O Mistério de Springfield - parte 3

– O que o Senhor está querendo dizer com isto? – perguntou, repondo sobre o ombro direito a alça do vestido que, teimosamente, caíra-lhe outra vez, desnudando a pele queimada. Ele repensou o que havia dito, mas sem nenhum arrependimento. A reação era mais do que previsível e a tréplica já estava pronta.

– Vou explicar melhor, não se preocupe – disse. Nesse momento, uma jovem negra surgiu trazendo uma bandeja branca de porcelana, ornada de motivos florais alaranjados que contrastavam com o esmalte terra de suas unhas pontiagudas. Ele teve que esticar a mão para retirar a xícara com o café. – A propósito, meu cavalo necessita comer um pouco de ração para enfrentar a longa jornada de volta; vi que possui algum gado e um curral…

– Já está sendo providenciado – disse, mostrando certa impaciência.

– Obrigado. Pois bem, – cruzou as pernas, pondo um dos cotovelos sobre os braços da poltrona – a casa de vocês é a mais afastada de todas. Cavalguei durante horas até chegar aqui. Já dentro dos limites de Springfield, esgotados, eu e meu cavalo, fizemos o último trecho na mais completa morosidade; pude assim observar tudo ao redor. A mais de uma milha ficou a última residência. De lá para cá a paisagem é ampla, quase sem obstáculos, salvo a sua própria casa que está numa pequena elevação. O rio por aqui não é navegável, o que dificulta a aproximação por ele que por sua vez obriga o visitante que vem do sul a contornar imenso milharal para alcançar a ponte de corda ao lado da sua chácara. Pelo relatório que me foi entregue, seu esposo era… é um homem bastante conhecido, mas sem inimigos. Vocês vivem uma união estável e aparentemente feliz há quinze anos. Ele nunca apresentou problemas sérios de saúde em seus quarenta e quatro anos de idade, tampouco indícios de falta de satisfação com o casamento que justificassem um rompimento inesperado. Perda de memória ou perturbação por motivos financeiros também foram descartados. – Tomou um gole do café e continuou: – Tudo isso, a princípio, elimina as possibilidades de um afastamento voluntário de Mr. Walters da convivência dos seus. Quanto a um provável sequestro, as chances são mínimas. Como já disse, não há rotas de fuga e todo e qualquer visitante seria visto, entrando ou saindo. Os seis empregados da fazenda são tão antigos quanto o próprio negócio e não têm mais que responderem ao inquérito. Quando perguntei sobre visita inusitada, estava querendo me referir aos clientes que possuem na propriedade. Pode falar a respeito?

– São visitas de praxe; muito poucas e raras. Em noventa e cinco por cento dos casos, somos nós que vamos até eles.

– Amigos e parentes?

– Só temos um filho; está casado e vive em Cincinnati. Quanto aos amigos, nos visitam com certa regularidade, mas, como o senhor já deve ser sabedor, todos já foram investigados.

– Sim, eu sei disso. E é aí que fico preocupado.

– Não compreendo.

Patrick ajeitou-se na cadeira. Descruzou as pernas, tomando o último gole de café e depositou, sobre uma mesinha de vidro, à sua frente, a xícara, completamente vazia. Com a ponta dos dedos, puxou dois minúsculos carrapichos que estiveram grudados na perna direita da calça azul de brim. Com leve piparote, lançou, pela janela aberta atrás de si, os espinhos, que foram cair sobre a grama meio úmida. – Acontece que lido com o crime há mais de vinte anos. Não me limito a procurar bandidos e metê-los na cadeia; vou muito mais longe, como a senhora pode ver – brincou um pouco para relaxar o ambiente. Ela condescendeu com leve sorriso forçado que, mesmo assim, realçou-lhe a beleza do rosto, ora abatido. – Quando as buscas concretas me faltam, recorro ao sobrenatural – acrescentou.

– Como assim?

– Sobrenatural. Não tem “como assim”. Tudo o que estiver dissociado do puramente racional passa a ter sentido para as minhas investigações. Talvez, por isso, pensam em mim para solucionar casos incomuns que já ocorreram fora da esfera material.

– Já ocorreram!?

