VULCÃO

Filho de família abastada, desde cedo o pequeno Am havia demonstrado seu interesse pelos assuntos ligados à geologia.

Talvez por influência das histórias contadas pelo seu avô materno.

O velho Jean sentado na varanda da pequena casa de campo nos arredores de Amsterdam cachimbo de louça a soltar grandes baforadas com o menino Am ao colo, com os olhos arregalados perdidos no infinito tão azul quanto seus olhos e o do minúsculo auditório, lembrava e contava, com a força dos seus sessenta e tantos anos, as fantásticas histórias vividas nas minas de carvão...

Histórias arrepiantes do grisu em chamas, devorando homens em galerias desmoronadas...

Histórias de neve derretida, misturada ao carvão pisado pelas centenas de botas que num ir e vir sem fim faziam brotar das entranhas da terra o combustível para manter a França aquecida e rica...

A história que Am preferia era aquela de quando o avô, juntamente com dois colegas, estava martelando o veio principal de carvão e apareceu uma pedra branquinha, transparente como sal.

Os olhos do velho jamais se enganavam.

Estava ali a sua redenção e a dos dois colegas.

O trabalho era penoso naquelas condições de pouca luminosidade, coisa para peritos.

Mas a custa de trabalho esmerado, veio à luz um diamante perfeito com trinta centímetros de tamanho por cinco de diâmetro...

Removido com o cuidado de quem tira argueiro no olho de um filho pequeno, o diamante foi levado escondido na calça do velho Jean para a casa onde moravam as três famílias.

À noite, sob a luz mortiça da única lâmpada que possuíam os três amigos resolveram partir o diamante.

Com uma única martelada a pedra se desfez num sem número de pedrinhas brilhantes que foram divididas em partes iguais, graças a uma balança improvisada.

No dia seguinte o velho Jean foi ao escritório pedir para ser mandado embora.

Estava velho e cansado...

Queria ir para Paris...

Tentar outra vida...

Seria lixeiro, pois a prefeitura pagava bem.

Foi demitido e à tarde, com os míseros francos no bolso, sacolas contendo roupas e um pouco de comida, embarcou com a mulher Maria e a filha Caroline no trem que levava o carvão.

Chegaram quando o dia seguinte estava clareando.

Na rua dos ourives vendeu a um judeu, duas pedrinhas por um bom dinheiro.

Procurou um hotel onde pudesse tomar banho e comer de verdade.

Foram ao comércio e compraram roupa nova para os três e passagem no trem para Bruxelas...

Da Bélgica, pegaram um barco para a Inglaterra...

Pegaram um barco para a Alemanha e finalmente um trem para a Holanda.

Naquela época bastava que o viajante portasse um atestado de boa conduta da prefeitura da cidade de origem.

O velho Jean, sabiamente, havia trocado o atestado em París e em Bruxelas, jurando pelo rei Boudoin que queria se instalar no interior belga e que se não tivesse o atestado fornecido por Sua Majestade não iria arranjar emprego.

Para sua felicidade o funcionário era francês e facilitou as coisas.

Com o atestado belga, Jean e a família viraram turistas em férias e foi fácil passar de um país para outro sem deixar rastro.

Finalmente na Holanda, instalaram-se em Amsterdam com uma pequena loja onde vendiam tudo, inclusive os livros que o estudante Petrus ia procurar, motivo mais que justo para namorar Caroline, que já falava o holandês quase tão bem quanto o francês pátrio.

Na universidade o pequeno Am se interessara desde cedo pelos terrenos geologicamente antigos do novo mundo.

Sua tese, na defesa do doutorado, foi baseada na planície sedimentar da América do Sul, conhecida como planície costeira do Brasil.

Isso lhe valeu bolsa fornecida pela Embaixada brasileira em Haia, onde ainda repercutia o feito histórico de Ruy Barbosa, o águia.

No Brasil o pequeno Am conheceu Carlota, professora de cristalografia e sedimentologia, recém formada.

Foi amor à primeira vista, juntos fizeram concurso para a UnB e lecionavam a um bom par de anos.

O pequeno Am, hoje Dr. Ioannis van Siegen, montara recentemente o laboratório de rastreamento sismológico de Brasília e, toda semana passava uma noite de plantão, com os olhos fixos nos ponteiros que lentamente iam rabiscando nos cilindros, os abalos provocados por pequenas acomodações quilômetros abaixo da superfície.

Mas algo de muito estranho estava acontecendo nesses últimos cinco dias.

