Um gesto de boa-vontade

Storglarst solicitou ao computador que abrisse a porta da nave. O ar frio daquele planeta primitivo entrou então pela abertura, mas seu traje bio-sintético impediu que ele notasse a mudança radical de temperatura. Apenas os cheiros estranhos daquele mundo distante foram percebidos por suas várias antenas olfativas, alinhadas em duas fileiras que desciam desde o topo da cabeça, passavam pelas costas e iam até a base de sua curta e grossa cauda. Com cuidado ele se aproximou da saída e deu um passo para fora, ficando suspenso no ar pelo campo do elevador anti-gravitacional que o levou suavemente até o solo, o qual era coberto por uma vegetação densa e baixa.

Com seus enormes olhos multifacetados ele olhou em volta, e as lentes integradas ao traje adaptaram-se ao nível de iluminação ambiente emitindo um brilho avermelhado cujo espectro de baixa frequência refletia nos objetos ao redor e era captado pelos amplificadores de imagem, tornando a paisagem no entorno perfeitamente nítida para o guerreiro dorlakiano. Ele afastou-se alguns passos em uma série de saltos rápidos sobre suas pernas arqueadas colocadas na lateral do corpo como as de um dinossauro, já que a gravidade do planeta era baixa demais para que ele andasse normalmente, e virou-se para observar sua nave, que tinha o tamanho aproximado de uma casa média. Silenciosamente ela ergueu-se alguns metros e foi logo em seguida coberta pela luminosidade azulada e intensa do sistema de ionização atmosférica, que não só eliminava o atrito de seu casco com o ar mas também a tornava indetectável para os primitivos radares usados pelo povo que habitava aquele mundo. Um instante depois ela disparou para cima em velocidade muito superior à do som e partiu na direção leste, dirigindo-se em grande altitude para um dos maiores oceanos daquele planeta de acordo com as instruções que Storglarst havia inserido em sua programação.

Enquanto observava a partida da nave o guerreiro repassava os últimos eventos ocorridos desde que ele iniciara aquela missão de reconhecimento profundo dentro do território inimigo. A primeira parte correra de acordo com os planos, sua nova nave possuía uma capacidade de navegação tão avançada que não podia ser interceptada pelas patrulhas da União Balrum. Usando esta vantagem ele conseguira penetrar mais de mil anos-luz além da fronteira e obtivera informações importantíssimas sobre a disposição das frotas inimigas, seu armamento e suas linhas de progressão. Mas aí as coisas começaram a se complicar. O inimigo dispôs patrulhas de naves rápidas no seu caminho de retorno, forçando-o a efetuar constantes desvios para encontrar uma brecha, e quando ele finalmente forçou a passagem pelo bloqueio descobriu que havia atravessado um campo minado com nanorobôs. O sistema de autodefesa da nave entrou em ação, mas antes que pudesse eliminar a ameaça os nanorobôs conseguiram penetrar nos circuitos principais e afetar o sistema de hipersalto deixando-o com uma autonomia de menos de 200 anos-luz antes que fosse necessária sua completa substituição.

Seria impossível retornar para o espaço controlado por uma raça aliada antes de perder completamente a capacidade de atingir velocidades superiores à da luz. Os balruns sabiam disso, e se prepararam para rastrear a nave com calma até onde ela pudesse ir para depois tentar capturá-la visando estudar sua avançada tecnologia. Mas Storglarst não poderia permitir isso. As ordens que tinha para uma situação como esta eram de procurar algum mundo onde pudesse sobreviver e destruir a nave, ficando encalhado para sempre. E caso não pudesse encontrar um mundo adequado deveria destruir a nave do mesmo jeito, e perecer junto com ela. Ambas as opções eram perfeitamente aceitáveis para ele, um guerreiro treinado e experiente, mas havia uma circunstância que o forçava a encontrar outra solução. As informações que ele obtivera eram importantes demais para serem perdidas, a sobrevivência de diversos planetas podia depender delas e por isso ele iria tentar encontrar uma forma de retornar para o seu próprio lado da fronteira.

