A Herança do Medo ( II Parte e fim)

(Continuação)

IV

Terra

Como seria de resto inevitável, e durante o resto do tempo que se ultimavam os preparativos técnicos da viagem – cerca de dois anos – procedeu-se à escolha final dos voluntários.

Escolheu-se a nata dos cosmonautas, alguns astrónomos, cientistas de algumas áreas que fizessem sentido na missão, diplomatas, militares e respectivo armamento (aqui a houve alguma polémica, pois éramos acima de tudo um gente de paz, mas como medida de segurança perante o desconhecido onde íamos mergulhar, lá se tolerou a presença deles…), mecânicos, poetas, escritores, artistas plásticos para captarem a beleza da viagem e a registarem em obras certamente inesquecíveis, e por fim eu…Como historiador e entidade máxima de assuntos sobre a cultura e hábitos terrestres, a minha presença foi considerada indispensável perante o natural choque cultural que se adivinhava…Seria pois uma espécie de cronista, diplomata e tradutor. Mas todos partilhávamos algo em comum: ou não tínhamos família chegada, ou os voluntários conformaram-se à ideia de nunca mais se verem, pois havia um desígnio superior ao qual tudo deveria ser subordinado. Muitos desistiram pura e simplesmente da viagem, mas os escolhidos eram, na sua globalidade, sem dúvida os melhores seres que Aurora podia fornecer nesta ocasião solene.

Levávamos também diversas amostras da nossa cultura e espécies animais e vegetais de Aurora de forma a presentear com tal os nossos irmãos do planeta azul.

Seríamos pois cerca de trezentos homens e mulheres divididos em três naves: uma de combate onde concentrámos pequenos veículos cujo fim era aterrarem no planeta irmão, diversas sondas de prospecção que deveriam anteceder estes e diverso material indispensável à missão e cuja enumeração além de pecar por fastidiosa, também transcende os meus conhecimentos, outra como cargueira com a maior parte dos víveres e por fim a última onde se concentrava o pessoal científico e a respectiva aparelhagem, além de algumas, poucas, sondas que já não cabiam na sobrecarregada militar.

Seríamos então enviados até lá pelo “buraco de verme”.

Convém também acrescentar que apesar do tempo da viagem não ser muito longo (cerca de 3 anos incluindo a partida e o regresso) de termos abastecimentos para uma ida, volta e mais algum tempo de reserva, foi posto à nossa disposição uma espécie de câmaras criogenadoras que possibilitavam que um corpo se mantivesse vivo a baixas temperaturas mas conservando todas as suas qualidades e faculdades, ao contrário das primeiras, onde só se podia conservar algo de morto à espera que um dia no futuro o mal de que padecia o falecido tivesse cura, tratando-se então de reanimar esse corpo. A ciência evoluiu imenso e assim se conseguiu este tipo de preservação em seres vivos, de maneira a impedir o natural envelhecimento dos tripulantes em viagens espaciais mais demoradas. Mas à excepção de muito poucos, todos declinaram o convite, pois queriam aproveitar todos os segundos daquele momento impar.

Baseado no antigo pressuposto da teoria da relatividade, e como já foi dito acima, embora só demorássemos relativamente pouco tempo, esse tempo ter-se-ia passado muito mais depressa tanto em Aurora como na Terra. Apesar das mudanças poderem ser radicais naqueles que deixámos para trás e que iríamos encontrar, todos dispúnhamos duma fé inabalável de que a civilização se teria mantido, tal como acontecera sem interrupções desde a Idade Média terrestre. Podiam acontecer movimentações sociais e económicas de vulto, mas a civilização em si teria mantido a sua estrutura basilar, a sua coluna vertebral, a sua história, o cerne da socialização.

Todo o percurso seria em voo computorizado avançado de maneira a evitar chocar em astros ou estrelas que se atravessassem no caminho, com apenas algumas paragens em mundos que se pensavam habitados, ou muito belos, de forma a serem objecto de estudo dos nossos cientistas e captados pelos artistas. O povo de Aurora caracterizava-se por um enorme amor às artes, por uma sensibilidade pouco comum até em humanos, e dai esta excepção numa viagem que se queria célere. Mais do que a crónica daqueles dias feita por mim, interessava a visão desses artistas, pois as palavras poder-se-iam dissipar no tempo, mas a arte, a arte é para todo o sempre imortal, linguagem universal mesmo entre povos e espécies que não se conheciam.

Como era costume em naves de longo curso, as nossas foram construídas no solo, mas montadas em orbita para nos livrar da gravidade auroriana e assim poupar o sempre escasso combustível. Três portentos tecnológicos, os melhores do melhor que a civilização podia dar, autenticas obras artes da engenharia aeroespacial, o passaporte para o futuro de toda a humanidade.

E a viagem…Foi antecedida de homenagens e honrarias sem fim aos novos futuros heróis, escreveram-se elegiadas, construíram-se belíssimos monumentos, e chegou-se ao ponto de nos considerarem exemplos para toda a humanidade deste lado do Cosmos e dos nossos nomes quando revelados serem dados a uma enorme quantidade de crianças. Enfim, foi um enorme turbilhão de emoções por parte dum povo que nunca mais veríamos mas que nos prometeu memória eterna, pois seríamos recebidos pelos seus descendentes.

Partimos em vaivéns ao raiar da aurora, seguindo um velho costume espacial e de certa forma supersticioso em homenagem ao planeta que só veríamos dai a muito tempo. Disponho apenas de fragmentos reduzidos dessa parte da história, mas penso que partimos imbuídos no espírito virginalmente pioneiro dos homens que viram o espaço pela primeira vez, ou daqueles que na missão Apolo pisaram a Lua e se sentiram no topo do mundo, no topo do universo. Antes deles não havia quase nada, depois deles houve quase tudo, e era esse o ambiente a rodear-nos quando vimos Aurora pela última vez.

