COMPLETE-ME

COMPLETE-ME

Miguel Carqueija


“A simpatia dá amigos; o interesse dá companheiros.” (SOULIÉ)


INTRODUÇÃO

SOLIDÃO


Pelas quatro horas da tarde Dalton dirigia-se, pela esteira rolante, ao Pavilhão de Ciências, sobre uma pequena colina. Com seu uniforme estudantil, magro, alto e aprumado em seus dezesseis anos, Dalton atraía os olhares das garotas que por ele cruzavam e que, em geral, nem o conheciam.
O rapaz sobraçava uma pasta de arquivo e portava uma mochila às costas. Não gostava, aliás, de andar de mãos abanando, costumava sempre estar com um livro ou uma revista, pelo menos. Como quer que seja, naquele dia Dalton mantinha o olhar dirigido para o pavilhão, sem prestar atenção às pessoas que passavam ao seu lado.
Naquela ocasião porém vieram em sentido oposto duas garotas que chamavam a atenção de Dalton. Ambas de cabelos compridos muito pretos, ambas requestadas, vaidosas e espevitadas; para Dalton eram muito atraentes: Irene e Anabella.
Debby era uma garota de quinze anos, de aspecto muito sóbrio e distinto e cabelos curtos, cor de ouro. Vinha do Pavilhão de Ciências e, pensativa, mantinha a pasta apertada de encontro ao peito. Apesar dos estudos que a ocupavam, naquele momento pensava em outra coisa. Sentia-se a pessoa mais solitária, esquecida e abandonada do mundo.
Foi nesse ponto que reparou em dois garotos que vinham em sentido contrário. Eram Elmo e Portal, os dois eram bonitos, mulherengos, presumidos.
Debby era uma garota tímida: gostava deles e olhou-os, mas desviou o olhar quando cruzaram com ela. Debby deixou cair um livro na esteira, inadvertidamente.
Dalton deixou escorregar a pasta, num movimento falso.
Quando os dois se abaixaram para apanhar seus pertences, chocaram as cabeças.
Debby tombou na mesma esteira de Dalton e, num movimento nervoso, ainda conseguiu puxar o livro antes que o mesmo se afastasse, levado pela calçada rolante em sentido contrário àquela por onde vinha Dalton. Os dois, machucados e atordoados, gemeram e levaram as mãos às respectivas cabeças.
— Ui! Por que não olha onde anda? — perguntou Debby.
— Gozado... eu ia fazer a mesma pergunta.
— Humpf! Tem sempre a pessoa errada no lugar errado!
— Que gênio... — observou Dalton, erguendo-se. Ao fazê-lo, porém, olhou para trás, para a menina que já se afastava na esteira, e reparou na lindeza daqueles cabelos dourados. Parece que veio do Eldorado, pensou ele.
Ela olhou de esguelha e refletiu em como ele fazia lembrar Aníbal Metrecal, um dos seus astros de cinema favoritos.



