Três contos de ficção

Era meio dia em ponto, quando o telefone toca. Na terceira, Tadeu atende.

- Temos um caso para você a tarde, vá o mais rápido possível no endereço que está marcado num pedaço de papel num dos pneus de seu carro. Entendido?

- Sim, claro.

Rapidamente, Tadeu, um detetive que não fazia vista grossa para nenhum caso, e tinha sua fama nisso, se dirigia ao local onde deveria desvendar mais um mistério. O lugar não era muito longe de lá, e o carro num ritmo mais forte fazia o trajeto em pouco mais de 25 minutos. O local indicado no bilhete era um arranha-céu antigo, cinza, de vidros encardidos. Alguns policiais fechavam a entrada principal e o bloquearam de imediato, quando o superior deles interveio e ordenasse que deixasse Tadeu passar. O superior dos policiais era um homem de traços orientais, baixo, de óculos de armação pesada, magro, parecendo pronto até para uma briga, tal sua feição antipática.

- É você quem vai subir lá?

- Sim.

Os dois se encaram, como se um quisesse intimidar o outro.

- O que você tem aí?

- Uma 45, quer ver?

- Não quero ver, leve mais uma você vai precisar!

Tadeu pega a arma, e tenta não se intimidar com a afirmação do homem. Ele ainda observa os outros policiais olhando-o. Talvez eles já soubessem ou tivessem alguma ideia do que tinha acontecido por lá.

- Escute rapaz, vou te falar duas coisas. Primeiro, leve esse aparelho aqui, qualquer coisa que acontecer nos informe, segundo, o que for fazer lá em cima faça o mais rápido possível, pois logo mais a imprensa vai cair matando aqui. Entendido?

Tadeu acena positivo com a cabeça, pouco considerando as advertências do homem. O prédio era um dos mais altos da cidade e foram necessários dois lances de elevadores para chegar onde queria, e mais quatro andares por escada, tendo que atirar na fechadura da porta para vencer essa última barreira. Depois da porta haviam vários colchões formando uma parede, que Tadeu derrubou com algum esforço.

Ele alcançava um grande salão, que ocupava todo o andar do prédio, e de cara sentia um forte cheiro de podridão. Com a arma nas mãos cuidadosamente percorre o salão, separado por três ambientes, e nos três estavam corpos de pessoas que haviam sofrido todo tipo de atrocidade, do qual ele mesmo já acostumado a situações bizarras não tinha vista nada igual. Os corpos estavam amontoados, alguns espalhados, presos na parede, pendurados no teto, e podiam ser vistos até membros separados.

- Quem estiver aí, apareça! É melhor para você!!

Tadeu andava lentamente e ficava imaginando quem poderia ter feito aquilo, ou quantos, se é que um ser humano era capaz de tal brutalidade em tão pouco tempo.

Ele escuta um barulho, um choro, que vinha de algum dos corpos amontoados num canto de parede, e Tadeu vai se aproximando, preparando a arma para uma ação mais rápida.

- Saia daí, agora, isso é uma ordem!

Grita Tadeu, nervoso, com a tensão cada vez maior. Mais próximo ele observa que o barulho era um choro de criança, que talvez tivesse três ou no máximo quatro anos. Tentando não perder a atenção do ambiente, ele a puxa dos corpos que começavam a azular e tenta conversar com ela, que parecia em choque.

Achando que não tinha mais ninguém por lá, ele baixa a guarda, concluindo que os responsáveis por aquilo tudo estariam bem longe.

- Princesinha, vou te tirar daqui logo, vai ficar tudo bem, sente-se agora nessa cadeira.

- Alô, me faça um relatório do que aconteceu aí?

Enquanto Tadeu coloca a menina numa cadeira de escritório, ele responde o rádio da polícia:

- Aqui devem ter uns cem corpos ou mais, alguns mutilados, o cheiro está muito forte, nenhum sinal de vida, tirando uma criança de aproxi...

De repente escuta uma voz rouca, forte, jogando o rádio no chão e pegando a arma imediatamente, apontando-a em várias direções.

- Apareça, desgraçado! Daqui você não sai vivo!

Encostando a criança na parede e a protegendo com seu corpo, ele sabia que não estava sozinho. E sabia muito menos com quem estava.

- Onde você esta? Apareça! Isso é uma ordem!

A resposta veio do último lugar que ele poderia imaginar.

- Aqui!

A voz rouca e grossa que ouviu em suas costas provocava um arrepio em sua espinha, e um consequente susto também. Quem emitia a voz era a criança, que deixou Tadeu sem reação de tão assustado.

- Mas que diabos é isso?!