O primeiro passo foi desviar a rota da nave para uma direção praticamente oposta à que o levaria de volta ao espaço dorlakiano. Assim ele se afastava das naves balruns que o estavam procurando e ganhava algum tempo. O rumo tomado o colocou propositalmente em uma região afastada das rotas principais, onde não havia nenhum mundo tecnologicamente desenvolvido que pudesse servir de base para seus inimigos montarem uma operação de busca eficiente, e isto lhe dava ainda mais tempo.

O segundo passo foi rastrear a região em todas as direções, procurando por sinais de rádio. Isso indicaria a existência de uma civilização ainda incipiente, atrasada demais para fazer parte da União Balrum mas avançada o suficiente para construir um novo sistema de hipersalto se fosse ensinada como fazê-lo. Fornecer tecnologia avançada para raças primitivas era proibido pelo acordo de Tilon, mas os balruns também haviam rompido vários acordos durante a guerra e Storglarst não iria se deter por isso. É claro que, se fosse em espaço dorlakiano, a coisa seria diferente. Ninguém pode dizer o que uma raça primitiva fará se tiver acesso à tecnologia avançada e geralmente elas acabam causando sérios problemas. Mas depois que ele conseguisse o que precisava e fosse embora dali, isto seria problema dos balruns.

Ele precisou procurar por um tempo maior do que esperava, pois aquela região da galáxia parecia ser particularmente pobre em formas de vida inteligentes, mas após percorrer mais 150 anos-luz finalmente detectou um sinal, vindo de um sistema solar que continha uma única estrela amarela em seu centro e ainda estava a mais de 30 anos-luz dali. Storglarst desviou seu rumo para lá e ao chegar descobriu que no terceiro planeta daquele sistema uma raça bastante atrasada havia alcançado o nível tecnológico mínimo que lhe permitia fabricar equipamentos de rádio e radar, e portanto poderia também construir sistemas de hipersalto funcionais ainda que primitivos e pouco confiáveis. Ele acoplaria um deles ao avançado gerador de energia da nave e poderia assim retornar ao espaço dorlakiano. E levaria também mais dois ou três de reserva, caso o primeiro falhasse no meio do caminho. Para convencer as criaturas que habitavam aquele mundo a construir para ele os sistemas de hipersalto ele lhes ofereceria como gesto de boa-vontade os próprios planos do sistema, e também explicaria seu funcionamento. Assim os habitantes do planeta sem dúvida construiriam outros para seu próprio uso, embora com as fontes de energia que possuíam suas naves fossem levar meses para alcançar mesmo as estrelas mais próximas, e provavelmente ainda se passassem centenas ou até milhares de anos antes que pudessem desenvolver os geradores quânticos que lhes permitiriam um desempenho melhor do que isso. Desta forma os dorlakianos estariam fora de perigo, e caso aquela raça viesse a causar algum problema como atacar espécies da vizinhança ou destruir ecossistemas de outros mundos, os balruns que lidassem com ela.

Ao chegar ao terceiro planeta Storglarst entrou em órbita e procurou um ponto onde pudesse descer e iniciar o contato com a raça nativa. As instalações industriais mais importantes eram seu objetivo, mas ele não podia simplesmente descer no meio de uma grande concentração de habitantes locais e dizer o que pretendia, pois não seria compreendido. Precisava primeiro dominar o sistema de comunicação daquele povo.

