Pitágoras
“Purifica o teu coração antes de permitires que o amor entre nele, pois até o mel mais doce azeda num recipiente sujo.”
                                                        Pitágoras
 
A
                      vida toda tive medo de morrer, isso pode ser compreensível, pois perdi os pais muito cedo e fui criado por um tio, que apesar de ser o tutor da minha família e precisamente do meu dinheiro, nunca ligou muito para mim. Na escola ficava pelos cantos, não conseguia me enturmar, nem pretendia sair com garotas, apenas estudava e parecia ser muito bom nisso, principalmente em matemática, cansado da escola e das chacotas dos colegas valentões, aí que exigi do meu tio uma educação particular.
            -Você precisa se enturmar, não vou deixar que seja dono do seu nariz, ainda não pode fazer o que quiser, você tem apenas quinze anos, por enquanto eu dou as cartas por aqui rapaz. – disse me olhando de lado.
            Sr. Eduardo Blake, famigerado jogador, gordo e com papada de porco, dono de um bigode ridículo, me lembrava o Peter Ustinov, no filme Assassinato no Expresso do Oriente, viciado compulsivo em prostitutas e todo tipo de libertinagem, no entanto em uma coisa ele tinha razão: eu teria que obedecer o homem que  foi designado pela justiça para proteger a mim e minha fortuna até completar vinte e um anos.
            Resumindo, minha adolescência foi a pior fase da minha vida, via meu tio gastar o dinheiro que meu pai e minha mãe deixaram exclusivamente para mim e nada poderia fazer. Solitário, com meu único parente sendo um safado, me entreguei ao único amigo que conhecia: os livros de robótica e de ciências.
            Com dezessete anos me tornei o melhor aluno que uma escola pode ter, sem duvidas! Disparado o melhor aluno de física do colégio, tinha conhecimento que muitos universitários e até pós-graduados na matéria nunca teriam, construía meus próprios robôs e desenvolvia pele sintética em um extravagante laboratório que obriguei meu tio a montar.
Curtia robôs, dava forma humana para eles.
 A escola, para mim, virou passado depois que desmoralizei um professor de física, que havia errado a solução de uma equação diferencial, o diretor veio pessoalmente me criticar, então fui dispensado da aula de física.
            Fui dispensado também da aula de matemática e biologia, estava frequentando o colégio apenas para fazer os testes o que me entediava, meu tio, nessa época, começou a ter medo de mim e só ficava confortável quando eu me isolava por dias inteiros. Temia minha maior idade e não queria perder o seu conforto e principalmente temia a minha aparência, estava implantando uma política de boa vizinhança e eu aceitei.
            Pedi que montasse um laboratório de ciências no meu quarto, se é que podemos chamar o apartamento pessoal de quarto, tinha dois aposentos, banheiro, uma sala de bilhar e um salão de videogame, vivia uma vida dentro do laboratório construído para mim no subsolo, comia muito, porém permanecia magro.
             Jogava videogame e trabalhava em meu laboratório de robótica, os dias passavam e estava feliz, se não fosse a minha aparência poderia ser considerado uma pessoa normal.
            Não tinha amigos, minha aparência física não deixava. Tenho que falar uma verdade a quem quiser ouvir: gente feia e esquisita, só tem falsos amigos.  
             A vida e principalmente a humanidade, não tolera gente feia, aparências bizarras devem servir para filmes de terror e circo, quando alguns religiosos e a imprensa diz que temos que tolerar, que somos todos iguais, está mentindo, se existir igualdade em algum lugar ela é fingida.
             Com o passar dos anos esse defeito de DNA alterou muito a minha pele, que começou, miseravelmente, a descamar e concomitante, apareceram verrugas em todo o meu corpo.
            Tentei todos os tipos de tratamento, chamavam a doença de Neurofibromatose, é uma condição genética, não tinha cura, apenas tratamento paliativo.