– Sem dúvida, senhora Walters, mas não vem ao caso agora. Por isso quero concentrar-me de certa forma não convencional para os padrões tradicionais da criminologia. – Jane olhou para ele de um jeito também incomum. Achou que podia estar diante de um daqueles detetives neuróticos com mania de Sherlock Holmes. Porém, as informações que conseguiu sobre ele davam conta de alguém cuja reputação era das mais confiáveis.

Patrick tirou do bolso a mesma fotografia, levantou-se e deu três passos até onde a mulher estava. – Vê isso? – disse, estendendo a mão.

– É este lugar. Reconheço pela paisagem. Deve ser muito antiga; como conseguiu?

– Não me pergunte. Foi-me entregue pelo Centro de Pesquisas Arqueológicas de Nashville. De acordo com as descrições divulgadas pela imprensa, fomos informados da existência, aqui, – apontou para o local da foto onde hoje está a casa – de um inexplicável campo energético.

– O que é isso? – ela perguntou ao virar-lhe o retrato, mostrando o canto esquerdo deste com o dedo da outra mão.

– Deve ser deste lado – disse Patrick, esticando o braço para o leste, – a um quarto de milha de onde estamos. Há pouco mais de um século, funcionou ali importante mina subterrânea de carvão mineral que ajudou a sustentar por décadas a economia local. Mas, um acidente inexplicável acabou com tudo. Havia uma lei protetora que não permitia escavações além de determinada profundidade. Todavia, um arrojo de coragem e desobediência causou a descoberta de incontáveis jazidas de diamante a muitos metros abaixo do permitido. Foi o suficiente para desestruturar as camadas de sustentação das galerias nos níveis superiores. Dezenas de mortes ocasionaram o fechamento e o encerramento das atividades. Foi uma tragédia. Muitos corpos ainda se encontram lá embaixo. Anos mais tarde, muitos foram os aventureiros que, apesar de tudo, influenciados por histórias fantásticas e improváveis de outros que haviam conseguido chegar até as jazidas e retornar salvos e abarrotados, decidiram tentar o feito, mas não tiveram a mesma sorte. Aí começaram os desaparecimentos. Tudo ficou, entretanto, sepultado no tempo e na história. Na dúvida, persistiu o medo. Costuma ir àqueles lados? – perguntou, recolhendo a foto e voltando a afundar na poltrona.

– Às vezes passeio por ali à cavalo. Há uma encosta coberta pelo matagal, sobre um platô, ao longo da estrada. Deve ter sido a tal mina. Lembro-me do comentário de um antigo morador de Springfield, já falecido, a respeito desta catástrofe. O senhor tem razão, já faz muito tempo.

– O último registro de desaparecimento no arquivo geral do Missouri foi feito há quarenta e sete anos. Porém, há um detalhe que me chamou a atenção. – Jane endireitou mais uma vez a alça do vestido, agora, a do ombro esquerdo.

– Qual? – perguntou com interesse.

– As circunstâncias que envolveram os dois últimos casos assemelham-se ao de Mr. Walters, ou seja, o fato se deu de forma inexplicável e as testemunhas mais próximas asseguram que a vítima estava em casa e em sua presença minutos antes. Não digo, até por falta de sentido lógico, que exista relação com a mina subterrânea, mas, como já sabe, estou propenso a dirigir minhas investigações ao terreno do ilógico ou mesmo do inconcebível, se preciso for.

Embora o concreto e o prático tenham sido obliterados durante aquela primeira visita de Patrick, ele deixou satisfeito a moradia dos Walters. Jane sentira que uma linha de conduta, ao menos diferente, poderia trazer algum resultado prático e mais animador. Afinal, ninguém chegara tão próximo quanto ele, em análises e comparações. A confiança que conquistara o deixou seguro, a ponto de estabelecer uma segunda visita. Propôs a ela que o acompanhasse até o local da entrada da mina, afim de que um estudo, in loco, fosse realizado. Precisava de sua presença para ajudá-lo com alguns instrumentos, assim como lhe mostrar detalhes do caminho. Não foi fácil convencê-la. Contudo, as razões que ele lhe deu foram justas, e a esperança de encontrar o marido falaram mais alto, também. Voltaria em dois dias.

Professor Edgard Santos
Enviado por Professor Edgard Santos em 04/05/2012
Reeditado em 08/06/2015
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