O Admirável novo Gênesis (Penúltima Parte)

Primeira parte: http://www.recantodasletras.com.br/contos/3804717

Jack põe sua mão nos ombros de Ethan e o pede para segui-lo. Ainda havia muito que gostaria de lhe mostrar. Ao piscar de seus os olhos, se da conta de estar na estação de ônibus. Ele assiste o ônibus partir junto da chuva forte que começara naquele momento. Encharcava suas roupas e cabelo. Um idoso sentado no ponto escutava uma música em seu rádio de pilhas antigo. O barulho do saxofone que vinha do rádio exercia um segundo plano em sua mente. O zumbido em seu ouvido dificultava sua audição. O idoso o encarava fixamente, sem piscar os olhos. O charuto barato em sua boca entreaberta era segurado pela saliva seca. Ethan fica ali parado, sem entender o que acabara de acontecer. Ele vira sua cabeça lentamente em direção de onde a música vinha, e foca na mão tremula do idoso que se erguia lentamente em direção aos olhos.

Turner caminha à escadaria que vira outrora. Seus passos eram receosos e sem equilíbrio. A chuva castigava seu corpo, e fazia suas mãos escorregarem pelo corrimão. Ele sobe até a quitinete que vira no telão da estação do metro, mas não adquire coragem para entrar. Não sabia se aquilo estava acontecendo de verdade.

- Venha, Ethan. Precisamos nos encontrar com seu primeiro companheiro – A voz de Jack vinha de trás – Você precisa entender a mensagem.

- Por que paramos aqui?

- Precisávamos buscar o Senhor Shang. Ele é outra parte da mensagem. Mas você também deveria se acostumar com a nossa viagem, por isso paramos aqui primeiro.

- Estou sonhando? – Ethan parecia realmente cansado e desorientado, como se tivesse feito uma viagem de longas e longas horas – Isso me parece bem real.

- Real? A sua realidade é apenas uma das infinitas já criadas, e a serem criadas a cada instante. – A resposta parecia outro enigma para ele, uma resposta que abria mais perguntas do que soluções - Agora não é hora para isso. As explicações serão dadas na hora correta.

- Mas não estávamos com o Senhor Shang agora a pouco?

Jack segura a mão de Ethan, enquanto pede para acompanha-lo. O fechar e abrir de suas pálpebras o transporta para dentro do ônibus. Ele, agora, estava sentado ao lado do Senhor Shang, que dormia calmamente. Charles Chang, o Senhor Shang, acorda já ciente e envolvido no mesmo nível que Ethan. Como se as devidas explicações já houvessem sido dadas de forma semelhante à de Turner.

- O universo é uma rede. – Jack falava enquanto os transportava instantaneamente a outro local – Eu encontrei Deus nessa rede. Todos os seres vivos estão conectados por esta rede de alguma forma. Seja Chang, você, uma pessoa qualquer no Brasil ou uma pessoa qualquer no Iraque.

Os três estavam como espectadores invisíveis de uma casa em Tóquio. Era de noite. Das ruas desertas emergem cinco silhuetas que caminham de longe à residência. Seus passos ecoavam pela rua, como se alertassem de propósito a sua vinda. A mãe esconde a menina mestiça debaixo da cama. Uma menina jovem e bonita, de cabelos negros e curtos. Seus olhos inquietos e assustados se destacam na escuridão parcial do quarto. Seu pai, um homem consideravelmente forte para sua idade, permanecia sentado em sua poltrona com um charuto aceso em sua mão. Ouviam-se barulhos do desembainhar de espadas japonesas, de tiros e urros de dor. Os homens lutavam ferozmente no andar de baixo contra os seguranças. Espada contra espada, faca contra faca, punho contra punho. Um dos homens entra no quarto ofegante e coberto de ferimentos e sangue. Porém, antes que consiga proferir uma única frase, a lâmina molhada de sangue transpassa sua barriga. Seu grito de dor é abafado pelo sangue que saíra de sua boca. Ao cair, uma de suas mãos esbarra no aparelho de som do quarto, e o liga acidentalmente. Tocava Allegro Assai, de Mozard, alto e claro pelo sistema de som que climatizava toda a residência. O homem caído rastejava pelo chão, o sujando com rajadas de sangue. Insurge das trevas, o homem de terno branco e cabelos longos, que brandia sua espada com maestria. Estava quase impecável, com exceção de um único traço de sangue inimigo em seu rosto. Ao seu lado, dois outros homens aparecem. Um era grande e forte. Em seu rosto havia uma cicatriz grotesca. O outro não era tão grande, mas portava uma pistola e uma face estressada.