Em algumas horas estávamos em órbita, já perfeitamente acondicionados e decididamente prontos rumo ao destino.

Para minha vergonha devo confessar que me enfiei logo numa das câmaras, pois à velocidade da luz nada mais veríamos do que feixes brilhantes (as estrelas) o que estava longe de me seduzir, e de francamente achar que nada havia a relatar, preferindo antes o sono artificial…

Por uma questão de economia do tempo e recursos só parámos em mundos já referenciados, directa ou indirectamente.

Visitámos assim a distante constelação de Leon onde encontrámos o planeta Aqua, do tamanho duma pequena estrela, totalmente coberto de água e onde viviam os maiores cetáceos jamais avistados por olhos humanos, seres gigantescos com mais de cem metros de comprimento; também parámos noutros e estranhos mundos como Élio de composição gasosa e atmosfera venenosa na qual avistámos uma forma de vida aérea que os nossos cientistas não souberam explicar, pois desafiava toda a sua ciência; e que dizer de Saarha, planeta arenoso e rochoso de dimensões idênticas ao nosso, de atmosfera débil e onde encontrámos os restos duma antiga civilização, indubitavelmente não humana, possuindo cidades em ruínas, mas cujo esplendor de outrora se mantinha em arranha-céus gastos por milénios mas que estranhamente se mantinham em pé, desafiando os céus de onde chegáramos. E alguns mais, mas cujo interesse escapa a este relato, todos sem a presença humana que estranhamente parecia ausente do universo, o que nos devolveu um sentimento de orfandade, de solidão tremenda, só dissipada pelo oásis que consistia o nosso destino.

E cada vez que colhíamos dados enviávamo-los para Aurora (para os analisarem antes da nosso regresso) e para a Terra com outras mensagens, como uma espécie de cartão de visitas, antes do remetente lá chegar de maneira a estarem preparados para a vinda deste.

Mas acima de tudo, estávamos cada vez mais famintos pela vista da Terra, ansiedade crescente, a desaparecer no dia em que penetrámos na Via Láctea, e quase extinto na altura em que entrámos no Sistema Solar Terrestre onde segundo os cálculos e memória antiga se encontrava finalmente ELA.

Os dias antes foram magníficos entre os viajantes aurorianos, pois cada um de nós não pode reprimir mentalmente tudo aquilo que sentia. Apesar de termos sido treinados, sujeitos a exigentes testes em muitas áreas, incluindo o auto-controle emocional, na altura final era impossível o gelo, pois éramos acima de tudo humanos, éramos acima de tudo emoção, com pitadas de racional, mas acima de tudo emoção.

Por isso quando parámos em Marte foi como se tivessem despejado um balde de água fria em cima dum corpo a escaldar.

Apesar de omissos em relação a muitos factos sobre o passado terrestre, todos sabíamos ter sido Marte a primeira grande conquista física espacial da raça. Marte era um marco ainda mais histórico do que a alunagem em de salvo erro 1969. Marte foi o primeiro passo efectivo no cosmos que nos conduziu muito mais tarde a Aurora. A haver humanos espalhados pelo universo, eles estariam sem dúvida no planeta vermelho.

Mas não estavam.

Na órbita dele lançamos primeiro algumas sondas, mas o resultado destas deixou-nos perplexos, e por fim decidimos usar um dos vaivéns para lá aterrar e confirmar aquilo em que não queríamos acreditar.

Os vestígios eram vastos, quase inúmeros, com uma proliferação de bases de diferentes tamanhos por todo o astro, ligadas por também inúmeras estradas. Havia mesmo restos bastante antigos de naves, mas humanos, nada.

Decidido a solucionar este enigma, o Comandante da viagem pediu voluntários para entrar na maior das bases, escolhendo dentre os vários a querer “tal honra” os que considerava melhores, entre os quais vários militares, armados até aos dentes, “não fosse qualquer diabo cósmico tece-las…” Eu era um deles, e por isso posso relatar o que se passou efectivamente.

Hipoteticamente preparados para tudo, hipoteticamente preparados para tudo…De fato espacial caminhámos do vaivém até à grande entrada principal. Foi a tiro que abrimos caminho, pois apesar de munidos com uma unidade portátil de energia, este revelou-se logicamente não compatível com a tecnologia terrestre. No hall de entrada havia uma espécie dum mapa, que consegui vagamente traduzir e que nos indicava o caminho para diversos locais: desde os aposentos dos habitantes, às estufas onde se cultivavam vegetais, a estábulos, laboratórios, salas de reuniões, centro de compras, centro de diversões, diverso tipo de armazéns, centrais de ar, de energia, observatório, escola, hospital hangares, etc.…Obviamente que escolhemos em primeiro lugar os aposentos, não sem antes verificar-mos a inoperacionalidade das centrais de energia, segundo os nossos instrumentos completamente vazias.

Embora o temêssemos, não sabíamos que estávamos no interior de um enorme túmulo sem corpos. Se tal fosse do nosso conhecimento, de imediato regressaríamos às naves e iríamos até à Terra esclarecer duma vez por todas aquela espécie de charada. Mas tal era impossível, e por isso tivemos que mergulhar naquele inferno sem nada, sem mesmo sofrimento, onde a ausência de nada representou o maior dos horrores.