          Senti pavor, não havia nada que pudesse fazer, então quis sair do meu corpo e deixar para trás as verrugas, tinha que trocar de corpo, comecei os esforços para construir um corpo perfeito.
Um sonho, um delírio?
          Não, para a minha mente, uma realidade.
          O corpo que eu estava era inútil, pobre e doente diante de um cérebro brilhante que certamente acharia uma resposta, em um ritmo frenético eu estudei e trabalhei sem parar. Nessa época fiquei dias sem dormir e quase não comia.
          Com o passar do tempo meu corpo piorou e fiquei mais magro, nessa época eu lia muito ficção cientifica, filosofia e psicologia, eu devorei o tratado de genética, robótica e tudo que pudesse me ajudar a construir o corpo perfeito, achava que o futuro era a solução para mim, no futuro eu poderia achar a cura.
            Duvidava de viagens no tempo, não entendia o tempo como uma grandeza escalar, mas sim como uma abstração psíquica. Sabe a sensação de que vai se dá mal no futuro?
            Aquela de que alguma coisa vai dar errada?
 Sim, vai dar errado, você tem que escutar essa voz, com certeza, pois em minha opinião tudo já ocorreu, tudo passa por nós, somos principio, meio e fim, estamos congelados no universo.
             O tempo é uma forma de contagem de ciclos, o futuro já aconteceu, passaremos por ele, tenho que acreditar nisso! Se eu acho que vou conseguir a solução é porque ela está ali ao meu alcance, bem no futuro, e é para lá que tenho que me dirigir, pois o futuro e o presente são a mesma coisa.
            Comecei a trabalhar em uma teoria robótica, já que a clonagem não era possível, teria que alterar o DNA defeituoso, que todas as minhas células continham, por isso não queria ariscar, certamente o meu clone não seria eu, mas teria os mesmos defeitos celulares.
            Construí um robô que chamei de Pitágoras, pois sempre gostei do lado obscuro do matemático grego, o qual é a introdução de qualquer compêndio filosófico.
              Confeccionei uma estrutura sintética que reproduzia o meu corpo, um artista plástico desenhou, uma grande escultora modelou e ali estava a minha nova versão.
            O que seria Pitágoras?
            Um robô?
            Era a perfeição.
            Pitágoras era o corpo que me faltava meu alter ego, narciso, perfeito na aparência. O robô funcionava conectado aos meus sistemas neurais, porém tinha os seus próprios sistemas e uma inteligência artificial, essa era a teoria, a conexão era feita por carregamento continuo via sinal de rádio, assim como a sua resposta.
Através de Pitágoras poderia sentir até uma mosca pousando no braço do robô.
            Havia uma satisfação mórbida em me livrar do velho corpo, seria isolado, mantido artificialmente em uma cuba de líquidos nutrientes, uma redoma que tinha um preparado sintético para que pudesse durar o tempo que desejasse.
             Uma caixa com a solução de eletrólitos foi preparada para que eu entrasse e mergulhasse o meu velho corpo com neurofibromatose, dois outros robôs auxiliares, que havia colocado o nome Dante e Fausto, ajudavam no processo, nesta época estava para completar vinte anos e meu tio não me aborrecia, ficava na jogatina com as protetoras e pensava que eu o amava.
            Pitágoras estava pronto, os artistas que construíram a sua face ficaram impressionados com a beleza de sua própria criação, porém não perguntaram nada, a escultora de reconhecimento internacional e o artista plástico foram muito bem pagos e voltaram para os seus países de origem.
            Finalizei um programa de computador moderno de alto nível, inteligência artificial tecnologia avançada, Pitágoras usaria o mesmo programa que os outros dois robôs usavam.
           O robô pronto ficou magnífico e a sua visão me assombrava, pois parecia a estátua de Miguelangelo, porém, tinha a minha imagem sem as verrugas, a pele mosqueada e com descamação irritante que me deixava com a aparência de um réptil.
            Pitágoras já parecia um jovem e belo rapaz.