CAPÍTULO 1

DESCOBERTAS


Foi só então que, da numerosa turma, Dalton passou a chamar a atenção de Debby. Isso já lhe tinha acontecido outras vezes, com outros rapazes, e sempre dera em nada. Uma de suas idiossincrasias era ficar conversando consigo mesma, em pensamento. E nas horas que se seguiram, mesmo ocupada com seus quefazeres, ela pensou muito:
“Por que eu sou tão solitária? Por que razão ninguém me quer? Eu sou bonita, elegante, talvez a mais bonita e elegante da classe. E também sou estudiosa e inteligente. Não me coloco em situações ridículas. É verdade que eu mesma me isolo e falo pouco, que as outras garotas às vezes me invejam, mas será que eu pareço ter o coração gelado? Entre os rapazes, nenhum percebe que eu guardo sentimentos no peito? Que eu sofro em silêncio? Por que, aos quinze anos, eu sou tão sozinha e tão triste?”
Recordou-se de como, ao se aproximar o décimo-quinto aniversário, recuara com horror ante a pretensão dos pais, avós e irmãos, de promover o seu debute na sociedade. A briga acabara tão feia que pouco faltou para que a espancassem, pois o pai terminou por considerar como insulto a recusa da filha. Desde essa época ela estava isolada na própria família, os irmãos não lhe dirigiam a palavra e as altíssimas notas que a garota obtinha na escola, e os troféus e medalhas que lhe outorgavam, e que ela espalhava em picardia sobre a sua escrivaninha, não lhe traziam nenhum prestígio junto à parentela. Debby passara a ser a ovelha negra. Certa vez o pai entrara no seu quarto, olhara desdenhosamente os troféus e observara: “Não me interessam esses prêmios que você deixa aí em cima para se mostrar. Preferia que fosse menos inteligente e mais civilizada”.
Debby, ocupada com um dever de casa, não respondera, embora não deixasse de olhar para o pai. Ele saiu batendo a porta.
Agora, pouco a pouco, ela tomava a decisão de ficar com Dalton. A idéia de constituir com ele uma nova família, livrando-se da sua própria família problemática, ia-se transformando em obsessão.
“É o meu destino — pensou ela — casar com alguém bem legal. Pelas três luas! Por que não o Dalton?”
Mas não era tão fácil se aproximar de Dalton. Na sala de aula, sentavam distantes. Para reparar nele Debby precisava dar umas esticadas e torcidas de pescoço que, além do risco de chamar atenção, quase lhe provocaram um torcicolo. E ela só enxergava frações de Dalton. Em suma, não era fácil tarefa e não ajudava para aproximá-la do rapaz.
Uma noite, deitada de bruços em sua cama, com os pés cruzando-se no ar, ela monologou em silêncio:
“Não posso continuar assim. Ele nem me vê, eu tenho que quebrar essa barreira. Quando ele vai ao quadro, é tão brilhante! Mas no recreio, não me dirige a palavra. Eu quero te pegar, Dalton, te abraçar forte... te demonstrar o amor que estou sentindo.”
Por sua vez Dalton reparava nela mas também não vislumbrava nenhuma oportunidade para um contato maior. Aliás a barreira existia para várias garotas que Dalton achava atraentes e não sabia como se aproximar de nenhuma. Assim aos poucos ele esquecia aqueles olhos que lhe haviam chamado a atenção.
Mas Dalton não tinha os problemas familiares de Debby a cutucá-lo e não desenvolvera a mesma monomania — Debby porém sentia urgência de resolver tudo. Agora que descobrira que sabia amar, queria exercer esta sua capacidade.


CAPÍTULO 2

DEBBY TOMA A INICIATIVA


“O que eu tenho que fazer — monologou ela em pensamento — é falar com ele, de algum modo, sob algum pretexto.”
Aquela manhã foi especialmente desastrosa. Debby encontrava-se na copa, tomando uma laranjada acompanhada de bolo de milho, como café da manhã, quando uma moça alta e elegante foi introduzida. A mãe de Debby e um dos irmãos vieram com ela.
— Ela veio à sua procura, Debby — falou Samara, com rispidez.
— Professora Mei! A senhora aqui?
Mei sorriu e olhou para os familiares da adolescente:
— Eu estou passando aqui perto, Debby, e sabendo onde você mora, resolvi dar uma fugida...
— A senhora pode nos dizer logo o que foi que ela fez?
A frase, dita com voz rouquenha, partira de Salim, o avô materno de Débora, que acabara de entrar segurando um jornal.
— Sim — acrescentou Samara. — Seja o que for, nós saberemos castigá-la.
— Do que estão falando? — a surpresa de Mei era sincera. — Então não sabem que Debby é a primeira da classe em comportamento e aplicação? Eu passei aqui para dar os parabéns à família!
— Ué, ela pediu à senhora para vir aqui?
Debby olhava para os membros de sua família, considerando a atitude insultuosa de todos. Mei estava perplexa e, é claro, arrependida por ter vindo.
— Não, ela não me pediu...
— Tem certeza? — indagou Salim. — Ela deve ter induzido a senhora...
— É uma menina muito fingida, professora — acrescentou Salim. — Nós temos uma imensa vergonha dela, já fizemos de tudo mas ela não se emenda. Que fazer, ela é o nosso fardo.
— Mas eu... eu não estou entendendo... no colégio ela é considerada exemplar... as notas... ela é popular entre os colegas...
— Naturalmente — observou Samara — ela faz isso como um acinte. Ela detesta a própria família e acha que pode nos humilhar, alcançando as notas mais altas no colégio e espalhando seus troféus pela escrivaninha. Eu peço que nos desculpe, professora Mei... por nós não termos sabido educá-la. Mas qualquer deslize no colégio eu peço que nos comunique. Nós tomaremos providências enérgicas!
— Acho que nós não estamos falando a mesma língua, não é possível... ela é uma estudante exemplar, nós a estimamos e admiramos... em nome de que a puniríamos? Debby... eu sinto muito. Acho que não devia ter vindo.
Debby nada disse.
Mei pediu licença e se foi. Enquanto Salim a acompanhava Samara, furiosa, voltou-se para a filha:
— Viu o que você fez, encrenqueira?
— Eu não fiz nada, mamãe. Nem dei um pio.
Samara deu um soco na mesa, quase derrubando a laranjada.
— Por que você é tão sonsa? Por que você tem que fingir que é uma boa aluna?
— Mamãe, isso não se finge. Ou se é ou não se é. E eu sou boa aluna.
— Convencida! Como você pode ser boa aluna? Afinal... nós a conhecemos!