Passeamos então por um longo corredor com sinais de estar abandonado à muito. Em silêncio, só falando para comunicar episodicamente com o exterior. Cada passo ali representava o percurso em direcção a uma verdade temível; cada minuto no meio daquela realização de iguais sem eles alimentava a sensação de frustração nascida a quando da ausência de comunicações.

Por fim chegámos a algo semelhante a um bairro protegido por cúpulas de vidro, por detrás das quais penetrava o sol. Aleatoriamente escolhemos um apartamento e entrámos sem dificuldade depois de termos aberto uma porta sem tranca. Lá dentro…o vazio, sempre, e sempre o vazio…Sala de estar mobilada e com uma espécie de ecrã inoperacional, obviamente; estante ainda com alguns livros a apodrecer, mas que recolhemos com o máximo cuidado para serem analisados e para fazerem parte do espólio museológico de Aurora; cozinha ainda com máquinas e até alguns pratos; quartos com camas e mesas-de-cabeceira, uma ou outra peças de roupa remendadas (e talvez por isso não levadas com os proprietários) e mais nada. E não adiantava ver mais. Ainda procurámos noutros apartamentos algo, mas nada, não encontrámos nada a não ser o vazio e o silêncio das existências que lá viveram um dia. Gravámos tudo em imagem e partimos para a escola, a meu pedido, devido a um pressentimento que tive que nesse local iríamos ter alguma resposta. Para lá chegarmos tivemos que passar pelas estufas, vazias, apenas com duas amostras de terra, a autóctone e a do planeta azul, pelo menos a julgar pela sua cor. Tive a ideia de visitar os estábulos, e ai encontrámos os únicos resíduos de vida, nos ossos de vários mamíferos de diversas dimensões, possivelmente vacas, ovelhas ou similares pois ao lado dela encontrámos aquilo que pareciam ser aparelhos extractores de leite e restos de lã. Em todas as boxes e currais havia um esqueleto, o que nos encheu de imensas dúvidas. Porquê ossos de animais e não de humanos?

Apesar de habituados por uma hora daquele silêncio mortal, foi impossível não nos emocionarmos na escola. Lá escolhemos uma das muitas salas e entrámos, encontrando as cadeiras impecavelmente arrumadas debaixo das mesas, algumas destas com lápis, uma ou outra com aquilo que penso ser computadores. Mas foi a olhar para um quadro do lado direito da sala (do outro existiam janelas que davam para um recreio) que os nossos corações bateram mais depressa: lá estavam catorze fotografias – Uma de grupo com os alunos e alunas e no meio a professora. As outras mais pequenas eram dos alunos individualmente. Fotografias, as primeiras dos nossos antepassados desde as recolhidas na sonda, mas estas eram mais recentes, velhas, sem dúvida, mas mais recentes! Como descrever o que sentimos quando as vimos? Impossível pois é impossível descrever o misto de alegria mas de incontável tristeza ao vermos aquelas fotos amarelas, gastas pelo tempo, mas com caras sorridentes, felizes, cheias de uma vida que ali faltava dramaticamente. Curiosamente foi a ausência de ar que preservou minimamente estes registos, a ausência do ar dos humanos…Que verdade esconderiam os olhos animados das crianças? Ansiosos, procurámos noutras salas mais qualquer coisa, mas…nada…apenas mais algumas fotos…

Por esta altura constatámos que o oxigénio dos fatos estava a acabar e só dispúnhamos de reservas para mais 15 minutos. Recolhendo à pressa as fotos (não havia mais nada transportável) e a meu conselho que entretanto assumira o controle daquela missão fomos até ao hospital onde teria de haver alguma resposta, nem que fosse um corpo humano que os nossos clínicos estudariam determinando assim as causas da morte originando assim as respostas que nos faltavam. Teria…Mas à excepção de camas vazias e de alguma aparelhagem nada encontrámos, nem mesmo naquilo que se assemelhava a morgues. Sem energia era impossível ligar os computadores pois a unidade portátil era, como já disse inútil, para grande desgosto nosso que sentíamos ter parte das respostas nos velhos computadores que fomos encontrando um pouco por todo o lado.

Contrariados e cheios de dúvidas regressámos ao vaivém, determinados a regressar para uma pesquisa mais aturada. Mas o vazio de Marte accionou um plano de emergência que todos pensámos nunca ir ter lugar. Conforme o “Protocolo de Emergência” estipulava, os militares assumiram o controlo da situação e determinaram que devido ao facto de termos ultrapassado em muito o tempo previsto para as paragens, urgia rumarmos à Terra onde as dúvidas seriam esclarecidas.

Embora Aurora não tivesse guerras desde a sua fundação, foi sempre mantido e treinado um corpo militar preventivo, tanto para a possibilidade de distúrbios internos, como externos. Apesar da sua voz ser minoritária, teve sempre lugar no Conselho planetário Auroriano, e a respectiva opinião tida em consideração. Quando iniciamos as viagens espaciais de longo termo, haviam sempre alguns astronautas castrenses a bordo e armas especialmente desenvolvidas para este meio, embora fosse apenas uma medida preventiva, dado os Aurorianos olharem para o Cosmos como uma nova oportunidade de conhecimento e não como uma ameaça.

À velocidade máxima chegaríamos à Terra em poucos minutos, o que nos tiraria margem de manobra perante um cenário adverso: por exemplo, se existisse um inimigo corríamos o risco de ir parar directamente ao seu colo…Assim foi determinado que avançaríamos mais lentamente, mandando mensagens para o caso da situação ser normal, mas também numa improvisada formação de combate – Com a nave militar à frente, a servir de batedora, a de abastecimentos no meio, e por fim a nossa. Ligámos todos os sensores que detectariam o mínimo movimento espacial, bem como a recepção de sinais de todos os tipos.

