.

“Isso não faz sentido, droga. O QUE EXATAMENTE ACONTECEU COMIGO ???”

Parsecs. Palavrinha esquisita. Uma medida de distância espacial, criada no fim século XX. O começo de tudo. Comunicadores de seriados de ficção científica viraram aparelhos telefônicos portáteis celulares, teletransportes aboliram o uso de carros, aviões, navios.... bioleitos que praticamente curavam os doentes sozinhos.

E as viagens espaciais, nas naves com motor de dobra. A transdobra, há cinqüenta anos atrás. E com a transdobra... viagens no tempo. Tão fáceis e seguras quanto as viagens orbitais, na segunda metade do século XXII.

Ernst lembrou-se de quem era. Cientista Temporal K3-18, Observador.

“A pergunta não é ONDE, mas QUANDO.”

Ele fugira de 2234. Tinha coisas a fazer no futuro. Gabrogl queria que ele fosse. Ela estava ansiosa por novos pastos, e seu tempo já não era seguro. Ele era tão cuidadoso, sempre. Cuidando dela com o ciúme de um amante, o desvelo de um pai. Dando liberdade a ela, pesquisando os alvos, deixando-a se divertir, mas evitando que houvessem conseqüências temporais de suas brincadeiras. Gabrogl não gostava de seus cuidados, que ela dizia excessivos, mas deixá-la livre, ser pega ? Nunca ! O Sistema Judiciário continuava, ao longo das eras, castrador. Não entendia a beleza de determinados milagres acidentais.

Os sons o tiraram dessas reflexões. Zumbidos baixinhos que antes nem o incomodavam, agora eram reconhecidos como vozes. Três. Ernst fez força para descobrir a origem das vozes, incomodado com a tremenda dificuldade em fazer os próprios olhos manterem-se abertos, e girarem no sentido desejado.

Pela primeira vez desde que tomara consciência de si mesmo, ele percebeu que não conseguia perceber o próprio corpo. Era como uma consciência fantasma, sem casa, exilada mas presa, já que não podia voar para onde desejasse. Ernst girou lentamente os olhos, e conseguiu um pouquinho mais de visualização da sua situação.

O teto estrelado revelou-se uma abóbada protegida por algum misterioso campo de força. Ao redor, sons suspeitos passaram a acompanhar a conversa. Instrumentos variados, sem dúvida. À sua cabeceira, um painel bastante sugestivo, com a exibição do que pareciam ser seus sinais vitais.

“Hospital. Acidente ? Eu me feri ? E... Gabrogl ??? Minha linda Gabrogl ?”

Ernst desesperou-se. Será que eles tinham finalmente descoberto Gabrogl ? Aquelas pessoas do futuro, que com certeza não a compreenderiam ? Que tentariam matá-la, tirá-la dele ?

“Que inferno, por que não consigo me mover direito ? Será que sofri algum dano neurológico ? Ah, não, por favor, isso não, minha Gabrogl, eu não vivo sem minha maravilhosa Gabrogl...”

Mais dor. Um esforço maior. Os olhos de Ernst finalmente completaram o percurso para a direita, e ele viu... reconheceu a dança, que tantas vezes o fascinara. E que agora fascinava os três médicos altos e de aparência imaculada ao lado de seu leito, com os olhos fixos nela.

Gabrogl. Sua mão direita. Que os imbecis de 2234 diziam ser a seqüela inesperada de sua microlobotomia a nível celular. A Síndrome da Mão Alienígena. Como se, com um procedimento médico medieval, embora utilizando a mais moderna tecnologia médica, fosse possível eliminar os neurônios “doentes” de alguém... Doentes... o que havia de errado com Gunther, sua Voz interior ? Ele era um gênio, todos reconheciam isso, não havia melhor Observador Temporal na Divisão.

“Bobagem, só porque Gunther às vezes era... violento, não havia motivo para terem-no retirado de mim. Ele me defendia... ele cuidava de mim, ele me dizia onde cortar, como estrangular, ele era tão... livre... tão DELE mesmo...”

Esquizofrenia, fora o diagnóstico daqueles velhos babões. Cretinos. Não era esquizofrênico, só tinha um amigo muito especial, qual o problema com aquilo ?

Lobotomia feita, Gabrogl nascera. Síndrome da Mão Alienígena. Uma mão que passava a ter personalidade própria, movimentos independentes, alheios ao dono do corpo ao qual pertencia. O dono queria usar uma roupa verde ? A mão alienígena pegava a vermelha. O dono queria abrir a porta ? A mão alienígena a fechava. O dono queria fumar ? A mão alienígena o queimava com as brasas do próprio cigarro. Síndrome da Mão Alienígena. Bobagem.

Gabrogl não era uma Mão Alienígena, era sua Amiga. Eles lhe tiraram Gunther, deram-lhe Gabrogl. Só por isso, Ernst a segurara, quando ela tentara verter veneno nas bebidas daqueles médicos. Todos rindo, os imbecis, crentes de que o haviam “curado”, devolvido à Divisão de Pesquisas Temporais um agente 100% eficaz, um mantenedor dos Princípios. Pois sim.

Ernst voltou a prestar atenção à sua mão direita. Ela obviamente despertara antes dele, e agora conversava animadamente com os médicos, na linguagem de sinais para surdos-mudos que Ernst fizera questão de lhe ensinar, para poder conversar melhor com sua amiga.