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Incidentes desse jaez espicaçavam Débora, instigando-a a fazer alguma coisa para mudar a sua vida, alterar aquela situação humilhante. Não sabia por que a sua própria família a detestava, como se fosse a Prima Lorraine daquela história de C.W. Pedúnculo. Não imaginava sequer o que poderia fazer para agradá-los, e já nem sequer tentava: limitava-se a ser polida, humilde e silenciosa. Quando encontrava louça para lavar na pia, punha mãos à obra. Sem que ninguém pedisse ou ordenasse, faxinava a casa periodicamente. Não ligava a televisão, e era o único membro da família a não ter tv no quarto. Só lhe davam o dinheiro estritamente necessário para as passagens e alimentação semanais e, desde a briga por causa do baile de debutantes, os pais não lhe entregavam um centavo para comprar roupas; e ela viu-se obrigada a pegar uns servicinhos na faculdade, em troca de alguns níqueis para se sustentar. Se ficava doente — com gripe e febre, por exemplo — não tinha coragem de queixar-se e não podia ir sozinha procurar socorro médico. Assim, deixou de cuidar da saúde e assistia aulas ardendo em febre. Certa vez a Professora Valdirene percebeu isso e, horrorizada, mandou-a para o ambulatório, onde o médico, admirado com a sua resistência, receitou-lhe antibióticos e sugeriu que passasse uma semana em casa, dando-lhe o papel de licença.
Ela agradeceu, guardou o atestado e... não o mostrou em casa, retornando à aula no dia seguinte, ainda febril e sem medicação. Como não havia aula com a mesma professora, o fato passou despercebido até que, no fim do mês, o cruzamento de informações evidenciou que o boletim escolar assinalava o comparecimento de Debby em todos os dias da licença médica. Chamada à secretaria e diante da perplexa professora Wanda, ela baixou os olhos e disse com humildade:
— Professora... como eu poderia faltar às aulas?
— Mas você estava de licença, teria que faltar!
Ela sorriu com tristeza:
— Bem, eu compareci a todas. Não gosto de faltar.
— Não sei o que faço com você! Por favor, não repita isso! Você teve sorte de melhorar, mas e se piorasse? Se caísse de cama? E a nossa responsabilidade, menina?
— Desculpe-me.
— Está bem... por essa vez.


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Relembrando infâmias desse tipo, Debby armava-se de coragem e, enquanto estudava, conseguia ao mesmo tempo pensar em Dalton. Quando chegou a hora do recreio, resolveu segui-lo. Queria afinal descobrir o que significavam os misteriosos sumiços do rapaz.
Mas quando seguia pelo pátio de cimento disposta a rastrear Dalton que já começava a se fundir na escuridão de um corredor, alguém pegou no seu pulso:
— Debby, espere, está com muita pressa? Vai aonde?
Ela se voltou, mirou a colega:
— Tina... que foi?
— Não fala mais com os pobres?
— Ora...
— Queria esclarecer uma dúvida com você... na matemática.
Debby era pau-para-toda-obra no que se referia a auxiliar colegas nos estudos; mas sentiu dentro de si uma frustração crescente:
— Agora não, Tina, por favor! Vou ter que ir no banheiro...
E com essa desculpa ela se desvencilhou da colega e correu para alcançar Dalton.
Alcançou-o de fato, num escuro corredor que se comunicava com as Salas Esquecidas. Ele escutou a sua afobada aproximação e se voltou admirado:
— Oi?
— Dalton, sou a Debby. Eu preciso falar com você, é muito importante!
— Sim, mas agora... tenho que ver uma coisa...
— É, eu também tenho que ajudar numa lição de matemática... encontra comigo depois da aula, no café-livraria? Eu te espero, não falta!
— Mas o que...
— A gente se fala! Tchau!
E retornou o caminho correndo, temendo dar maiores explicações.