Urgia uma análise aos dados recolhidos, mas a nossa disponibilidade mental, o pensamento estava no planeta azul.

Apesar de sermos por natureza optimistas, o que vimos em Marte não dava espaço a isso. Imbuídos num espírito sombrio contámos as horas que nos separavam da Terra. A ausência de qualquer tipo de comunicações, de resposta às nossas mensagens só veio piorar uma moral tenebrosa.

As sondas enviadas por nós deram-nos mais um sinal de anormalidade: revelaram-nos um planeta que já não tinha a sua cor azul, que esta tinha sido substituída por um cinza escuro. Quando essas mesmas sondas se aproximaram e entraram na órbita terrestre de forma a nos revelarem o motivo dessa cor, pura e simplesmente que deixaram de emitir. E não foi só uma, foram todas.

Só nos restava a observação directa, no corpo da nave de combate.

Sem qualquer tipo de incidentes ela colocou-se entre a lua e a Terra, revelando-nos então que uma espessa cortina de nuvens cobria quase totalmente o planeta. Revelou-nos também a presença daquilo que parecia ser lixo espacial na órbita terrestre: objectos em número indiscriminado, do tamanho de pequenos satélites orbitavam ordeiramente. Como nada se passava, foi ordenada a vinda da nave científica, onde dispúnhamos de aparelhos que melhor analisassem esse aparente lixo. Avançamos, e parámos ao lado dos militares, lançando mais sondas para a análise, constatando então que o lixo disparou selvaticamente sobre elas.

Eram satélites armados que pareciam ter sido ali colocados para proteger a Terra, ou seriam de construção alienígena e estariam a proteger os seus verdadeiros amos? Urgia saber a origem, e para isso a nave de combate aproximou-se dum deles, e usando um campo de forças capturou o desejado satélite, retirando-se de imediato quando vários se aproximaram, sendo de imediato feita a análise que confirmou a sua origem humana (dispunha de letras e números por nós conhecidos).

Era obvio que estavam a proteger a Terra.

Ou para evitar que alguém lá entrasse?

Mas o planeta encerrava demasiadas respostas que eram vitais para nós e muito provavelmente para o destino de Aurora.

Tínhamos forçosamente que lá entrar, mas como?

A solução foi dada por um jovem Tenente, conhecido por ser dos melhores pilotos espaciais que Aurora soube gerar. Os satélites dispunham de alguma inteligência, suficiente para abater sondas, mas teriam a amplitude de recursos duma inteligência imprevisível, da inteligência humana?

De forma a recolher dados sobre a atmosfera e mais tarde do outrora astro azul, iria a bordo de um vaivém, com o propósito de também contactar os humanos sobreviventes e lhes pedir para anularem os satélites de maneira a permitir a entrada da nossa embaixada. Também apetrechámos a pequena nave com alguns instrumentos avançados de comunicações e outros científicos para a tal análise da atmosfera. Tal operação durou apenas 15 minutos.

Nessa altura fomos nós próprios atacados.

Bem que os nossos receptores notaram que alguns satélites lançaram uma mensagem desconhecida em direcção à Lua. Pensando ser para nós, respondemos, mandando mais uma sonda que foi destruída. A mensagem não nos era dirigida, mas então era para quem?

Quando o jovem piloto partiu descobrimos os verdadeiros receptores.

Contamos cerca de cinquenta, mas provavelmente eram mais. Naves robôs (a não existência de piloto foi-nos confirmada por sensores) alvejaram tanto a nave de combate, como a nossa e a de abastecimentos, postada a alguma distância, mas aparentemente dentro do raio de acção dos engenhos assassinos. Tinham partido da Lua e por isso para lá enviámos uma sonda que saiu ilesa pois as naves guerreiras não lhe deram qualquer importância, para de seguida procedermos a manobras de evasão. Mas era impossível, os números do adversário suplantavam em muito a capacidade dos nossos militares em a destruir e as tentativas de fuga. Tínhamos forçosamente de partir, tendo no entanto que possuir antes notícias do vaivém. Durante incontáveis minutos (o tempo de reentrada na atmosfera possui alguns minutos sem comunicações) manobrámos desesperadamente enquanto recebíamos péssimas notícias até estas se esgotarem. Fica aqui um registo sonoro da última comunicação desse piloto.

-A custo consegui desviar-me dos satélites(…tempo sem comunicar…) estou a entrar na camada de nuvens. Desta altitude vejo cidades, grandes, imensas, mas sem qualquer tipo de movimento. Parecem mortas…Por toda a parte avista-se neve, neve sem fim, parece um Inverno Eterno. A aparelhagem diz que as nuvens são uma mistura de vários elementos poluentes, incluindo nucleares. Estou a tirar várias fotos do que vejo, analisem-nas e…as com…começ…a falh…v…aterr…

E mais nada... O jovem tinha no entanto emissores potentes que teoricamente lhe permitiriam comunicar quando aterrasse, mas no entanto essa era a menor das nossas preocupações. Depois de recolhidas as fotos enviadas, tivemos de partir para bem longe.

Todavia para alguns de nós foi tarde demais.

De forma a assegurar a sobrevivência dos seus colegas, a nave militar atirou-se furiosamente para o meio do inimigo, lutando bravamente, destruindo muitos até ser ela própria varrida do espaço, desintegrando-se numa enorme explosão.

Tal sacrifício salvou-nos, se bem que com alguns danos.

Após alguns minutos a grande velocidade notámos estávamos a salvo. Tal como os satélites só agiam num determinado raio, as naves robôs também o faziam. Parecia que só atacavam quem se aproximasse num determinado raio autonómico daquilo por elas protegida.

