REFORMA ÍNTIMA

A maioria dos sonhos de Hugo dizia respeito ao sentimento de culpa. Apesar da sua formação universitária em Física, que intensificara a forma crítica e sistemática de analisar a realidade, não desprezava o conhecimento sensorial, sem demonstração programada das causas determinantes dos fatos que ocorrem dentro e fora do ser humano. Embora fosse ateu, tinha a mente aberta para recepcionar as evidências que pudessem convencê-lo da existência de um mundo paralelo ao mundo físico, como teoriza a Física Quântica. Rodolfo, um amigo de infância, optou pelo curso de Comunicação Social, com habilitação em Cinema.

Assim que entrou em seu apartamento, retornando de uma viagem que fizera aos Estados Unidos, onde participou de um congresso, Hugo escutou vozes que vinham do quarto, para onde se dirigiu imediatamente. Entrando no quarto a passos largos, percebeu, para o seu espanto, que as vozes haviam cessado. Em seguida, percorreu todos os cômodos do apartamento, mas não encontrou ninguém. O televisor, que ficava na sala, estava desligado. Os vizinhos do apartamento ao lado haviam se mudado no mês anterior, deixando-o desocupado. “De onde vieram aquelas vozes?”, indagou-se perplexo. Pelo visto, parecia ter sido uma alucinação. Estava muito estressado naquela ocasião. Cansado da viagem, naquela noite foi deitar-se mais cedo do que o habitual.

No dia seguinte, abasteceu o automóvel no posto de gasolina de costume, calibrou os pneus e foi dar uma volta pela orla marítima, desfrutando da visão inebriante de um panorama privilegiado pela beleza natural. A visão do mar o acalmava. Depois disso, procurou um psiquiatra com quem já tinha se consultado em outras oportunidades. Após algumas perguntas que lhe fizera, o psiquiatra receitou-lhe um antidepressivo, com a recomendação de que retornasse ao consultório no próximo mês para uma avaliação do resultado do tratamento medicamentoso. Saiu do consultório médico, comprou o remédio e foi para a empresa em que trabalhava. Teria de apresentar um relatório numa reunião com a sua equipe de trabalho, a qual chefiava desde que fora promovido a gerente. As reuniões de trabalho ajudam a tornar o grupo mais entrosado e produtivo. “Essas vozes não retornarão nunca mais!”, pensou durante o caminho, convencido de que aquele fato inusitado ocorrera em virtude do cansaço mental.

Na manhã de um domingo de céu aberto, olhando distraidamente pela janela da sala, Hugo experimentou uma intensa sensação de bem-estar. A medicação havia surtido efeito. Percebeu que estava sorrindo, enquanto se deliciava com a brisa matinal. Tudo voltara ao normal. Foi até a cozinha para preparar um lanche quando o telefone fixo tocou. A voz do outro lado da linha era de Rodolfo, convidando-o para participar de uma reunião num centro espírita que havia sido fundado recentemente nos fundos de uma igreja evangélica administrada por um tio. A reunião estava marcada para as vinte horas daquele dia. Não havia intolerância religiosa de nenhuma das partes. “Eu preciso desligar, mas espero que você compareça!”, disse-lhe Rodolfo antes de despedir-se do amigo que não via há algum tempo.