A discussão que começara toma um breve rumo. Ela é cessada pelo pai sendo empurrado ao chão com violência. Os gritos da mãe são abafados pela mão do homem com a cicatriz. O pai, disfarçadamente, pronuncia uma frase à sua filha debaixo da cama. A menina tenta ouvir, mas música alta a impede. Antes que possa terminar, seu crânio é perfurado pela espada com um golpe certeiro, bem diante da criança. Os olhos da pequena, quase sem foco, se dirigem à espada. Sobem com a impressão de um longo prédio. O tamanho da lâmina parecia quase infinito. O homem de terno branco se dirige ofegante ao homem da cicatriz, enquanto limpa o sangue de seu rosto com um pequeno pano. Ele puxa a mulher pelos cabelos, e a larga em cima da cama.

A menina se encolhe de medo. A lâmina atravessa a cama e é fincada no chão ao seu lado. Bem ao lado de seu rosto. O sangue começa a escorrer pelo cochão. As gotas caem em sua face e se misturam com as lágrimas. O terceiro homem espalha gasolina pela casa, enquanto os outros saem lentamente.

A casa ardia em chamas, mas a menina permanecia imóvel debaixo da cama. A música cessa, e ela finalmente sai de seu transe. Ela corre por sua vida, sem tempo de pegar qualquer pertence. O que sobrara estava em seu corpo. A roupa negra de seu colégio, e o colar com pingente de coração.

Enquanto assistia sua casa queimar, as lágrimas corriam por seu rosto. Apesar do medo evidente, seus olhos não eram somente de temor. Não. Em seus olhos, bem ao fundo, ardia um fogo mais quente do que aquele que queimava sua casa.

Jack segura a mão da menina, e afaga sua cabeça. A jovem olha para os três que estavam ali parados.

- Nesse sistema todos estão conectados. – Jack continua sua explicação enquanto segurava a mão da pequena. - A distinção do real e do imaginário, da psique, ou até da existência são quebrados. São borrados em um só. Aquele que tem consciência disso pode moldar a percepção ou até o espaço-tempo. Através disso ele consegue controlar a realidade.

- Controlar a realidade? – Ethan parecia descrente, porém assustado. – Não consigo entender aonde quer chegar.

- Controlar a fronteira da realidade. A percepção coletiva e individual da realidade. O que reside em sua memória. A sua consciência. A interconexão de todas as mentes, vidas, psiques; isso é a rede.

Ethan se perguntava quem era aquele homem. Questionava-se o que ou quem era Jack. Ele parecia o soldado que ouvira falar na outra noite, mas algo era diferente. Não se sabia explicar o que exatamente, mas o modo de falar e a sensação enigmática que deixara obstava a visão do que seria um humano qualquer. Jack seria uma alucinação, quem sabe. Poderia também ser apenas um sonho, mesmo parecendo tão real.

Sua boca fica seca. Seu coração palpita forte. Cada vez mais forte. O temor de uma simples pergunta se tornara evidente. Ethan não tinha coragem de perguntar o que exatamente era tudo isso. Lutando contra seu medo, uma indagação salta ao vento. Sua voz era baixa e falha.

- São como alucinações?

- O que são alucinações afinal? A realidade que só existe para você, e não para os outros? Como saber se é algo somente de sua mente? Só porque os outros não conseguem ver, não significa que não é real. Se várias pessoas, ou até todas as pessoas do mundo, tivessem a mesma alucinação, seria isso classificado como realidade? Ou ainda seria algo que não existe?

- Se fosse uma alucinação, não existiria.

- Mas como você saberia que foi uma alucinação se todos tivessem presenciado? O que exatamente classificaria aquilo como um fato, ou como uma alucinação?

Todos caminhavam por dentro de um trem vazio. Ethan ficara um pouco mais atrás. Jack se senta em uma das cadeiras e logo pede para que o acompanhem. No entanto todos permanecem de pé.

- A existência é apenas uma rede de informação. Quem a controla...

- A onde você quer chegar com isso tudo? – Chang o interrompe – Existência, alucinação, rede?

O trem passava pelas ruas de uma cidade grande, mas ninguém parecia os notar. Pessoas continuavam sua rotina. Crianças indo à escola e adultos saindo para trabalhar. Não havia, no entanto, poluição sonora. Na verdade não havia som algum. Era como se um enorme vácuo sugasse todo o som emitido naquele local. Eles param em um ponto de ônibus, e um mendigo embarca. O mendigo, sujo e fétido, segurava uma placa de papelão. Nela havia uma frase escrita com canetinha preta. “O começo está próximo”.