Procedemos então à análise dos dados: as fotos de grande resolução indicavam a total morte das cidades, e também, aparentemente, de pessoas. No que toca à composição atmosférica: era sem dúvida respirável, mas no limite, sendo o mais inquietante a presença do nuclear. Todos sabíamos que durante muito tempo as armas nucleares tinham sido as mais poderosas construídas pelo engenho humano, capaz de liquidar vezes sem conta a vida na Terra. Elemento nuclear também presente em centrais energéticas que a evolução provou demasiado perigosas para os benefícios energéticos por elas conferidos. Em Aurora tivemos ambos e soubéramo-nos livrar disso, mas na Terra…Ou seja a presença desse elemento poderia significar uma guerra civil, a explosão de várias centrais ou o rebentamento de paióis de nações menores, dado as maiores não terem tal armamento há muito tempo. Isto pela lógica auroriana. Mas caramba! Essa lógica não era assim tão diferente da Terrestre. Afinal éramos humanos, filhos separados da mesma cultura, mas filhos na mesma, e o nosso processo de socialização não dissipara a herança comum, por isso assumimos a lógica auroriana como uma lógica comum aos dois planetas. Mas além da presença de cidades mortas e da não existência de humanos, o elemento mais perturbador foi o tal Inverno Global. Esse fenómeno poderia ter ocorrido por causa da tal guerra nuclear, ou, como foi abordado acima, da explosão de várias centrais, ou em consequência da poluição maciça, que criou nuvens perenes, criando um manto à volta da Terra impedindo a entrada do sol, e lançando o astro numa nova idade do gelo, mas à escala planetária e eterna. Mesmo com uma civilização activa, a ameaça à espécie constituiria algo de muito sério a não descurar, sem a protecção dessa estrutura…

O que se passou em Marte só veio concluir o nosso juízo sombrio no tocava à sorte da Terra: aparentemente o planeta vermelho fora apressadamente abandonado pelos humanos que transportaram o indispensável, e que deixaram para trás o dispensável. E dispensáveis eram os animais de criação abatidos, ou mortos de fome (nunca o saberemos). Houve qualquer coisa que levou a esse êxodo. A hipótese de terem sido atacados nem sequer foi seriamente colocada, pois não havia corpos, não havia sinais de combates. Pelo contrário tudo estava impecavelmente arrumado, em ordem, numa ordem que só conferimos quando partimos de algum lugar e de certa forma o queremos manter, quem sabe, para algum dia regressarmos, quando o problema que nos levou a partir tivesse sido ultrapassado.

Por qualquer razão que nos escapa os humanos decidiram evacuar Marte e hipoteticamente ordenar o regresso de todos à Terra onde possivelmente morreram com os seus irmãos de raça, possivelmente…Penso que houve um exaurir de recursos humanos à escala universal, e cientes disso os dirigentes abandonaram os postos no exterior para concentrar as sinergias na Terra de maneira a tentar a vida nela sustentável, talvez…são apenas meras suposições…O que me lembro da história da queda do Império Romano diz que perante a eminente colapso da fronteira mais débil, e vendo Roma em perigo, os últimos Imperadores abandonaram postos insustentáveis e concentraram as suas forças para a defesa da península itálica. Neste caso a ameaça veio dentro da espécie, um crer surdo de que tudo estava perdido, e havia que reunir os irmãos na hora da morte de forma a perecerem juntos.

Fecho os olhos e procuro não chorar pelas incontáveis imagens de sofrimento que assolam a minha mente.

Ou seja a perspectiva da extinção da civilização era uma realidade, e da própria humanidade hipótese demasiado real.

Recebemos também imagens do sítio na Lua onde tinham vindo as naves robôs. Tratava-se duma velha base sem instalações para humanos, só com instalações para os seus hóspedes mecânicos. Nada de habitações, nada da logística para os seus criadores, nem de entradas subterrâneas onde estes se pudessem abrigar.

Expectantes pelas novidades dadas do piloto, depois deste aterrar, esperámos, esperámos, um dia, depois uma semana, até que o precioso tempo se esgotou, apesar de termos enviado inúmeras mensagens para a Terra, para ele e de nada recebermos a não ser o pesado silêncio no qual mergulhara o planeta.

V

O regresso

Tínhamos de voltar, e rezar para que Aurora estivesse bem.

Mas antes de mergulharmos no “buraco de verme” tínhamos de analisar os elementos recolhidos, à excepção dos livros, dado a língua nos escapar, e só mesmo no astro natal disporíamos de máquinas suficientemente potentes para os traduzir.

O que pensar com os dados disponíveis? Como a tarefa transcendia a capacidade duma só mente, e enquanto esperávamos por notícias do piloto, reunimos um Conselho de Sábios. Contudo, não houve grande discussão, pois achámos que os dados falavam por si, que já tínhamos chegado a conclusões depois de vermos as fotos tiradas pelo piloto.

