KOVURO E ARUEN - Terceira parte

Ao meio-dia passou pela ponte um camponês a pé, encapuzado, levando pela rédea um blenfa carregado. Acompanhava-lhe uma menina atrativa de mais ou menos doze anos, vestida de marrom.

Os guardas deram-lhes pouca atenção. O camponês e a menina misturaram-se a multidão, perdendo-se das vistas de quem ficava na entrada. Kovuro e Tules Dotir Reggihag, por fim estavam dentro da sórdida babel.

–E agora, Kovuro?

O mercenário, irreconhecível, encolhido e coberto pela capa preta camponesa, sob a qual ocultava suas armas, respondeu:

–O mercado.

–Vamos por aqui – disse Tules, seguindo a direita.

A dupla apertou o passo e pouco depois entravam no descomunal mercado de Marka, que parecia um manicômio a céu aberto com um grande movimento, onde tudo era vendido; animais, comestíveis, bebidas, drogas, escravos...

Logo foram abordados por um homem gordo, de capa amarela:

–Quanto quer por essa menina, camponês?

–Não está a venda.

–E o blenfa? Dou-lhe cinqüenta kunaris por ele!

–Duzentas com a carga.

–O que carrega?

–Fruta.

–Feito!

E assim, Kovuro e Tules faturaram duzentas kunaris. Afastavam-se, quando ainda ouviram a voz do homem gordo:

–Dou-lhe duas mil kunaris por essa menina, camponês!

Kovuro virou-se; e com um olhar terrível congelou o negociante:

–Não está a venda.

–Está bem, amigo... Entendi. Aproveite bem, é linda e novinha.

*******.

O mercado de Marka era tão grande que Tules perdeu o caminho da saída. Kovuro nunca vira tanta gente junta antes e sentiu-se mal.

Caminharam entre pequenos grupos de negociantes, que realizavam negócios mais delicados e seletivos.

Havia traficantes de armas convencionais e não convencionais de tecnologia muito superior ao que poderia conseguir-se num mundo medieval como Zhoropak.

Kovuro e Tules detiveram-se um momento para ver um pequeno grupo de negociantes que examinavam um objeto preto, alongado com uma coronha igual a um lança-dardo numa extremidade e na outra um cano metálico.

O mercenário preparou seu ouvido para captar a conversa:

–Este, meus amigos, é um fuzil de ação dupla fabricado em Apu-Marka sob técnicas muito secretas e antigas. Dispara uma rajada de luz concentrada tão quente que derrete até pedras – disse o traficante – além disso, se o inimigo é muito difícil, vocês colocam uma bala de pólvora como esta, estão vendo? Quando bate, seja onde for, explode, destruindo tudo o que tiver na frente... Apenas quinze mil kunaris, meus amigos, uma verdadeira pechincha!

Ninguém, a não ser Kovuro, achou o preço alto demais. Realmente era uma pechincha, considerando que um civil ao que fosse encontrada uma arma ilegal daquelas, seria sumariamente condenado à morte em Marka.

Sem dúvida aquela arma devia de ser roubada de algum guarda de elite da Mama, os únicos com autorização para possuí-las.

Seguindo em frente, Kovuro e Tules chegaram à banca de um traficante de drogas; mas não de drogas vulgares ou remédios, senão de mutara, a famosa droga que dava poder à perversa tirana Mama Dotir Apak.

–Temos pacotinhos de meia dose refinada e de um quarto de dose, para os senhores escolherem qual a modalidade. Fazemos a entrega em lotes de mil pacotinhos de um quarto de dose ou de quinhentos pacotinhos de meia dose. Os lotes de uma dose estão suspensos até nova ordem devido à falta de embalagens.

–Vamos embora daqui, Kovuro – disse Tules, com o rosto sombrio.

Mais adiante passaram pelos traficantes de escravos, que leiloavam dezenas de homens e mulheres para trabalho pesado, em lotes de trinta pessoas.

–Quem dá mais por este lote? – dizia o leiloeiro – Quinhentas kunaris por cabeça; dou-lhe uma, quinhentas dou-lhe duas... Alguém disse seiscentas?

A adolescente agarrou-se com força do braço de Kovuro.

Seguiram adiante até chegar num traficante de escravos mais elitista, com uma freguesia seleta.

Um pequeno número de pessoas bem vestidas agrupava-se na porta da barraca do traficante de escravas e meninas de sete a vinte anos.

–...E a próxima escrava; senhores, tem olhos verdes, cabelo preto não muito longo, como vocês podem apreciar, belo rosto, pernas bem torneadas, lindos peitos, é inteligente, é puraniana, como podem ver pela tatuagem, e seu nome é Aruen!