A criança então soltava um grito e uma gargalhada que deixa Tadeu atordoado, tão estrondoso que ele é obrigado a tampar os ouvidos. Ela então dá um salto, indo ao seu pescoço, levantando vôo e o suspendendo até quase encostar a cabeça no teto do enorme salão. Ele esperneia e em vão tenta gritar. Sua arma havia caído. Sem saber ao certo o que estava acontecendo, sendo enforcado por uma criança ou o que quer que fosse, estava cada vez mais ficando vermelho e tendo sua visão embaçada. Estava perdendo a consciência, e também a vida.

De repente surgem vários policiais no salão, que pareciam não acreditar na cena, e um deles a frente da ordem para a criança largar Tadeu. Pouco depois, é ouvido um tiro, e a criança/criatura fora atingida por um franco atirador nas costas, e ela cai junto de Tadeu em cima de outros corpos, o pior tipo de amortecimento possível. Ela volta a voar, desnorteada, e não atendendo ao pedido dos policiais, foge da rajada de tiros por uma janela aberta.

- Você esta bem, rapaz?

Diz o superior dos policiais, o oriental, o mesmo que Tadeu conversou na entrada do prédio. Ele continuava antes de Tadeu se recompor.

- Não sei quanto te pagam por essas coisas, mas se me pagassem o dobro eu não toparia.

* * * * *

Eram quase quatro horas da tarde. O local, uma cafeteria nova, estava cheia, talvez devido aos preços tentadores de seus produtos, para atrair clientes, pois ainda era nova no bairro. Sérgio, um jovem porteiro, de altura mediana, barriga aparente, jeito pacato, estava sentado com dois amigos de trabalho, um homem e uma mulher, e conversavam despreocupadamente. Mas isso só aparentemente. Ele estava preocupado com algo e não queria falar com seus amigos disso. Não muito depois recebe um telefonema, e sai da mesa, falando a eles que teria que ir por causa de um compromisso. A ligação tinha sido rápida.

Ele era conhecido por ajudar muita gente, às vezes até exageradamente. Em épocas passadas ele inclusive cessou de cuidar de sua própria vida para ajudar outras pessoas, que mal e mal conhecia. No começo isso fazia pouca diferença, mas com o passar dos tempos, começava a crescer as exigências em sua vida pessoal. Por si só tinha grande prazer em ajudar quem quer que fosse, mas começava, talvez até devido as pressões que vinham de todos os lados, a pensar mais em si que nos outros, que tanto ajudava.

Naquele último ano, ele estava mais envolvido em alguns projetos pessoais, como voltar a estudar. O último caso, ou mais recente como sempre dizia, que ele tinha se envolvido era de uma jovem, mais ainda que ele, que vindo de outra cidade e sem recursos ou apoio da família ou amigos, vagava pela cidade, vendendo todo tipo de coisinhas comestíveis nos semáforos, e sua beleza e juventude chamavam a atenção do menos carente dos corações. Ela era baixa, branca, jeito de menina, olhar que espelhava preocupação, como quem quisesse sair correndo e fugindo, e seu magro corpo podia ser facilmente associado à falta de uma alimentação com recursos mínimos do que os tipos magérrimos de padrão de beleza vigente.

Ele estava agora indo para uma reunião, numa tentativa de reconciliação dessa jovem com sua família, que tinha um gênio forte, e as vezes lidar com ela não era uma tarefa das mais fáceis, ocorrendo inclusive um momento de tensão entre os dois, dias atrás.

Sua participação nesse encontro se limitava mais a ajudar alguns amigos dele que haviam pegado a frente do caso, enquanto ele, por causa do atrito com a jovem e talvez por causa de sua fase mais fechada se envolvia cada vez menos. Ele sabia que o encontro não seria nem fácil e também sem alguma baixaria.

O cômodo, a sala de uma casa grande e simples, estava cheia de pessoas, talvez umas vinte, e a jovem estava lá, mas com um olhar de quem não queria estar lá. Não tarda e os ânimos esquentam, com trocas de fardas de todo tipo.

- Eu nunca fiz isso, tá?

Responde uma acusação, e na sequência, outra:

- Eles são meus clientes, e não vou falar para vocês se estou passando necessidade!

Uma prima dela rebate, falando e gesticulando com muita ironia:

- Ah sim, claro, que maravilhosos clientes você tem, morro de inveja! A propósito, você só fica nos semáforos vendendo balinhas ou consegue dinheiro de outro modo?

A jovem fica furiosa, respondendo imediatamente:

- Eu ainda me respeito, sua mocreia!

A jovem mulher pede para os responsáveis pela reunião para se retirar. Era o segundo encontro naquele mês, e nada feito. Sérgio acompanhava tudo, calado e quase imóvel. Passados alguns minutos, depois que a família dela se retira. Sérgio a acompanha, procurando alguma brecha para trocar algumas palavras.