Movimentos tectônicos nas camadas inferiores, numa linha entre Maceió/AL e Mossoró/RN.

Nessa linha imaginária, estava acontecendo algo que não ocorria desde o Cambriano...

Era um tumor maligno, em movimentos cadenciados, espasmódicos, que intermitentemente contraia e relaxava os tecidos geológicos.

Algo pulsante, vivo como um animal prestes a sair do ovo.

Eram 06:15 GMT, quando tudo aconteceu.

Os sismógrafos, como loucos, gritavam por suas agulhas, denunciando algo terrível.

O terremoto atingira 8.3 da escala Richter. E em menos de meia hora, repetiu com maior intensidade.

Possivelmente uma rachadura pouco acima da pirosfera fizera o continente ser abalado, como um bolo de quem se corta uma grande fatia.

Em pouco tempo já se sabia que o epicentro ocorrera na vila Pedreiras/PE.

O Dr. Ioannis ligou para o Departamento de Assuntos Civis do Ministério das Minas e Energia e solicitou condução para vir ao local do terremoto. Ele precisava ver de perto o que acabara de acontecer.

A Reitoria da Universidade Federal de Pernambuco, já havia colocado, ao dispor do Dr. Ioannis, todo sistema universitário que sob a coordenação do professor catedrático de Geologia Dinâmica, já seguira para a vila Pedreiras.

Um dos objetivos era a confecção, in loco, do mapa geológico capaz de explicar como, um terreno tão antigo, fora susceptível a um abalo naquela magnitude.

Em casa, enquanto colocava alguma roupa na sacola, o Dr. Ioannis explicou à esposa o que havia visto e para onde iria.

Seguiram os dois para o aeroporto onde um jatinho já os esperava, pois Carlota não perderia por nada, uma viagem dessa natureza.

Do aeroporto de Caruaru seguiram num jipe para o sertão.

Além do material geológico, o reboque levava os mantimentos, pois a equipe teria que ser auto-suficiente por uma semana.

A vila Pedreiras ficava num vale semicircular, cercado de montanhas graníticas.

Não havia dúvida de que se tratava de antigo cone vulcânico.

O solo, a barlavento, apesar de rochoso, era fértil e o filete de água que raramente secava, contrastando com os demais todos pulsáteis, alimentava a agricultura de subsistência.

A subida foi penosa...

Havia rachaduras na estrada que precisavam ser contornadas para não engolir o jipe.

Finalmente na boca da noite, entraram no que restava da cidade e viram uma cena insólita.

Todos sentados no chão, em volta da fogueira, tomavam uma refeição e o padre de pé no meio deles entoava um salmo.

Com a fisionomia cansada, mas sorridente, o padre convidou os recém chegados a participar da sopa.

Depois que a maioria se retirou, sentados nos degraus semi destruídos da igreja, o padre explicou aos doutores o que havia acontecido.

Eram pessoas de nível cultural capazes de dissipar a pressão psicológica que um cataclismo daquela magnitude produz.

O padre contou com detalhes todo o ocorrido e deu as informações que o Dr. Ioannis precisava sobre a região.

Falavam em inglês para que os moradores não se animassem a participar da conversa.

O padre falou dos filetes de água quente e dos roncos que a terra dava.

Passava muito da meia noite quando todos foram dormir nas barracas que os estagiários haviam armado.

Havia possibilidade de novo abalo forte, devido aos pequenos que ainda estavam ocorrendo, em pequenos intervalos.

O Dr. Ioannis não conseguiu dormir. Deitado na cama de lona ficou observando o crepúsculo matinal.

Mas a natureza estava anormal...

Os pássaros não estavam cantando...

Com uma lanterna, saiu da barraca observando as rachaduras pelo chão. Nenhuma formiga.

Por quê?

Por que nenhuma mariposa nos lampiões acesos durante a noite?

Por que aquele silêncio?

Até o vento estava parado... ouviu um ronco profundo e sentiu um abalo forte.

Um dos flancos da montanha alta que se destacava na cadeia, desmoronou como a ponte levadiça de castelo medieval e ao mesmo tempo saiu das entranhas da montanha um jato de lava vermelho vivo, rolos de vapor e fumaça motivada pela queima da vegetação do entorno.

Todos se levantaram rapidamente para fugir da erupção.

Os gases sulfurosos densos preencheram o vale e uma chuva de cinza incandescente caiu rapidamente sobre o que sobrara da vila.

O que parecia ser antiga cratera se encheu de lava destruindo tudo, matando a todos.