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Na antessala do laboratório de engenharia genética do Instituto Nacional, o telefone não parava de chamar.

Era a quinta ou sexta vez que os toques irritantes soavam até disparar e imediatamente, começavam outra vez.

Decididamente não havia ninguém por perto para atendê-lo.

Irritado por ter sido perturbado pelo ruído constante o Dr. Pedro levantou o rosto, coçou os olhos marcados pelo plástico de proteção da ocular e desligou a lâmpada do microscópio de altíssima definição e, como de costume, gritou a plenos pulmões:

- Alô, alguém aí! Atendam a esse telefone dos infernos antes que eu toque fogo nele...

Apenas o silêncio do enorme laboratório vazio foi a resposta que obteve.

O telefone começou a tocar outra vez...

- Diabos! O maldito Alexander Grahan Bell deve estar se revirando nos infernos por ter inventado esse maldito aparelho... (e com visível mau humor) Alô!...

- Dr. Pedro...

- Sim é Pedro. Pensava que fosse quem? Arnold Schwarzenegger, Virgulino Lampião ou Padre Ciço?

- Desculpe doutor, mas é uma emergência...

- Vá lá, tudo bem. Você já me interrompeu mesmo.

- Desculpe ter lhe acordado...

- Mas eu não estava dormindo...

- Não? Pelo adiantado da hora, eu pensei...

- E que horas são?

- Duas e quarenta e cinco da madrugada.

- Caralho! É por isso que os estagiários sumiram...

- É doutor, acho que só nós dois estamos acordados. E no meu caso é porque estive lhe procurando desde as oito da noite. Ninguém sabia dar notícias do seu paradeiro...

- Mas o que é a emergência?

- É que a doutora Eneida caiu e partiu a bacia. Foi levada para o hospital e antes de entrar na sala de cirurgia, mandou que eu achasse o senhor e lhe pedisse para ir no lugar dela para Belgrado.

- E quando vai ser isso?

- Amanhã. Quer dizer hoje. O próximo voo será às dez horas. Perdemos o da meia noite porque só agora o encontrei. O voo tem conexão em Lisboa. Considerando o tempo de voo, a espera da conexão e a diferença de fuso horário, o senhor terá que ir direto do aeroporto para o centro de convenções porque a palestra dela abre o congresso.

- E o cd com a mídia da palestra e as anotações onde estão?

- Já deixei em sua casa. Dentro da pasta estão o cd, o pen drive e o caderno que mandei imprimir com as anotações para o senhor poder ler durante o voo. Entreguei tudo na sua casa a um senhor que atendeu à porta.

- É seu Genaro, meu sogro.

- Exatamente. Foi esse nome mesmo que ele disse. Já providenciei o check-in nos dois voos. Espero que sejam tranquilos e que o senhor possa dormir antes de enfrentar aquelas feras.

- Que feras que nada. Eles são um bando de gatinhos analfabetos em engenharia genética que Eneida tem o mau costume de elogiar.

- Mas o Dr. Pyotr estará também...

- Pelo menos teremos uma mente brilhante entre os nescios...

oooooOOOOO00000OOOOOooooo

O vôo direto para Lisboa transcorreu tranquilamente nas três primeiras horas.

Depois a aeronave começou a sacudir por conta dos ventos muito fortes na alta atmosfera.

Bem mais adiante a turbulência foi aumentando por causa da forte tempestade no cone interno de uma gigantesca cúmulos nimbos que obrigou o comandante a contornar pelo sentido anti-horário e elevar a aeronave para mais de dezoito mil pés de altitude a fim de evitar que ela fosse tragada pelo terrível temporal girando em altíssima velocidade.

O ar rarefeito teve que ser compensado pelas máscaras de oxigênio deslocadas dos compartimentos acima das cadeiras.

A aeronave foi chacoalhada por mais de duas horas até que sem nenhum aviso, entrou em área de calmaria e o comandante pôde retornar a altitude e velocidade de cruzeiro.

