Palmas para a Morte

— São 3h11 e estou sem sono. Já li os melhores livros e não terminei de ler os piores. Já transei com grandes mulheres e com mulheres lindas. Já provei dos melhores pratos e dos piores. Já estudei as coisas que me interessavam. Sou formado em Odontologia, Medicina, Enfermagem, Fisioterapia e Psicologia. Dentre essas áreas sou mestre em Medicina e Psicologia. De que adianta isso tudo? São 3h12 e de que me adianta ser um estudioso de várias áreas? Nem mencionei, mas falo seis idiomas, entre eles; português, espanhol, francês, inglês, mandarim e holandês. Já viajei muito, também. Creio que só não conheço muito bem a mim mesmo, como ser humano, mesmo sendo psicólogo e médico. Mas falo de algo mais interior ainda... esqueçam! O resto eu me garanto. Penso nisso há uma semana. Vou morrer. Por tal motivo estou gravando esse depoimento. Não tenho filhos, irmãos, pais ou parentes. Não tenho muito dinheiro. Não era essa a minha intenção: juntar riqueza. A meta era poder ajudar. Fiz o que precisava ser feito e o que pude fazer. Hoje estou com noventa anos e aprendi a amar este lugar. Mas as coisas são assim. Vou morrer. Aqui tudo acabará. Mas lembro-me perfeitamente. A comissão havia me dito: “Vai, faz o possível, mas faz com esmero, estude o povo e volte. Terás noventa anos e um dia de prazo. Boa sorte.”. Fiz o nonagésimo aniversário ontem. Não houve comemoração de minha parte. E hoje eu parto. Lembro-me que não queria vir. Lembro-me que relutei. Busquei os seres da mais alta cúpula. Todos me negaram ajuda. Contudo aprendi a gostar desse lugar. O desprendimento será às 3h15. Como falta um minuto vou deitar-me e fechar os olhos. Lembro que foi assim que aprendi. Não posso me mover. Tenho que estar de olhos fechados, pois isso ajuda na paralisação total dos movimentos. Mas o que acontecerá se me mover? E se no momento do desprendimento eu levantar-me do sofá ou fizer algum movimento? “Nunca se mexa no processo de desprendimento. Terás que permanecer imóvel até ficar inconsciente!” – dissera-me um dos diretores de pesquisa.

— Amo todos vocês com quem convivi. Amo todos que escutarem essa fita. Eu amo o ser humano. Posso não ser um humano de fato, mas o sou de preferência.

O velho que acabara de colocar o gravador no chão ao lado do sofá. Estava, agora, de olhos fechados e deitado numa posição cadavérica. Ele sabia que não poderia morrer como um ser humano comum. Acidentes, tiros, suicídio, doenças, nada o mataria. Apenas acabaria sua missão na terra. E ele voltaria a seu planeta de origem. Mas há quarenta e seis anos ele tomara uma decisão.

Em questão de segundos uma luz translúcida começou a girar por cima de seu corpo. Era o processo de desprendimento. Mentalmente aquele senhor falava: “É chegada a hora. Que tudo se resolva de uma vez. Seria ótimo se desse certo!”.

Então o homem abriu os olhos e bateu palmas reiteradamente. Um largo sorriso apareceu no seu rosto. Viu que a luz acima de seu corpo parara como que num estado de incredulidade, se é que uma luz pode ter uma sensação dessas, mas com os extraterrestres não se deve duvidar de nada. Ele estava tendo um sintoma humano. Talvez um infarto ou uma falência múltipla dos órgãos. Ele era médico. Sabia os sintomas. Sabia que estava morrendo. E morrendo com um ser humano. Ainda estava consciente. Talvez não fosse um enfarto propriamente dito, mas teve convicção de que seu corpo estava numa situação difícil. Pela primeira vez em noventa anos uma situação desfavorável ao seu corpo.

A luz esvaiu-se comedidamente deixando-o morto no sofá de seu apartamento com olhos absurdamente arregalados de alegria, junto a um sorriso sincero e de paz. A paz que um ser humano tem, mesmo depois da morte.