GENOMA HUMANO

Dr. Licurgo entrou no laboratório pela porta da frente como fazia desde sempre.

Neste dia 16 de abril, fazia quinze anos que diariamente, sem férias, sem feriados, sem finais de semana, sistematicamente por dez horas seguidas, seus olhos corriam por sobre relatórios em papel grande, depois fita e agora na tela azulada do computador, tentando decifrar, o que queriam lhe dizer aquelas sequencias de aminoácidos.

- Adenina - Timina - Citosina - Guanina -

Repetidas ou combinadas... Em frases longas, infinitamente longas, outras médias, outras curtas, espaços quase vazios...

O que estaria escrito ali?

As sequências que sintetizam RNAm, já eram sobejamente conhecidas com seus códons de iniciação e término.

As combinações de três em três, eram a chave de tudo.

Licurgo, apesar de geneticista, era estudioso de história e mentalmente se comparava a Champollion na busca incessante da chave dos hieróglifos.

Em algum canto naquele mar de AAC, TTA, GTA, AGT, CCT, CGA... Sem sombra de dúvida, estava a chave da porta, que iria revelar os segredos da origem e evolução dos organismos.

Mas Champollion teve a sorte de achar com a pedra de Roseta, num único local, o enigma e a chave grega para a decifração...

Ele não. Ele tinha apenas as sequências, mudas, desafiadoras, olhando fixamente para ele e lançando a cada dia o mesmo desafio da esfinge de Delfos:

- Decifra-me ou te devorarei!

Abriu o envelope pardo preso na tela do computador e leu o bilhete manuscrito:

"Por favor, examine o arquivo GH-46. Acredito que a chave está nele. Só falta encontrar... Boa sorte. Suzana."

Licurgo ligou o computador e abriu o arquivo indicado.

Mais de um milhão de códons apareceram, já eram seus velhos conhecidos, mas havia um recado na primeira linha, "GENOMA HUMANO, FINAL DO SEQUENCIAMENTO".

Agora era só ler...

Estava tudo ali...

Sempre esteve...

O DNA era um livro composto de vários livros...

O genoma nada mais era que as prateleiras dessa imensa biblioteca chamada vida.

Estava tudo registrado desde o primeiro organismo capaz de se auto multiplicar, até o ser humano assim como tudo o que aconteceu nessa trajetória, histórias de vidas, de famílias, de povos, sentimentos, desejos, costumes, crenças...

Licurgo observou as sequências funcionais e as longas, muito longas sequências mudas.

A chave estava em fazer as mudas falarem...

Mas muda não fala, ou melhor, fala por gesto...

Gesto não é palavra, é idéia...

Idéia escrita é ideograma, portanto cada códon deveria ser um ideograma.

Licurgo quase pula da cadeira. Ligou para a casa de Suzana que havia passado a noite concluindo o Mapa do Genoma Humano.

- Acorde a Dra. Suzana e diga a ela que venha imediatamente para o laboratório. É urgente.

Escolheu aleatoriamente uma seqüência longa e comparou com uma seqüência sintetizadora de melanina, dada códon seria uma letra da palavra.

Era como ler em Braile...

Num lócus mais evidente conseguiu ler:

“É noite, sinto frio, estou com fome”.

Mas quando foi que isso aconteceu? Qual dos vinte e três pares de cromossomas seria o primeiro?

Qual seria a ordem de colocação dos demais?

Quando a Dra. Suzana chegou, ouviu meio cética, a explicação do colega, mas acatou a idéia.

- Temos o genoma de irmãos uni vitelinos, podemos achar a ordem dos cromossomas por ele. Colocaram os genomas dos irmãos T155 em paralelo. O computador mostrou que a arrumação correta seguia a numeração adotada tradicionalmente.

Repetia-se na genética o mesmo fenômeno da química quanto Dmitri Ivanovich Mendeleev deixou os espaços vazios na Tabela Periódica dos Elementos, para que fossem colocados os elementos que seriam descobertos muitos anos depois.

Quem numerou os pares de cromossomas humanos de 01 a 23 tinha acertado em cheio, mesmo sem ter como testar.

Durante dias, um a um os cromossomas foram separados, comparados e lidos, aquilo que antes era inexpressivo, revelou os detalhes da história do ser humano que até então estavam no campo das hipóteses, confirmando ou desmentindo.

Estava finalmente revelado, nos mínimos detalhes, o “mistério” do aparecimento do ser humano sobre a terra e a história da sua vida.