Todo esse transtorno fez com que o pouso acontecesse apenas meia

hora antes da conexão levantar voo.

O doutor Pedro foi o último cientista a receber a credencial em forma de crachá, que deveria permanecer pendurada no pescoço do identificado, enquanto durasse o encontro.

No rol de entrada do centro de convenções, recém-construído, o piso de mármore brilhava sob as fortes luzes que tentavam retardar a noite em Belgrado.

Não houve tempo hábil para passar no hotel, por isso o doutor Pedro tinha que arrastar a mala grande, a pasta com o note book e a pasta contendo os dados da pesquisa que, em conjunto com a doutora Eneida, estava sendo desenvolvida há mais de cinco anos e que agora, que se confirmaram os resultados esperados, havia se transformado na palestra que seria apresentada ao mundo científico naquele momento.

Tratava-se da marcação com hidrogênio radioativo dos fagos Rn1536pH que foram inseridos no DNA circular da Escherichia coli, com a função de produzir RNAm combinante preferencialmente com os retrovírus a fim de inibir a ação do HIV sobre os linfócitos T4.

Nos testes laboratoriais, as E.coli colonizadoras do duodeno de seis dos oito grupos de cobaias, produziram os RNAm em quantidade bastante para o sucesso do experimento e em cinco deles, transmitiram para seus descendentes por duas mil gerações, os fagos inalterados.

Durante a explanação introdutória, a plateia assistiu entre indiferente e incrédula, mas quando a metodologia foi explicada nos mínimos detalhes, quando foram ressaltadas as dificuldades para se determinar em qual palíndromo deveria ser aplicada a enzima de restrição para a introdução dos fagos, o sem número de vezes das repetições necessárias para o perfeito encaixe e o sucesso do acoplamento pelo método mais simples, a plateia reagiu com entusiasmo e os aplausos demonstraram o reconhecimento da comunidade científica.

Finda a explanação o doutor Pedro voltou para seu lugar no auditório.

O corpo todo doía reclamando das muitas horas insones e da tensão provocada pelo mau tempo durante o voo.

No intervalo, na fila do cafezinho, o geneticista inglês Sir Thomas, apresentou o também geneticista russo doutor Pyotr Tayrovitch Karamazov.

Os dois cientistas, brasileiro e russo, já haviam trocado experiências, já se correspondiam na salutar amizade que une os cientistas sérios.

Um sabia das pesquisas desenvolvidas pelo outro, mas jamais haviam se visto, não se conheciam pessoalmente.

E assim, frente a frente, eram tão semelhantes que o doutor Sir Thomas perguntou, com a seriedade que lhe caracterizava:

- Vocês são filhos dos mesmos pais? Vocês são irmãos gêmeos?

Os dois se olharam espantados.

Realmente um era a cópia fiel do outro.

O mesmo cabelo castanho e ralo, a cor da pele, a mesma tonalidade azul dos olhos, o mesmo desenho das sobrancelhas, o mesmo rosto longo, o mesmo tom de voz...

A semelhança física era tão gritante que, a partir daquele momento tornaram-se amigos como se fossem irmãos, era como se um lesse o pensamento do outro apesar das línguas pátrias serem totalmente diferentes.

Ainda durante o encontro, foi feita a revelação mais extraordinária de todos os tempos.

O sequenciamento genético dos dois homens revelou que eram idênticos, como se eles fossem gêmeos uniplacentários.

Havia acontecido o praticamente impossível porque os gêmeos univitelinos possuem genomas iguais, mas a probabilidade de ocorrer caso semelhante ao dos doutores Pedro e Pyotr, mesmo que sejam irmãos e filhos dos mesmos pais é de:

Um dividido pelo quadrado do fatorial de quarenta e seis, isso porque quarenta e seis é a quantidade de cromossomas de nossa espécie.