Em suma, por motivos que nos escapam, a civilização regredira, implodira. Cientes disso, os dirigentes renunciaram à conquista espacial, fazendo regressar ao local onde tudo começara todos os seus filhos, fechando-se sobre si e preparando-se para morrer. Depois, num acesso de egoísmo tão característico da nossa raça, decidiram proteger o túmulo, selando-o de certa forma, através da colocação em órbita de satélites armados e da instalação na Lua de diversas esquadrilhas de caças espaciais auto-suficientes para o caso do adversário poder suplantar os satélites. Com isso esgotou os seus últimos recursos, com isso acalmou a sua inquietação de possíveis ladrões cósmicos poderem violar esse túmulo e as poucas riquezas ainda existentes, não pondo sequer a hipótese de viajantes estudiosos ou simples exploradores quererem conhecer inocentemente, para o bem da cultura dessa espécie o seu planeta, só pensando no mal, no mal! Não inventaram nada de novo, pois muito tempo antes deles os Faraós tinham seguido um procedimento semelhante, mas aos últimos dirigentes deve ser imputada uma culpa, porque de certa forma seriam os responsáveis pelo declínio, por não terem feito tudo o que estava ao seu alcance para o travar, e porque decidiram fechar o legado da raça a possíveis visitantes. Os terrestres desapareceram e com eles tudo aquilo que de certa maneira a poderia imortalizar, a sua cultura, os restos do imenso que foram. Nada nem ninguém deveria jamais conhecer a Terra. A morte física deveria ser total e abranger a mental. Nada a não ser o quase nada restante em Marte deveria restar.

Foi então que uma tenebrosa atmosfera de luto envolveu toda a frota restante, sentimento pelos nossos irmãos mortos, mas também pela perspectiva que Aurora tivesse a mesma sorte. Todos o sentíamos, e todos o queríamos esquecer. Partíramos como mensageiros de uma nova era, regressaríamos como uma espécie de apóstolos das trevas, perspectiva horrível a que todos se queriam alhear o mais possível. Talvez por isso desta feita todos nos enfiamos nas câmaras hibernadoras, programando as naves para nos acordarem caso recebêssemos notícias vindas da nossa terra. Nenhuma paragem seria feita, apenas quando saíssemos do “buraco de verme”.

Nada de relevante há pois a contar da viagem de regresso, tendo começado o princípio do fim quando saímos do “buraco de verme”: mandámos várias mensagens para Aurora, mas nada recebemos de volta. Tendo poucas sondas de reserva (a maioria, bem como todos os vaivéns estavam a bordo da nave de combate destruída) só nos restava o contacto visual.

Devíamos ter desconfiado, pois a nossa rota levou-nos a passar nas imediações de bases espaciais aurorianas, mudas ao nosso apelo.

Mas o pior estava ainda guardado para dai a pouco…

A algumas centenas de milhares de quilómetros, quando já se avistava ao longe o planeta, apareceram no nosso campo de visão como fantasmas algumas enormes construções Espaciais, sem qualquer tipo de luz, aparentemente à deriva. Eram as estações orbitais. Alarmados enviamos mensagens, sem termos resposta. Como estavam relativamente perto de nós, escolheram-se alguns astronautas para nelas entrarem e verificaram o que se passou. O relato deixou-nos ainda mais sombrios: tal como em Marte não possuíam de facto energia e estavam vazias; tudo estava no sítio, havia diversos vestígios de terem sido ocupadas, mas há muito, muito tempo que o vazio se tinha apoderado delas. Apesar de levarem unidades portáteis de energia, os nossos camaradas não conseguiram ligar os computadores, que pura e simplesmente se recusaram a funcionar. Limitados pelo tempo e reservas de oxigénio, quando se vinham embora repararam numa mensagem escrita à pressa numa das paredes que deixou a todos sem palavras: “Adeus, tudo acabou, vamos regressar”.

Queríamos pensar no assunto, tentar discernir, racionalizar, mas Aurora estava demasiado perto, e tínhamos que nos preparar.

Mas apesar dum sexto sentido nos alertar, como descrever aquilo que sentimos quando avistámos a nossa amada Aurora?

Parecendo um horrendo “deja vu”, Aurora estava completamente coberta por nuvens idênticas às da Terra! Mas as semelhanças não ficavam por aí. Inertes na órbita, aparentemente desactivadas, enxames de naves, mal repararam em nós, voltaram à vida e atacaram-nos com uma selvajaria ainda mais violenta do que as das suas congéneres terrestres.

Tínhamos de saber a exacta proveniência, e por isso sacrificámos as últimas sondas numa missão suicida de colisão com alguns desses engenhos. O objectivo era fotografa-los e assim aferir a sua origem. O sucesso consistiu no nosso derradeiro amargo de boca, pois as fotografias revelaram que no casco das assassinas estava escrito em caracteres aurorianos “Naves robóticas de preservação de Aurora”.

Ainda enviamos todo o tipo de mensagens com os mais diversos tipos de códigos de reconhecimento utilizados no planeta, mas em vão, elas pareciam não reconhecer, ou não querer aceitar esses códigos, não parando de atacar.

Enquanto procedíamos a manobras de evasão quase inúteis (era como se um bombardeiro tentasse escapar de caças, sendo presa fácil da superior maneabilidade destes) perdemos o cargueiro e sofremos danos consideráveis.

Só nos restava fugir, fugir até que o pouco combustível se esgotou, pondo-nos à deriva, a salvo das naves, mas condenados a uma morte certa quando os abastecimentos acabassem.

Apesar de não querermos pensar em tal, tal foi inevitável. Por inverosímil que nos parecesse, o mesmo destino havia tocado à Terra e a Aurora, sendo as semelhanças demasiado gritantes para passarem de meras coincidências.

Ao não ter as Estações em órbita e estando estas vazias (elas precisavam de manutenção regular e de actualização da sua órbita para não andarem à deriva) ao não responder às mensagens, ao ter à sua volta os seus robôs “de preservação”, Aurora mostrara a morte na qual deixara cair a civilização e certamente todos os seus habitantes. O abandono das Estações, a frase misteriosa…” Adeus, tudo acabou, vamos regressar”…Regressar para Aurora, para morrerem juntos dos seus, tal como na Terra…Todos elementos de horror que se enquadravam no gigantesco quadro da tragédia que se abatera sobre a raça humana…Pelas mesmas razões das da passada no planeta comum, e que não irei repetir por estarem já suficientemente dissecadas, dramaticamente dissecadas…

Mas quais as verdadeiras razões que levaram a civilização humana no seu todo ao fim? Porquê, porquê, porquê…?