- Oi, é, podemos falar um pouco?

- Sim, claro, o que quer falar?

Chegando perto dela, ele reparava o quanto estava magra, tendo saliente os ossos das costas e as finas pernas, ficando bem salientes também seus joelhos, bem mais largos que suas frágeis pernas.

- Desculpe ter me ausentado, esses dias foram confusos para mim.

- Não tem problemas Sérgio, fui grossa contigo outro dia. Que bom que está de volta.

- O que é esse livro que está lendo?

- Foi de um cliente, ele me disse para ler em momentos de solidão e dificuldade.

- E como você está?

- É, estou indo, melhorou um pouco, acho que não quero tentar se aproximar de minha família, viu hoje?

- Nossa, nem me diga. Escuta, acho que vamos para lados diferentes, antes de ir vou te dar meu telefone, se precisar me liga, está bem?

- Sim, ligo sim, pode deixar.

Depois da despedida, ele se sente arrependido do que tinha acabado de fazer, pois tinha prometido para si mesmo um tempo para ajudar as pessoas, e foi exatamente o que não fez naquele momento. Pelo menos ela estava mais humilde, pensava ele.

Em casa, passadas algumas horas, o telefone toca, algo pouco comum de acontecer àquela hora. Era ela, e pelo tom de sua voz parecia aflita.

- Sérgio, pode me ajudar, não posso dormir aqui hoje, aconteceu um desastre aqui, me deixa dormir aí, só hoje, por favor? Você tinha me dito para ligar se eu precisasse.

- Claro... você precisa de alguma ajuda aí?

- Eu precisava, mas deixa... você já me ajuda muito...

- Fico então te aguardando aqui, tchau.

Sérgio morava numa casa junto de um irmão e mais um primo, e talvez por essas coincidências que acontecem, nesse dia ele justamente estava sozinho em casa. Ela chegava pouco mais de uma hora depois que havia ligado. Seu olhar indicava, que, o que tivesse acontecido mexeu profundamente com sua tarde e início de noite, e ela mal conseguia disfarçar. Os dois conversam um pouco, na sequência ela vai tomar um banho rápido enquanto ele prepara um lanche que ela devora em poucos segundos, e pouco depois ela pede uma cama para descansar, já que suas pálpebras denunciavam o sono chegando como uma onda que sem prestar nenhuma conta invadia a praia. Sérgio a observava, e tão próximo dela começava a surgir um desejo, tímido, mas que começava a desabrochar. Ela se deita, e o cansaço lhe ajuda no sono.

Passado algum tempo, seu sono, é a vez dele dormir, e resolve se deitar na mesma cama que ela, a única da casa, inclusive. O cheiro e a presença dela agitam os instintos de Sérgio, e sem lutar, ele começa a se aproximar dela. Seu desejo era mais forte e naquele momento disparava. Ela diz uma frase, bem baixinho, talvez seu último recurso.

- Não, Sérgio, por favor, estou muito fraca para isso agora. Por favor, não...

Sérgio se segura, e também seus atiçados instintos. Seus inimigos naquele momento.

* * * * *

- Tem certeza que quer isso mesmo? Que vantagem vai ter fazendo isso?

- Eu sou um aventureiro, e falando assim a única coisa que vai conseguir é me deixar mais curioso para ir, e outra coisa, eu não tenho medo de nada!

O bate papo entre os dois personagens, que se chamavam pelos apelidos, olhão e coronel, dizia respeito a coragem desse último, e a vontade que tinha de encarar tudo que era desafio. O primeiro, o olhão, tinha falado de mais uma aventura que eles poderiam até tirar uma grana, embora coronel quisesse a aventura pela aventura, e não pelo dinheiro.

- Escuta amigão, já fiquei sabendo que todos que tentaram não tiveram sucesso, tem gente que não voltou, e aí?

- Lembra da floresta que fomos? Estava cheia de gente mal intencionada e grosseira, lembra do que faziam, parecia um feudo de bambu, tudo escuro, nos perdemos por lá, mas estamos aqui! Quer prova melhor para eu ir lá?

Coronel era tão confiante que as vezes, e muitas vezes, era também arrogante. Mesmo o corte no queixo, que lhe renderá vários pontos, ou os dois membros que já quebraram anos atrás não acalmavam seu espírito.

- Vou lá, quando chegar amanhã, tomamos uma cerveja.

Coronel pega seu chapéu, ajeita sua pasta e vai sentido ao local que ia combinar sua próxima aventura. Foi uma viagem de trem de três horas e conforme o combinado lhe buscam na estação. Quando chega, era uma casa escura, e dentro da sala principal estão oito mulheres, sentadas em torno de uma mesa redonda e travestidas com roupas que lembram bruxas ou algo parecido.