Valdher Xon Zyszhak era o traficante de escravos mais rico da redondeza, suas vestimentas eram riquíssimas e seus dedos estavam cheios de anéis de ouro e pedras preciosas.

Ele não era humano; senão da antiga e execrada espécie parasita dominion, do planeta Haduk Prime da estrela Alschaim; como o indicava sua pele amarelada, a cabeça raspada e as orelhas pontudas.

Sem dúvida escondia-se da justiça em Zhoropak, um planeta medieval,

atrasado e sem lei.

Os seres da sua espécie foram proscritos pela lei confederada, por causa de sua maldade ancestral; criaturas a serem mortas assim que percebidas em todo o território da Suprema Confederação, desde a data estelar 890420, por ordem do Departamento de Inteligência da Frota Estelar.

Mas é claro que Kovuro não tinha como saber disso e ainda menos a plebe de Marka.

*******.

Valdher Xon Zyszhak segurava na mão esquerda uma prancheta com anotações de dados das escravas, e na mão direita uma fina vara comprida, decorada em puro ouro e prata, com a qual castigava de leve os pequenos erros das escravas ao desfilar perante a freguesia.

–Ela tem dezenove anos, meus distintos senhores! Tem todos os dentes e não teve filhos, como podem apreciar pelo seu ventre liso como folha de xil! – disse o traficante – Seu preço base é de cinco mil kunaris... Como sabem; eu tenho minhas despesas; a mercadoria deve ser embelezada... Cabeleireiro, manicure, etc... Quanto oferece por Aruen, nobre senhor?... Terei ouvido seis mil kunaris?

–Seis e quinhentas! – Gritou um sujeito, levantando uma mão cheia de anéis.

–Sete mil kunaris! – gritou outro, de capa marrom.

–Sete e quinhentas! – retrucou o dos anéis.

–Oito mil kunaris! – respondeu o da capa.

–Oito e quinhentas! – vociferou o dos anéis.

–Dez mil kunaris! – interveio um sujeito de uniforme preto.

O silencio se fez no leilão.

*******.

O sujeito dos anéis e o da capa entreolharam-se com receio, contando mentalmente o dinheiro de que dispunham.

Kovuro deu uma rápida olhada na sua bolsa de moedas, pensando nos seus míseros duzentos dinheiros. Perante as quantidades que eram manejadas aí; Kovuro sentiu-se pequeno ao compreender que duzentas kunaris não eram a fortuna que imaginara.

A adolescente percebeu que ele mudara de expressão ao ver a escrava. Os olhos do mercenário não se afastavam da jovem descalça, vestida apenas com uma minúscula tanga azul, exposta aos olhares lúbricos de toda aquela gente rica.

Valdher Xon Zyszhak esfregou as mãos amarelas; satisfeito. A inesperada aparição do guarda de elite elevaria o preço da escrava; mas deveria ser astuto para não exagerar, já que os outros poderiam amedrontar-se perante o soldado da repressão e abandonar o leilão.

De qualquer forma, a escrava já era praticamente do soldado.

Seria uma temeridade disputá-la, considerando os recursos de que o guarda dispunha, ou poderia dispor no momento em que o desejasse.

–Dez mil dou-lhe uma; dez mil dou-lhe duas; dez mil dou-lhe... – Valdher Xon Zyszhak sentiu o peso do poder da repressão ao ver que não apareciam outros interessados... – dez mil kunaris; dou-lhe três! Vendida ao oficial da guarda!

Kovuro sentiu um peso no peito, ao ver a jovem ser entregue ao soldado.

–Você gostaria de comprá-la, Kovuro? – disse Tules.

–Sim. Para libertá-la – respondeu o mercenário.

*******.

Kovuro, o mercenário de Purana, e Tules, a camponesa de Marka; observaram discretamente ao oficial da guarda de elite examinando sua compra.

Com um pouco de atenção, ouviram seu diálogo com o leiloeiro:

–É realmente bela – disse o soldado.

–Claro que é. Também é inteligente – disse o comerciante.

–Mas... Está drogada!

–Pois é... Esqueci de avisar. Tive que drogá-la porque é muito nervosa... Foi o único jeito de trazê-la ao leilão.

–E difícil lidar com ela?

–Ah!... Não... Quer dizer... Depende do senhor conseguir domá-la...

–Deixe-a comigo – disse o soldado – não será difícil.

–Ótimo! – disse o dominion embolsando o dinheiro.

A escrava foi introduzida numa cadeira coberta carregada por quatro escravos e nesse meio tempo recuperou-se do efeito da mutara e compreendeu onde estava.