Era lindo, a forma suave e veloz como ela encadeava as letras, formava as palavras, expunha os pensamentos... lindo mas ao mesmo tempo estranho, porque só ela se movia, e seu corpo continuava tão... inexistente ?

“Não importa, pelo menos Gabrogl está bem. Só ela importa. Só ela, e...”

A conversa dela com os cientistas não fazia sentido. Que papo era aquele de extirpação vivificante ? Braço andróide em suporte locomotor independente ? Longevidade aumentada ? Consciência preservada ? Descarte do...

CORPO ALIENÍGENA ????

NÃÃÃÃÃÃÃÃÃO !

“Gabrogl.... nãããão ! Não faça isso comigo, eu te amo !!!”

Mas, apesar do desespero de Ernst, do qual Gabrogl estava perfeitamente consciente, uma vez que ainda se encontrava unida a ele, ela foi em frente. Planejara tudo, seduzira o louco idiota com promessas de uma vida juntos, de companheirismo, amizade, compreensão. Ele caíra tão facilmente, aquele corpo carente de aceitação.

Depois de passar meses tendo de esconder a própria ira, ao ver-se cerceada por aquela nulidade, que não lhe permitia matar à vontade, tudo acontecera dentro do planejado: o poderoso sonífero minutos antes da missão, a sabotagem da Célula Temporal, a viagem sem registros para 3581, onde havia a tecnologia capaz de desligá-la daquele despojo humano.

Fora tão fácil comunicar-se com aqueles médicos. Gabrogl sabia bancar a menininha desamparada, quando queria.

Síndrome do Corpo Alienígena ? Eles jamais ouviram falar, só da Síndrome da Mão Alienígena. Doença nova, convenceu-os Gabrogl. Tendo à sua frente o corpo inconsciente de Ernst e a verborragia manual de Gabrogl, aqueles homens tiveram de engolir a história de um corpo que a espancava, amarrava, torturava. Aceitaram, finalmente, libertá-la dele.

Ernst, desesperado e mortalmente ferido na alma, com a traição de sua idolatrada Gabrogl, viu-se sendo preparado para a fatídica cirurgia. Um feixe de varredura térmica o faria totalmente asséptico, condição essencial para a Vivissectomia Superior.

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- CARTER ! Como você pôde ?

- S-senhor, doutor, já estava graduado assim, eu juro !!!

- A DOIS MIL graus ? Impossível !

- Confira o senhor mesmo. Não sei o que houve, o feixe já foi usado antes, e estava tudo normal, e...

- Suma da minha frente !!!

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Penalizado, o Dr. Anton Brunnel olhou para os restos carbonizados de Ernst e Gabrogl. Como iria explicar aquilo para o Departamento de Pesquisas Médicas ? Uma doença nova, a Síndrome do Corpo Alienígena, obviamente raríssima, e tal espécime fora perdido daquela forma estúpida, impensável ?

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Abandonando naquele momento o Centro Médico da Base Estelar 856, em órbita de Cygnara II, John Carter sorriu, alisando de forma discreta a própria mão direita. Sua temperamental Vahrnar ainda era a única Mão Alienígena dali. Ele não suportava competição, e ela, menos ainda. Vahrnar o beliscou com força, em retribuição, e a dor o fez sentir-se em paz.

“Hoje, temos que comemorar. Vou deixá-la matar dois.”

FIM

OBS: A Síndrome da Mão Alienígena é uma doença neurológica real, felizmente rara, causada por traumatismo ao cérebro, acidental ou induzido (nos casos muito graves de epilepsia), onde as duas metades do órgão são virtualmente separadas. Esta é a bizarra e muito possível seqüela. A Mão Alienígena revela-se um apêndice que age totalmente à revelia do paciente, e com freqüência de forma inversa ao desejo da pessoa. Como descrito no conto, se a pessoa retira uma roupa verde do armário, a Mão Alienígena a devolve; se a pessoa abaixa as calças para se despir, a Mão Alienígena as faz subir; a Mão Alienígena rouba comida do prato de outras pessoas em restaurantes, aferra-se a portas e não as solta, por mais que a pessoa queira sair daquela situação. Imaginem as circunstâncias vergonhosas a que tal Mão é capaz de levar o seu portador.

Assisti um programa falando a respeito dessa doença no canal a cabo Discovery Health, e fiquei fascinada. Na Internet há páginas e artigos que citam esta patologia, mas o material não é grande; obviamente, a Mão Alienígena encontra-se em estudo, na tentativa de minorar o sofrimento dos pacientes (vi no programa da TV mais de uma pessoa que chegava a amarrar a própria mão junto ao corpo, para impedi-la de cometer atos rebeldes, e outros que pensavam com seriedade em amputá-la).

Sem dúvida, todas aquelas historinhas e filmes de terror que têm como personagem principal uma mão aterrorizante, inteligente e vingativa vieram da inspiração que esta doença deu a seus criadores. Não pude me furtar a dar minha interpretação.

OBS 2: Este conto foi publicado na Scarium Megazine.

Mônica Virgo
Enviado por Mônica Virgo em 06/04/2005
Código do texto: T10099