CAPÍTULO 3

COISAS MISTERIOSAS


Ela tinha pedido um chá de menta com torradas para passar o tempo, e enquanto isso o seu desconfiômetro cerebral piscava alertando-a sobre alguma coisa intrigante.
“Afinal o que ele vai fazer nas Salas Esquecidas? Tem anos que ninguém anda por lá.”
Toda uma enorme ala do educandário fôra abandonada há uma geração e raramente alguém se aventurava por lá nos últimos anos. Isso porque o mau cheiro, os ratos e a sujeira acumulada afastavam os curiosos.
“Ele não virá. Deve ter-me achado impertinente. Ou foi pego fazendo algo que eu não devia saber.”
Por outro lado despertara nela a idéia de segui-lo até as Salas Esquecidas, onde poderia conversar com Dalton em total privacidade. Começou a devanear com essa idéia.
“Por outro lado”, continuou matutando, “alguém devia procurar saber o que há com essas Salas Esquecidas. Será que ele resolveu investigar?”
Recordou a hostilidade que a aguardava em sua própria casa. Sua analgia representava uma proteção contra aquele dissabor, mas não era o suficiente para solucionar o busílis. Tais reflexões eram um acicate para que prosseguisse naquele atalho. Dalton, Dalton, Dalton...
— Oi, Debby. Estou aqui.
— O... o q....que...oi... (como era mesmo o nome dele?)
Incrédula, com uma sensação de irrealidade, viu o seu amado sentar-se à sua frente.
— E aí, o que você quer falar comigo? — ele estava sério, circunspecto.
— Dalton, que surpresa... — balbuciou a jovem, embaraçada.
— Ué, por que a surpresa? Não foi você mesma quem me chamou?
Ela podia ter gritado a plenos pulmões: “Mas eu não acreditei que você viria!!!” Foi o que a sua vontade queria fazer, mas não a atendeu.
— Ah, sim, é claro... eu pedi que você viesse.
— Mas e então?
— Tome alguma coisa.
— Eu não estou com vontade...
— Eu pago, não se preocupe...
— Não é por isso, Debby... está bem, dá um tempo.
O rapaz pegou o cardápio, chamou a garçonete e pediu uma trufa. Quando a garota se afastou e Dalton olhou com cara de “Já fiz o pedido, agora diga o que você quer”, Debby atirou:
— O que você vai fazer nas Salas Esquecidas?
Não era isso que ela pretendia dizer, mas a sua curiosidade reprimida foi mais forte. A reação de Dalton foi desagradável:
— O que você tem com o que eu faço? Cuide da sua vida!
Apesar da rispidez, aquelas palavras eram música para os ouvidos da Debbie! Afinal, em casa era muito pior: não lhe davam o direito de respirar.
Ela sorriu:
— Da próxima vez me chama, eu quero ir com você.
Audaciosa... pensou ela. Nos velhos tempos não se julgaria capaz de ir tão longe.
— Mas eu não vou até lá...
— Deve ser muito bom estar em sua companhia, ainda mais em lugares onde possamos ficar a sós... você não é como tantos garotos que eu conheço... você é diferente. E você deve estar precisando de quem o ajude.
— Ajuda? — ele estava perplexo. — Ajudar-me em que?
— Não há dúvida que existe um mistério em torno da sua pessoa, Dalton. Seja o que for que você está remexendo, me leve junto. Eu quero estar ao seu lado.
A trufa chegou fumegando, a atendente se afastou e o garoto, ainda admirado, fez o que lhe pareceu a pergunta óbvia:
— Mas por que você quer estar ao meu lado?
Debby fez uma cara de desassisada e apertou os dedos na borda da mesa, como se estivesse contendo a si própria para não pular na garganta do outro:
— Porque eu gosto de você, seu burro!