- Finalmente chegou!

Diz uma delas, uma mulher com algo em torno de quatro décadas de vida e exageradamente maquiada, muito parecida com as outras.

- Se isso for uma festa, cheguei um pouco atrasado...

As mulheres da sala o encaram, condenando com seus olhares sua infeliz tentativa de fazer algum humor. Ele ainda consegue ver os rostos de algumas delas.

- Sente-se!

Diz outra mulher, apontando para uma cadeira vazia na mesa.

- Só vamos falar uma vez, preste muita atenção.

- Aonde você vai nenhum homem voltou, não é um lugar simples nem fácil.

A fala continua, agora com outra mulher, com uma voz bem marcante. Coronel gostaria de perguntar o que elas entendiam por fácil ou simples, mas não ousa agora interrompê-las.

- Elas não são seres como nós. Elas vão descobrir quem você é, descobrirão seus desejos, o que você gosta, irão te jogar contra nós, vão descobrir seu desejo mais íntimo, mais escondido.

Outra continua:

- Ignore-as, e procure a caixa, só isso que deve fazer.

Girando a cabeça para os lados, acompanha a fala da última.

- É isso. Preparado, ou quer abandonar?

- Estou preparado, acho que o máximo que pode acontecer é uma paixão...

Elas se olham, como se conversassem pelo olhar e o assunto, depois de mais uma frase desastrosa para o momento, como ele sabia, era o próprio mesmo.

- Me acompanhe te levarei.

Uma delas, a de voz marcante, o leva pra entrada de uma floresta, quase como um sonho acordado. Uma forte neblina se apresenta a sua frente. Ela gesticula com a mão para ele entrar no caminho da neblina, não sem antes de reparar que ela partia.

Ele começava a andar, e pisa na água, reparando que era um lago raso. A sua frente, com a neblina menos densa, e incrivelmente sem estar frio, ele vê uma pequena colina verde, que alcança facilmente. Ele observa uma garota, nova, de traços angelicais, tímida, delicada, inocente, atraente.

- É a caixa? Esta ali, embaixo do monte de pedras, você tem que tirá-las pra pegá-la, uma por uma.

Dizia a garota, que parecia que o conhecia de longa data.

- Obrigado!

Seguindo as recomendações das bruxas, ou o que quer que fossem, ele tenta não falar com ela, talvez, ela fosse o inimigo do dia. Tirando as pedras, ele a observa, cuidando das plantas, sentada na grama, que mais parecia um delicado tapete.

Mais algumas chegam, e todas eram tão belas, que ele as olhava sem conseguir se concentrar em sua tarefa. Elas começam alegres brincadeiras.

- Ei, venha! Não quer brincar também, depois te ajudamos!

- Olha, é, adoraria, mas não posso... mesmo...

Uma delas se aproxima, enquanto as outras continuam brincando.

- Você foi convocado, para tirar uma caixa embaixo dessas pedras, por mulher que não conhece, vestidas de bruxa, numa floresta que não parece de verdade, lhe falaram que iriamos entrar na sua mente, te seduziríamos, realizaríamos seus desejos, como os mais íntimos, seu amigo disse quase o mesmo.

- Sim... é...

A mulher que veio falar com ele era composta fisicamente de todos os atributos, visíveis e invisíveis, que lhe despertavam inúmeros desejos. Cada palavra que ela emitia entrava prazerosamente em seu ouvido. Ele sabia que tinha que voltar a fazer sua missão, mas algo o controlava.

- Posso te declamar palavras?

- Claro.

Respondia ele, bem baixinho, atencioso, e fissurado na intrigante criatura a sua frente.

- Uma pessoa, cheia de vontades, e de força, e os seguindo, enfrenta uma vida de dificuldades sem cessar, lhe cai o sol, lhe cai à lua, lhe cai o calor, lhe cai os afetos dos outros, também o amor, a vida, a confiança. Depois de um dia, uma semana, um mês, um ano, uma vida, tudo muda. Tudo que ele julgava bem, que gostava, o prazer, que são as coisas que ele gosta e que faz bem, volta, e agora o sol, a lua, os astros, tudo retorna, e aquece a pele que uma dia estava gelada, lhe dando de novo o desejo e a esperança. Tudo volta ao normal, ao bom, ao prazeroso, porque ele é assim, ele é tudo, e o que o move é o que fez ele. O sopro da vida lhe aquece internamente.

Ela sabia que tinha sido derrotado, mas se rendia ao momento. O melhor de tudo, o momento.