Eles com certeza ainda não possuíam implantes neurais para comunicar-se diretamente e provavelmente utilizavam algum canal visual ou sonoro para a troca de informações. Normalmente bastaria deixar o computador captando os sinais de rádio emitidos pelo planeta durante um certo período para que ele fizesse automaticamente a tradução das principais linguagens e integrasse um sistema de comunicação adequado ao traje bio-sintético de Storglarst. Mas ele não tinha tempo para isso agora, pois precisava descer e ocultar sua nave antes que os balruns viessem rastrear aquele sistema solar. Sua única opção era instalar um sistema de comunicação genérico no traje, procurar uma área afastada onde pudesse encontrar uma população bem pequena de habitantes locais, talvez até mesmo um indivíduo isolado, e então travar contato e esperar que o computador do próprio traje fizesse a tradução. E enquanto isso ele programaria a nave para se ocultar no fundo de um dos extensos oceanos do planeta, de forma que qualquer energia que ela emitisse fosse bloqueada por quilômetros de água e pudesse desta forma escapar aos sistemas de rastreamento do inimigo. Ele também não poderia levar nenhuma arma consigo, pelo mesmo motivo. Apenas o traje bio-sintético garantiria sua sobrevivência.

Este era o plano que ele estava executando agora. Sua nave já estava mergulhando no oceano buscando uma fenda abissal a mais de seis quilômetros de profundidade, onde desligaria todos os seus sistemas com exceção do receptor de táquions e ficaria aguardando o sinal de chamada. E ele estava atravessando aos saltos um trecho de mata fechada, aproximando-se de uma casa isolada na qual os sensores de sua nave haviam detectado a presença de três habitantes antes de ele pousar. Sua ideia era fazer ruídos que atraíssem pelo menos um deles para fora da construção e iniciar uma conversação com a própria voz, emitida através de sua boca sugadora em forma de probóscide. Aguardaria então que a criatura emitisse algum sinal em resposta, permitindo que o computador do traje bio-sintético iniciasse a avaliação da sua linguagem. Aí ele poderia simplesmente repetir os sinais que recebesse em diferentes modulações até estabelecer a comunicação, e depois tudo seria mais simples. Ele também sabia que não deveria fazer nenhum movimento brusco com seus curtos braços ou suas mãos de três dedos, pois não conhecia o repertório gestual daquele povo e poderia ser mal interpretado. Ou pelo menos era o que ele achava, mas tinha que admitir agora que poderia fazer bom uso de um treinamento mais abrangente sobre contatos com raças primitivas como o que era aplicado para os cientistas e exploradores.

Uma curiosidade inocente o assaltou: Como será que o som de sua voz soaria aos ouvidos de um habitante daquele planeta?

* * *

- Ô Madalena, onde é que Hermínio tá indo?

- Ara, não é nada não Donana, ele agora faz isso toda hora. Deixe pra lá que ele já já volta, vamo vê a novela que a gente faz mió.

- Mas assim ele vai perdê o início do capítulo, sô. Não dá pra ele esperá os comercial?

- Ah, cê sabe que esse teu irmão é meio doido mermo, sempre foi assim inté antes da gente se casá, Deus me livre guarde. Quando ele se aposentô e mudamo aqui pro sítio pensei que ele fosse sossegá, mas não, ele vive inventando história que nem daquela vez que cismô de criá abelha e todo mundo foi picado, inté ele mermo. Depois que colocô esta televisão de satélite com antena paranóica então, cada dia é uma coisa.

- Mas o que ele tá indo fazer lá fora agora, nessa escuridão?

-Ah, minha filha, na semana passada passô aquele programa dos bicho esquisito lá dos estrangero, o tal do pé-grande, o homi-das-neves, o monstro-do-lago-nessi, e agora qualquer barulhinho lá na mata ele sai logo pra ver o que é. Outro dia ele inté atirô num gambá bem em frente ao...

BUM! Soou um forte tiro na varanda, seguido pelo grito triunfante de Hermínio:

- Mulhé, vem cá! Corre aqui fora que eu acabei de dá um tiro bem no meio das fuça do tal do chupa-cabra, que veio pulando e chiando que nem cobra pra cima de mim!!!

Leandro G Card
Enviado por Leandro G Card em 22/06/2009
Reeditado em 21/01/2023
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