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Agora já era. Ela falara, desabafara. Sentiu-se murchar como um balão inflado. Nesse momento o celular tocou. Aliás, os dois. Antes até que ela pudesse avaliar a expressão dele, tiveram que atender.
— Oi.
— Oi.
— Oi, Debbie, aqui é a Joviana, vai fazer o que essa noite? Eu ganhei duas entradas para o teatro, sabe...
— Oi, Dalton, é o Hijitus... vai ter um show dos Capengas hoje à noite... estou com a turma, quer ir junto?
Débora falou o mais baixo que pôde:
— Jô... eu estou meio ocupada... por favor, depois a gente se fala.
— Mas o que! Eu tenho que saber agora!
— Olha, eu te agradeço mas não vou poder ir!
— Você tem que ir! Prefere ficar com a sua família chata?
— Ai, meu Deus... não posso te explicar agora... depois explico.
— Mas mulher, como é que você pode perder uma oportunidade...
Atarantada, a garota percebeu que Dalton já desligava o seu aparelho e ela nem pudera perceber se, por aquele lado, a interrupção separaria os dois.
— Estou falando com uma pessoa. Ligo depois. Tchau!
Debbie desligou o aparelho.
— Ai, que mulher chata — e sorriu amarelo.
— Acho que você não devia ter desligado na cara dela — disse ele, singelamente.
— Não dá para ser educada sempre. Já sou educada demais.
— Bom... sobre aquilo que você disse...
— Sim? Sim?
— Eu gosto de você também... apesar?
— Apesar do que? Se você começar a falar mal de mim eu armo um barraco aqui mesmo!
— Bem... não vale a pena se zangar. Você quer ir comigo ver o show dos Capengas? Era o Hijitus me convidando...
— Oh, meu Deus... ir para um lugar barulhento... com um grupo... não poder conversar com você...
— O que você sugere então?
— Irmos juntos nas Salas Esquecidas e lá poderemos conversar a sós.
Ele parecia embaraçado.
— Não acho uma boa idéia... lá é perigoso.
— Ah, é? Que pode haver de perigoso por lá?
— Acho que eu não devia ter dito isso...
— Eu não aceito ser deixada para trás. Afinal, a gente vai casar um dia e não deve existir segredo entre nós...
— Já?
— Dalton, me leva para algum lugar. Quero ficar um pouco com você, me distrair um pouco...


CAPÍTULO 4

AS SALAS ESQUECIDAS


Dalton afinal levantou e, com expressão inextricável, foi se afastando; Debby seguiu-o, sentindo-se frustrada e ansiosa.
— Onde você vai?
— Venha comigo — respondeu ele, sem olhá-la.
“Ele me chamou!”, pensou ela excitada. “Não posso acreditar!”
Caminharam em silêncio, até chegarem aos acessos para as Salas Esquecidas. Debbie nunca tinha ido até lá e se surpreendia ao perceber que tinha coragem suficiente para fazê-lo. O seu coração batia como um tambor e ela sentiu que com ele não tinha medo. Sim, medo... o que mais poderia ter afastado a todos durante tanto tempo, de uma grande ala dos pavilhões do complexo escolar? O que havia afinal de tão infando ou de tão nauseante que ao longo de décadas aquela região permanecesse ao largo do interesse da própria universidade e da curiosidade de milhares de pessoas?
Por que ela própria nunca pensara muito nisso?
Espantou-se em ver que o corredor se prolongava indefinidamente, que dava voltas e mais voltas, se trifurcava e que descia em rampas para subterrâneos, passando por estranhos depósitos ou almoxarifados e esquecidas e poeirentas salas de aula; as luzes termobiológicas acendiam e apagavam à sua passagem e a certa altura, com a paciência já perdida, ela agarrou-lhe o braço direito e questionou:
— Dalton, onde é que nós estamos indo?
— Estas são as Salas Esquecidas. Não é onde você queria me acompanhar?
Ela deixou escorrer umas lágrimas salgadas e o abraçou, comprimindo o rosto em seu peito:
— Larga de ser duro comigo, pelo amor de Deus! Todos já são duros comigo! Em casa... eu preciso relaxar com alguém! Dalton, por favor...
— Todos são duros? O que você quer dizer?
— Se eu lhe contar como a minha família me trata, você não vai acreditar. Eu preciso de você! Sou muito solitária...
Ele a abraçou acolhedoramente. Vagarosamente, eles se beijaram.
— Não chore, Debbie. Eu farei o que puder.
— Jura?
— É claro — ele sorriu sem abrir a boca e enxugou as lágrimas da garota.
— Bem... — ela sorriu com tristeza. — Vai me dizer o que você busca por aqui?
— Sim, eu lhe direi.
— O que é, então?
— A verdade. Eu busco a verdade. Vamos!
E assim dizendo ele recomeçou a caminhar, e Debbie acompanhou-o. Foram descendo a rampa de braços dados.