Sua reação foi violentíssima. Aruen debateu-se dentro da cadeira coberta, para espanto dos quatro escravos. Violentos pontapés desmancharam a frágil estrutura de madeira, que desabou no meio de estilhaços.

–Peguem-na! – gritou o soldado aos seus escravos – não deixem que fuja!

Aruen assomou entre os destroços, usando as correntes que prendiam seus pulsos a modo de porrete, castigando até os pobres escravos, perante o desespero do soldado, que não sabia como detê-la sem machucá-la.

Valdher Xon Zyszhak, aproveitou a confusão e desapareceu silenciosamente na multidão. Aruen, mantendo a raia os escravos de carga, virou dona da situação, com as correntes girando encima da sua cabeça. O soldado percebeu que não seria fácil dominá-la. Era obvio que a moça era uma guerreira de Purana. Deveria empregar soluções mais drásticas, como empregaria para deter um homem.

–Sinto muito, garota – disse o soldado.

Em seguida o homem pulou encima da mulher, que reagiu com violência sem amedrontar-se, atingindo-o no rosto com as correntes. O homem não se abalou, embora do seu rosto brotasse sangue em profusão. Mudando a tática, o soldado avançou com as mãos preparadas para dar um golpe na cabeça da mulher, com o canto da mão. Golpeou uma, duas, três vezes, encima da orelha direita, depois da esquerda, e depois no pescoço. Aruen caiu desacordada, e o soldado respirou aliviado sob o olhar dos apavorados escravos.

–Amarrem-na! – disse-lhes.

–Não! – gritou Kovuro, desembainhando sua pavorosa espada.

–Ai, ai, mais problemas! – disse o soldado – Era o que faltava! Um camponês irritado... Sem dúvida drogado... Está bem, camponês valentão, venha, vamos acabar com isso de uma vez. Estou cansado.

–Tenho a solução – disse Kovuro, desvencilhando-se da capa de camponês e mostrando seu bronzeado torso nu e seus braços musculosos de guerreiro.

*******.

Os participantes do leilão de escravas e meninas de sete á vinte anos; ao ver o traficante desaparecer, optaram por sumir, mas uma pequena multidão de curiosos, prontamente rodeou os dois homens, formando um apertado círculo ao redor. Os homens encararam-se com cautela.

O oficial logo percebeu que o gigante não era um simples camponês.

–Venha, camponês, ataque-me!

–Venha você.

O oficial tentou um ataque frontal com a sua espada de dois gumes. Kovuro parou o golpe, empurrando o soldado para trás, que se refez e atacou de novo, irritado por aquele sujeito mal vestido que segurava uma bela e reluzente espada de aço puraniano trabalhado, como se fosse parte do seu corpo.

O oficial segurou a espada com as duas mãos e partiu para um ataque em profundidade com a intenção de partir seu inimigo ao meio e acabar de uma vez, mas só encontrou o chão, e antes de compreender o que acontecera, ouviu o assovio da espada de Kovuro descendo sobre sua cabeça. Rápido como um raio, o oficial rolou pelo chão, e a espada do gigante passou a milímetros da sua cabeça, arrancando poeira do chão.

Antes de Kovuro desenterrar sua espada, o oficial estava em pé e se preparava para atacar, mas o mercenário de Purana conseguiu parar o golpe com a sua espada e contra-atacou com violência, fazendo o aço cantar, o que provocou o pavor dos curiosos. O oficial recuou perante a força do ataque do mercenário, que agora dominava a situação.

Kovuro atacou de frente e o oficial perdeu o equilíbrio e caiu. O mercenário levantou sua espada para o golpe de misericórdia, e de repente, um dardo cravou-se nas suas costas.

A espada escorregou das mãos do mercenário, suas pernas afrouxaram-se e o gigantesco guerreiro desabou no chão com espantoso estrondo. Do meio da multidão, surgiu um soldado armado com um lança-dardo.

–Chegou a tempo, soldado – disse o oficial – obrigado.

–Ele ficará narcotizado por um bom tempo, senhor.

–Amarre-o. Parece-me puraniano... Como a garota. Maldito seja o Zyszhak!

–Sim senhor.

–Vamos levá-lo para Apu-Marka.

(continua)

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O conto KOVURO E ARUEN forma parte integrante da saga inédita

Mundos Paralelos ® – Fase 2 - Volume V, cujo inicio pode ser encontrado no Blog Sarracênico - Ficção Científica e Relacionados,

sarracena.blogspot.com

Gabriel Solís
Enviado por Gabriel Solís em 21/03/2011
Reeditado em 17/06/2017
Código do texto: T2861013
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