O VISITANTE

Eu vivo para consertar as coisas. Desde criança a curiosidade me move. Meu fascínio são as maquinas, essas coisas artificiais, obras do engenho e do desejo humano.

Quando menino me encantei com um velho relógio do meu pai. Ele era vermelho, com um martelo no alto entre dois sinos metálicos. Tão antigo que para funcionar era necessário dar corda girando uma chave na sua costa. Os ponteiros giravam sincronizados com aquele tique taque marcando a passagem do tempo, tique taque sem fim, tique taque hora após hora.

Meu pai adorava aquele relógio. Só descobri isso depois que o desmontei. Mas eu precisava saber como ele funcionava, que força sobrenatural atuava sobre aquele objeto.

Ao abri-lo, no entanto, constatei que não havia nada, absolutamente, nada de extraordinário. Suas entranhas eram engrenagens, parafusos e arruelas. Tentei remontá-lo, mas ora sobrava um parafuso, ora uma arruela, ora uma engrenagem. Fiz o melhor possível, mas o velho relógio nunca mais funcionou, travou os ponteiros em 17:50. Meu pai ficou muito triste. Até hoje mantenho esse relógio na estante da sala.

O primeiro fracasso não me desanimou, ao contrário, cada vez que eu olhava o velho relógio lembrava-se da tristeza que causei ao meu pai. E assim crescia na alma o desejo de desvendar o segredo das máquinas. Então me pôs a ler e pesquisar tudo que se referia as máquinas.

Os anos passaram e chegando a fase adulta tornei-me um profundo conhecedor de como as máquinas funcionavam. Desde uma calculadora de bolso até nave espacial eu sou capaz de dissecar e entender o seu funcionamento. Mas as máquinas antigas, aquelas feitas de engrenagens e parafusos é que me fascinam. Sua simplicidade e funcionalidade são fantásticas. O interessante é que se pode tocar suas entranhas e manipular as peças da forma que desejar. As máquinas modernas com seus chips, circuitos integrados e nanotecnologia não se pode nem olhar com cara feia que elas param.

Então um dia, quando observava o pôr do sol, admirando o céu tingido de vermelho e a perfeição da criação, uma idéia tomou minha mente: construir uma máquina do tempo. Assim, pensei eu, poderei consertar as coisas erradas que as pessoas tenham feito no passado e recolocar suas vidas no eixo. Quem, neste mundo, já não se arrependeu de uma decisão infeliz, quem já não desejou poder voltar e tomar outra decisão? Isso seria bom para todos.

Daquele momento em diante só tinha em mente construir essa máquina. Eu não tinha parente, não tinha mulher, nem filhos, minha família se resumia a um cachorro gordo e um gato preguiçoso. Meu trabalho era em casa desenvolvendo softwares para um multinacional, com a qual mantinha contato via internet. Dessa forma eu tinha todo o tempo do mundo para trabalhar na minha maquina do tempo.

Passei anos e anos debruçados sobre livros de física, química, biologia, astronomia e matemática, estudando, calculando, projetando. Um belo dia, sabe lá Deus quando, eu encontrei o que buscava. Com as equações exatas pôs-me a construir a maquina do tempo.

Dias e noites passaram sobre minha cabeça enquanto apertava parafusos, arruelas, encaixava engrenagens e ajustava placas metálicas. Finalmente pude vislumbrar o que existia apenas na minha imaginação. Bem no centro da minha garagem estava o engenho prateado que consertaria vidas. Faltava apenas testá-la. Mas por onde começar? Essa era a minha grande dúvida.

Então calculei começar por algo próximo. Assim posicionei os ponteiros para doze meses antes da posse do novo prefeito da cidade. Julguei sua administração desastrosa, ele era um péssimo governante. Acionei os motores e em alguns segundos tinha retrocedido um ano. A campanha eleitoral estava a todo vapor. Para minar a campanha do candidato indesejável passei a publicar artigos nos jornais denegrindo sua imagem, distribui panfletos acabando com sua reputação, juntei documentos comprometedores e levei até a imprensa. Feito isso voltei ao meu tempo.

Então ao chegar tive uma surpresa. A cidade estava um caos. Uma onda de violência se abateu sobre a sociedade como nunca se viu antes, escândalos assolavam a administração do novo prefeito, os funcionários públicos de todos os níveis entraram em greve exigindo o pagamento de salários, enfim ficara ainda pior do que estava. Não acreditei no que estava vendo. ,

Então conclui que o fracasso foi porque eu havia sido mesquinho, deveria ver mais longe, procurar consertar algo realmente grandioso. Assim ajustei os ponteiros para 28 de junho de 1914, Bósnia. Consegui evitar o assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando, acabei com o pretexto da primeira Guerra Mundial, salvei milhões de vidas. Feliz retornei ao meu tempo.

No entanto, o que vi quando cheguei foi ditaduras totalitárias infestando o mundo, conflitos em diversos continentes, a democracia havia sucumbido. Eu tinha que consertar. Mas cada nova investida no curso da historia mais desastre eu provocava. Até o dia que a terra virou um deserto, eu estava sozinho, a espécie humana já não existia, eu havia destruído o ser humano. A culpa flagelava minha alma. Mas eu tinha a máquina do tempo e sabia o que tinha que fazer para consertar tudo. E assim cheguei aqui.

*********************************************

Henrique paralisado fita aquele homem que a duas horas bateu na sua porta.

- Deixa eu ver se entendi: você sou eu do futuro que voltou para me impedir de construir a máquina do tempo? Indaga Henrique.

- Sim! Responde o visitante. Henrique o observa. Inicialmente o tomou por algum maluco, mas os detalhes de sua infância, a forma como descreveu fatos e sentimentos eram verdadeiros demais para serem apenas coincidência. Além do mais o rosto, apesar das rugas e barba branca, era o seu. Por mais absurdo que parece aquela historia poderia ser verdade.

- Se você sou eu do futuro por que o universo não explodiu quando nos encontramos? Questiona Henrique.

- Essa era uma das minhas preocupações. Mas isso é apenas uma teoria, como ninguém havia de fato viajado no tempo havia a possibilidade de estar errada. Responde o visitante.

- Quando terei a idéia de construir essa máquina? O visitante volta o olhar para um dos inúmeros relógios que traz preso ao pulso.

- Daqui a trinta minutos e quarenta segundos.

- E como pretende impedir-me de construir a máquina do tempo? O rosto do visitante se torna grave e movendo o rosto fita o horizonte.

- Jamais esqueci esse dia com o céu tingido de vermelho, a brisa suave soprando e a harmonia contagiante. Para mim esse foi o dia mais feliz da minha vida. Pois, a idéia veio como se fosse inspiração de Deus. Vivemos imersos na solidão desde a infância, jamais estabelecemos relacionamentos duradouros, não temos filhos, nunca fizemos nada de bom ou de ruim para ninguém e com a máquina do tempo poderíamos salvar milhões de vidas. No entanto não foi o que aconteceu. Seres como nós são dispensáveis, uma vida inútil.

- Como pretende impedir-me ? Insiste Henrique. Então o visitante se volta empunhando uma pistola. Um tiro certeiro trespassa a cabeça de Henrique arremessando seu corpo ensangüentando no meio da sala. O visitante desaparece imediatamente. Na estante o velho relógio volta a funcionar.

**********

Sannyon
Enviado por Sannyon em 05/02/2010
Código do texto: T2071372
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.