Todos acompanham seus passos lentos até o final do vagão. A cada chacoalhada, o homem parecia quase despencar ao chão. Ele finalmente se senta e permanece em silêncio.

- Com isso chegarei à pergunta final. – Afirma Jack, após a jornada do mendigo – Sua resposta virá, se a dada por você coincidir com a dada por mim.

- E qual é ela? – Pergunta Chang com impaciência em sua voz – Diga de uma vez.

- Vocês querem conhecer Deus?

Todos se entreolham. O silêncio tomara longos minutos, e só se ouvia o som do movimento do trem. O mendigo se levanta e entrega a placa ao Charles. Chang lê a placa em voz alta:

- “Você ainda tem certeza de ter uma existência?” Sim, eu tenho. – Apesar da afirmativa, em sua cabeça nada fazia sentido – Digo, eu não estou realmente morto. Não é? Não tinha mais graça, por isso tomei todos os comprimidos. Deixou de ser divertido!

Chang larga um pequeno frasco vazio de remédios antidepressivos. O frasco caíra ao chão, quicando duas vezes antes de começar a rolar em direção aos pés de Turner.

- Pensem na resposta. – Jack freia o trem e pede para Ethan descer – Esse é seu ponto.

O dia seguinte amanhece com seu irmão preparando algo diferente. Joshua resolvera aprontar a mesa para mudar um pouco a rotina durante café da manhã. Diferenciar um pouco, mesmo que fosse apenas o lugar de se sentar.

Ethan mexia o café com uma colher. Ele olhava fixamente para a água negra, e se perdia em seus pensamentos. As partículas rodavam pelo efeito causado por seu movimento. Pareciam compor formas e sons. Não sabia como, mas ele podia ver o som. O transe é cessado quando o reflexo da luz passara pela colher em direção aos seus olhos entreabertos.

- Eu vi o assassino ontem. – Resmunga – Ele morreu.

- É mesmo? – Joshua continua a comer seu pão em pequenas mordidas, sem mostrar muito interesse no assunto – Ele morreu, é?

- Sim.

Os dois terminam o desjejum. Estava tão quieto que se podia ouvir o som da mordida, do pão se rompendo, e dos goles de café.

Joshua avisa que terá de ir à frente naquele dia. Ele teria que passar na floricultura e retribuir o favor que Light havia feito a eles outrora. Ele queria surpreendê-la, e quem sabe colocar um sorriso em seu rosto. Ethan concorda com a cabeça sem dizer uma só palavra.

Ethan andava sozinho pela calçada, olhando para baixo e pensando no que havia acontecido. Em seu campo de visão, ele enxerga alguém passar por ele em sentido contrário. Turner para naquele instante, bem a frente da praça do anjo. Não havia ninguém perto dele. Ninguém na sua área de visão. Ele se vira lentamente, e avista Charles Chang a alguns metros de distância. Chang sorria e olhava fixamente para ele.

- Senhor Shang?

Ethan o chama, mas não há resposta. Chang continua parado por alguns segundos, até desaparecer instantaneamente. Sua voz que surgira não emanava de uma direção. Não era possível distinguir de onde vinha, mas as palavras formadas deixaram Ethan perplexo. “Não havia mais razão de continuar no mundo físico”. Turner continua o chamando pelo nome em vão. As palavras formavam novas frases, uma atrás da outra. “Não importa mais se eu tenho um corpo no mundo físico”. “Ao perceber isso, meu corpo se foi juntamente de meu medo”.

- Quem é Deus? – Pergunta uma voz incógnita – Quem é Deus?

A pergunta se repetia e penetrava fundo em sua mente. Ela cessa juntamente de uma abrupta perda do foque de seus olhos no cenário. O focar de seus olhos trás juntamente outro cenário. Ele estava de pé, suando e sem fôlego. Em sua frente havia a floricultura onde Joshua saíra com um belo buquê de flores.

- “E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podia ouvir a música”.

Aquele não parecia ser Jack. De fato não parecia com nenhuma voz familiar. Aquele ambiente lhe incidia claustrofobia. Parecia se afogar no vácuo de um lugar apertado, juntamente da voz que se tornava mais densa e lenta. “Em breve todos serão metaforizados”.

- O que você quer dizer com isso?

- O ser humano é incapaz de evoluir por conta própria. Estão estagnados. A humanidade se tornou uma piada da evolução. É necessário o abandono desse corpo neotênico. – Ele se silencia por alguns segundos - Seu corpo é a verdadeira alucinação do que flui pela rede.

-Quem é você?

- Eu sou Deus.