Muitas perguntas às quais jamais teremos respostas…

Ambos os planetas e a sua população estavam condenados.

Tudo aquilo porque lutámos e sofremos tanto por conseguir fora desbaratado pelos nossos “ilustres” descendentes.

A raça humana dispôs de inúmeras qualidades, mas paralelamente de imensos defeitos, vícios sem fim, dependendo a sobrevivência, durante os milénios da sua existência, de um precário equilíbrio entre o mal e os homens de bem. Enquanto estes conseguiram fazer ouvir a sua voz, progredimos e prosperámos, mas quando o lado negro, obscuro, se impôs a todo o resto a humanidade entrou no ocaso. Neste capítulo a atribuição de culpas pela extinção não deve poupar nada nem ninguém, os viciosos porque todos empurraram para o abismo, os virtuosos porque não os souberam parar a tempo.

Provavelmente estarei a ser injusto devido à possibilidade de ter havido alguém que lutou contra o fim, ou talvez não, porque se houvesse alguém esse alguém teria mais alguém e sendo a conservação um instinto primário todo uma espécie se teria erguido contra os apóstolos das trevas e teriam conseguido submergir estes com a vida a faltar tão desesperadamente agora.

Os cegos levaram-nos para as suas trevas, aqueles que tinham o dom da visão deixaram-se conduzir a elas, por isso há inúmeros inocentes, mas também incontáveis culpados pelo fim da raça.

Aurora e a Terra eram património não exclusivamente deles, mas do Cosmos que as viu nascer prosperar e morrer. Que direito tinha pois a raça, os seus povos de o vedar a esse mesmo Cosmos?

Ou talvez não seja de todo o fim, talvez o homem se tenha espalhado pelo espaço sem o nosso conhecimento, talvez hajam outras Terras, outras Auroras algures por ai...

Pessoalmente não acredito em tal pelo exemplo tenebroso dado por dois mundos tão distantes mas tristemente com demasiada coisa em comum.

A semente de destruição é intrínseca ao homem, pois o mesmo ser a pintar a mais bela das obras de arte é capaz de ser um homicida em potencial, bastando um pequeno nada para concretizar os seus mais obscuros instintos assassinos.

Tudo acabou, todos os meus camaradas acabaram por morrer de fome, sendo eu estranhamente o último sobrevivente, que relato o que se passou enquanto tenho algumas forças, ténues, pois até pensar constitui um doloroso exercício.

Vou adormecer para sempre em breve, levando demasiadas recordações comigo, mas levando também o derradeiro legado da espécie humana, que nasceu viveu e acabou por nos dominar pela nossa incapacidade em a contrariar, a suplantar, o que nos conduziu ao irremediável abismo:

A Herança do medo

Relatório nº12/4006, Missão Retorno

“Este relato foi encontrado dentro de uma velha nave à deriva no espaço vizinho de Aurora. Não era de origem terrestre, mas a sua concepção é sem dúvida humana. Apesar de estar danificada, revelou-se perfeitamente operacional depois de restabelecida a custo a energia com o auxílio daquela que lhe fornecemos. Esta foi uma tarefa que nos consumiu diversas horas pela aparente incompatibilidade tecnológica, barreira ultrapassada pelo esforço dos nossos técnicos e avançada tecnologia.

No seu interior, além do referido relato, estavam cerca de cem corpos, alguns dentro daquilo que parecem ser câmaras hibernadoras desligadas por falta de energia, alguns mumificados, que depois de analisados pelos nossos médicos se constatou terem morrido de fome

Finalmente soubemos o que aconteceu à missão que deveria colonizar Aurora.

Alguns anos depois da partida dessa missão vital para a sobrevivência de uma Terra que se encontrava demasiado povoada e com os seus recursos no limite, e depois de termos perdido a esperança de receber notícias dos nossos irmãos, decidiu-se enviar uma missão de busca e salvamento deles. Essa missão era composta por um milhar de homens e mulheres divididos em três das mais sofisticadas naves que a nossa tecnologia podia conceber. É a nossa missão. Utilizámos a velocidade da luz, usando o mesmo “buraco de verme” referenciado no relato, dirigindo-nos ao local onde supostamente estaria Aurora o mais depressa possível.

Cientes de que alguns anos se passariam até ao nosso regresso à Terra e de forma a não sermos esquecidos, deixámos nos arquivos históricos de todas as nações do mundo uma menção à nossa partida e o seu objectivo; como se não fosse suficiente tal, a nossa missão foi inscrita nos manuais escolares e na própria história das nações, sendo que cada geração deveria aprender tal para que não se esquecessem de nós, preparando-se assim para o nosso regresso.

Lamentavelmente a tecnologia das nossas e ultra-modernas naves era ainda de facto demasiado nova e nunca testada, sendo que por várias vezes nos perdemos, sendo que quando parávamos para calibrar os instrumentos e assim voltarmos ao rumo certo, perdemos algum, demasiado, tempo. Como íamos à velocidade da luz, e baseada na nova teoria da relatividade revista, ao invés de demorarmos alguns anos, segundo os cientistas desta missão já se terão passado no mínimo dois mil anos terrestres desde a partida, embora para nós fosse apenas um ano e meio. O relato que acabei de ler confirma isto. Tal pessoalmente assusta-me, sentimentos desanuviados pela precaução de nos termos feito constar na história universal da Terra. O verdadeiro problema surgirá quando chegarmos a Aurora. Se tiverem registos do passado saberão reconhecer quem somos, senão…Pelo menos iremos restabelecer o trânsito espacial entre os dois astros, e se possível enviar os terrestres excedentários para este mundo novo.