CAPÍTULO 5

A VERDADE


— É estranho, Dalton, que esses lugares esquecidos estejam ainda respiráveis, limpos...
— É que os andróides periodicamente limpam e aspiram tudo, senão isto aqui estaria muito ruim...
— Nem fale! Já tive desidrose e alergias diversas em criança, peguei horror a sujeira e poeira...
Finalmente atravessaram um grande e desolado salão onde, afora algumas cadeiras e mesas, não se viam objetos ou móveis, mas em redor existiam portas e mais portas.
— Que labirinto, querido! Onde é que isso vai nos levar?
— Qualquer porta serve. Elas nem sequer estão fechadas.
Debby estacou de súbito, obrigando Dalton a fazer o mesmo.
— Você sabe, não sabe?
— O que?
— A verdade que você procura. Você já a encontrou aqui, já deve ter vindo aqui inúmeras vezes.
— É, Debby. Eu sou o único.
— Mas por que? Por que todos têm medo de vir aqui?
— Medo ou inibição, ou desinteresse, chame do que quiser, mas o fato é esse: ninguém quer vir até aqui.
— Me leva, então. Eu quero conhecer essa verdade!
Ele a beijou com delicadeza e, de mãos dadas, caminharam até uma das portas, onde no passado houvera uma placa. Dalton abriu-a, a luz acendeu automaticamente e o casalzinho entrou.
Débora olhou em volta, espantada.
— O que é isso?
— Como você pode ver, pilhas e pilhas de mangás.
— Hein?
— Milhares de revistas antigas, bem conservadas nesse ar esterilizado.
Ela libertou-se dele e correu a examinar as revistas nas estantes metálicas; estavam bem arrumadas, e em ordem numérica por sequência de história.
— “O canal secreto”... “Espadachins”... “Futurolandia”... “Invasão”... “Para além da morte”... o que é tudo isso?
Dalton puxou-a para um sofá.
— Meu amor, é o seguinte: há trinta anos consolidaram-se as leis que restringem o uso de papel, celulóide etc. para fins didáticos, técnicos, políticos e militares, foi assim um pouco pelo mundo inteiro. Também tem havido restrições às relações familiares e humanas de um modo geral: a tendência atual é que as pessoas já não possuem amigos, apenas conhecidos ou colegas de trabalho, e não possuem mais afeição natural para com os parentes.
“Por isso, e porque a poesia e a fantasia já não são olhadas com bons olhos, as revistas de quadrinhos foram deixando de ser impressas, as empresas de cinema, antes prósperas, cerraram as suas portas, somente a internet e os jogos de computador ainda prosperam.”
“Muita coisa que existiu em abundância foi recolhida aqui para sempre. Livros, revistas, filmes em holodisco, álbuns de figurinhas... coisas que encantavam os nossos avós e que hoje estão esquecidas, abandonadas.”
— Mas isto... é abjeto. O que você está me dizendo...
— Mas é a verdade, e as edições clandestinas e piratas das histórias ainda circulam largamente entre as pessoas que se interessam.
— O que você pretende fazer?
— Bem, no momento eu vou sentar aqui e ler um mangá. Veja esse aqui, é bem antigo: “Guerreiras mágicas de Rayearth”.
Debbie pegou “Kare Kano” e pôs-se a ler, fascinada. Achou incrível o mergulho nos sentimentos de uma adolescente.
“Nós somos assim... nós temos o coração assim, antes que a vida nos endureça.”
Olhou para o seu amado, que naquele momento aparentava estar completamente entretido com as guerreiras mágicas.
“Em quanto tempo poderei casar com ele? Viver com ele? E como poderemos lutar juntos e com outras pessoas, para reverter a situação de um mundo ressecado e estéril?”