            O recipiente que receberia o meu velho corpo o manteria vivo por um tempo indeterminado, com a ajuda dos robôs programados e a fonte de energia que paguei antecipadamente por 190 anos.
            Tudo acertado o que ficasse depois era com Pitágoras, minha nova versão, assim que assumisse a minha identidade.
             Ao transferir a minha consciência, pela teoria que desenvolvi, eu e Pitágoras seriamos a mesma pessoa. Depois de acoplado a mim, Pitágoras teria o seu software desligado por um dos robôs que já estava programado para isso, não seria possível um teste para essa iniciativa cientifica, o mecanismo funcionaria de forma empírica.   Segundo meus cálculos, desligada a inteligência artificial de Pitágoras, eu assumiria o comando do seu corpo em três minutos.
            Meu tio apesar de gordo era saudável e havia completado quarenta anos, fiz uma transferência bancaria, uma boa quantia em dinheiro para que ele ficasse longe do laboratório e cuidasse de minhas finanças até Pitágoras assumir, quero dizer, eu assumir no corpo de Pitágoras, o que levaria um ano para adaptação e transferência de dados.
            Passaria no laboratório calibrando Pitágoras, durante esse ano que faltava para a maior idade, assim com a minha consciência poderia preparar melhor a minha saída com esse corpo novo para mundo.
            Tudo parecia perfeito, liguei os eletrodos no meu cérebro, vesti a roupa térmica com perfurações para os eletrólitos, liguei o resfriamento da câmara e deitei no líquido cuidado com extrema competência pelos dois robôs.
            Recebia nutrientes por uma sonda nasogástrica e oxigênio por máscara, depois do resfriamento do meu corpo o robô colocou o tubo de respiração artificial e ligou ao respirador mecânico, com medicação apropriada me induziu um coma, mantive a minha consciência ela começou a ser conectada a Pitágoras.
            Acordei dentro de Pitágoras, como uma consciência paralela ao do robô, podia sentir o seu pensamento, no momento porém, uma consciência meramente espectadora, ele estava arrumando um terno e gravata, parecia alinhado demais para o meu gosto, estava se arrumando  para sair, do seu lado o robô auxiliar, supostamente eu deveria controlar os seus movimentos.
           Deveria esperar a ação do robô auxiliar que estava programado para desligar o software de Pitágoras.
            Estava tranquilo, era maravilhoso, seria um novo homem, experimentaria a vida fora do laboratório, podia sentir todos os movimentos, gosto e cheiro que Pitágoras sentia, enxergava pelos seus olhos.
            O tempo passou e o robô auxiliar não agiu como o programado, não poderia mudar a sua direção, havia uma programação, comecei a me sentir claustrofóbico dentro daquele robô.
            Acho que passou mais de três minutos – pensei.
Olhei um calendário, fiquei atento à data e entrei em completo desespero.
Nada podia fazer, apenas estava ali, era como uma alma que assistia o mundo, eu quis gritar, no entanto era apenas uma fagulha de pensamento dentro de robô de forma humana, senti um desespero.
            Havia passado trinta anos.
              Fui traído pela minha criação!
            Continuo aqui, vagando dentro de Pitágoras, agora já são duzentos e cinquenta anos, há uma guerra, entre robôs e humanos, sei que Pitágoras é uma espécie de líder dos robôs, não sei por que me mantém aqui, se usa a minha inteligência? Ou se quer me fazer ver tudo. E pra quê?
             Nunca desejei tanto morrer.
A única verdade é que sou o culpado, mas como antes o futuro está ali bem a nossa frente, afinal tudo já aconteceu, ou será que não?
            Meu Deus! Ficarei aqui para sempre?
FIM 
“Ajuda o teu semelhante a levantar a carga, mas não a levá-la”.
 
                                Pitágoras 

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JJ DE SOUZA
Enviado por JJ DE SOUZA em 16/05/2013
Reeditado em 19/08/2013
Código do texto: T4293739
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