Como oficial de informações da Missão Retorno (forma como ficou denominada a missão a Aurora) e depois de analisar o relato quer na forma escrita, quer de imagem, acho que tal responde a parte das nossas questões, embora continue sem resposta o destino daqueles que partiram deste planeta para a Terra de forma a iniciar as missões regulares entre os dois planetas. Devo elogiar esse relato, que no entanto só foi possível entender depois de o ligar ao meu computador tradutor, pois a língua no qual está registado é uma fusão de diferentes línguas terrestres, uma quase língua nova, que a inteligência avançada da minha máquina tornou perfeitamente inteligível.

No entanto…Penso que algo se passou pois…acho o testemunho no que toca ao destino de Aurora e da Terra algo fantasista…”A loucura espacial” é uma forma de demência já diagnosticada e detectada por cientistas terrestres e que se deve a um isolamento prolongado de seres humanos no espaço, mesmo entre tripulações numerosas, como é o caso da nave que encontrámos. Na minha opinião pessoal e por algum motivo que me escapa, a nave em questão perdeu-se da sua frota e ficou a vaguear no espaço até se terem esgotado os seus recursos. O facto do homem que registou o documento que é objecto deste relatório, segundo os nossos médicos ter sido o último a morrer, vem reforçar a minha teoria: só, com a tripulação morta em seu redor, registou a sua experiência de forma objectiva até que a demência tomou conta de si e do relato. Agora é uma questão de sabermos quais os acontecimentos verídicos e os imaginados pelo autor, algo a tornar-se perceptível depois de visitarmos Aurora e de regressarmos à Terra.

Passa-se qualquer coisa, as luzes de Alarme acenderam-se! Ouço a voz do Comandante a dizer-nos que estamos finalmente a chegar a Aurora! Finalmente! Vou ligar o ecrã do gabinete para presenciar este momento histórico!

Ao longe vê-se o planeta pequenino, mas tornado cada vez maior pela nossa velocidade, cada vez maior, e NÃO, NÃO PODE SER!!! AURORA ESTÁ TOTALMENTE COBERTA DE NUVENS NEGRAS!!!”

“Somos deserdados do nosso passado, separados das nossas origens, não devido a qualquer amnésia ou lobotomia, mas à brevidade da nossa vida e às imensas e insondáveis perspectivas de tempo que nos separam delas”.

Carl Sagan

1934-1996

Um dos pais da mensagem contida no disco da Voyager e um dos meus mestres

FIM (?)

Texto protegido pelos Direitos do Autor

Nota 1: Embora hajam algumas semelhanças entre este conto e o videoclip dos Muse “Sing For Absolution” (a história em termos visuais é bastante similar), como de resto está assinalado algumas linhas acima, a ideia completa deste conto surgiu no ano de 1998, ou seja 5 anos antes do álbum dos Muse (editado em 2003). Por questões de tempo só consegui acabar este conto em 2005, pelo que qualquer semelhança com a música e as imagens é de facto uma pura coincidência, sendo que eu nunca plagiei nem pilhei ideias a nada nem a ninguém, postura que sempre tive e sempre terei, por uma questão de princípio e também por achar que o campo criativo humano é infinito, sendo que o plágio é um tremendo insulto à tal criatividade.

Nota 2 : Pelos dados que recolhi, a sonda Voyager foi de facto enviada para o espaço com um leitor de som e de imagem incorporado no disco de ouro. A menos que as minhas fontes estejam erradas, este é um dado histórico adquirido, e não uma liberdade criativa da minha parte. Além do mais, a facilidade com que o narrador desta história lidou com essas imagens/sons explica-se (ainda segundo as minhas fontes) porque a sonda possuía instruções para tal suficientemente claras para uma inteligência não terrena – à qual é dedicada a mensagem – poder lidar com uma tecnologia totalmente desconhecida

Nota 3 : Apesar de me ter socorrido através da Internet de inúmeras fotografias da sonda Voyager, em nenhuma consegui constatar que a sonda de facto tinha escrito o seu nome em inglês, pelo que a afirmação da personagem principal que vira estampado “Voyager” nessa sonda é fruto da minha liberdade criativa, pequena incorrecção histórica que espero que os leitores me perdoem, pois só fiz tal para simplificar a narrativa…

Nota 4 : A língua falada em Aurora é uma miscelânea de várias línguas terrestres, como é exemplo disso a palavra Leon, mistura do latim “Leo” e do inglês “Lion”, Castore e Poluxe, derivação do latim Castor e Polux – nomes dos hipotéticos fundadores da Roma antiga –. Não sendo minha intenção criar de facto e usar uma língua nova, (os meus conhecimentos na área são muito escassos,) limitei-me a usar apenas alguns termos isoladamente, “traduzindo” outros para o português de maneira a tentar fazer o leitor mergulhar nesta ficção.

Bibliografia: desde muito cedo que ouvi falar da missão da Voyager e que fui recolhendo mentalmente informação sobre tal em inúmeros locais, pelo que é impossível numerá-los, mas enquanto procurava depurar essa informação na Internet, deparei com um site fantástico onde recolhi a maior parte dos dados históricos sobre a sonda. A morada do site é esta:

http://voyager.jpl.nasa.gov/spacecraft/goldenrec.html

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 15/03/2006
Reeditado em 27/06/2008
Código do texto: T123573
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