À noite, Hugo já estava pronto para ir à sessão espírita quando novamente ouviu vozes no interior do apartamento. Dessa vez, teve a impressão de que vinham do banheiro, mas lá chegando ninguém encontrou. No entanto, percebeu que a torneira da pia estava aberta. Fechou-a depressa. Apanhou no armário da cozinha a caixa do medicamento, tomou um comprimido, sentou-se no sofá da sala e permaneceu em silêncio. Pouco depois, levantou-se, apagou a luz e saiu na esperança de voltar para casa com a mente desanuviada. Um acidente deixou o trânsito congestionado num trecho do percurso que fez até o local combinado para se encontrar com Rodolfo, mas conseguiu chegar a tempo. Antes do início da reunião, dialogaram por alguns instantes na entrada do prédio sobre o que estava ocorrendo no apartamento de Hugo, que se mostrou bastante apreensivo durante a conversa. Rodolfo estava convencido de que se tratava tipicamente de um caso de interferência espiritual, mas preferiu que o amigo soubesse disso por meio de Tiago, que era um médium experiente e, com a bagagem de conhecimento que acumulara sobre o assunto, estava mais preparado para lhe fornecer informações pormenorizadas a respeito do assédio espiritual do qual estava sendo vítima. Numa conversa reservada com Tiago, tudo lhe fora revelado. Nesse momento doloroso, Hugo ficou ciente das circunstâncias que envolviam aquele episódio inusitado que mudaria radicalmente a sua maneira de ver o mundo. Hugo viu-se diante da urgência de encontrar dentro de si a força moral necessária para se livrar do jugo dos espíritos malfazejos que lhe foram enviados por uma pessoa que, em razão do rancor remanescente de desavenças mal resolvidas no passado, desejava vê-lo no fundo do poço, sem nenhuma possibilidade, por mínima que fosse, de se recuperar do dano que lhe estava reservado para breve. Hugo era um maganão, mas, sabendo disso, o seu sorriso perdeu a graça. Não supunha que aquela pessoa ainda alimentasse tanto ódio no coração. Para ele, a mágoa daquela época infeliz era um lago de lágrimas que já havia secado no seu íntimo. Olhou-se por dentro e viu que estava dividido entre o prazer da revelação e a dor da decepção. A virtude e o vício são os polos da consciência moral. A vingança é um vício, um sentimento que escraviza o espírito, em vez de libertá-lo do rancor autodestrutivo. Não é justiça, não traz apaziguamento, antes traz remorso, se a consciência moral vier a reprová-la quando a vingança estiver consumada. O remorso faz do suposto credor o legítimo devedor. Às vezes, nos momentos em que era assaltado pela insegurança, Hugo admitia a hipótese de que poderia dividir com todo o mundo a responsabilidade pelos seus erros e excessos, visto que ninguém é perfeito, mas esse pensamento não passava de uma tentativa de fuga da sua caverna assombrada. Não dispunha de um escudo emocional eficaz no combate ao sentimento de culpa. Precisaria da ajuda de pessoas que estivessem preparadas e dispostas a enfrentar com ele o desafio de retornar ao seu paraíso perdido. Uma multidão de vozes interiores culpava-o por tudo o que não dera certo ao londo da sua vida. Sem a oposição de nenhum tipo de resistência, essas vozes expandiram-se para o mundo exterior. Nas vezes em que as ouviu no apartamento, também sentiu um cheiro desagradável no ambiente, fazendo-o suspeitar de que pudesse ser uma emanação fluídica dos espíritos inferiores que tramavam a sua derrocada, caso derreasse sobre a vala que estavam abrindo na sua vida para selar a promessa de vingança. Segundo Tiago, o mau cheiro no apartamento realmente denunciava a presença desses adversários espirituais.

Tiago era um professor aposentado de Matemática. Tentou seguir a carreira eclesiástica, mas preferiu pedir desligamento do seminário para se dedicar ao Magistério. Tinha aptidão para a vida de padre e vocação para a vida de professor. A aptidão cedeu lugar à vocação. Somente depois de ter começado a dar aulas particulares para adolescentes foi que descobriu a vocação para lecionar. Ninguém desvenda os dons escondidos se não ampliar o campo de atuação. Como religioso, acreditava que Jesus Cristo nascera humano, tornando-se divino a partir do batismo, momento em que fora ordenado Filho de Deus por João Batista, assumindo, como sacerdote supremo, a missão excelsa de servir como mediador entre a Divindade e a Humanidade.

Desde a adolescência, Tiago procurava uma resposta convincente para esta pergunta: “Há vida após a morte?”, mas não achava uma resposta convincente. Não queria encontrar argumentos filosóficos, mas provas reais de que a vida continua depois da morte. A Doutrina Espírita, associada à sua prática, representou para ele uma ferramenta útil para formar a sua convicção. Para ele, os fatos vivenciados são mais persuasivos do que os dogmas apregoados, pois não deixam o espaço mental livre para contra-argumentos. As provações estabelecidas no mundo espiritual para a sua vida terrena demandaram uma carga intensa de fluido vital. Por isso, Tiago era dotado de um forte magnetismo pessoal.

Estas perguntas são convites à reflexão: “Quem sou eu?”, e “Em que acredito?”, e da busca pelas respostas originaram-se as seitas e religiões. Na opinião de Tiago, essas indagações são fundamentais para a concepção de uma existência anterior à existência atual, e que influencia esta de maneira decisiva. Nas reuniões que presidia, não era raro argumentar que o homem é moldado pelas crenças que alimenta a seu respeito. Tiago orientava os seus consulentes no sentido de manterem a integridade com pensamentos positivos em relação a si próprios, afirmando, ao final dos seus discursos, que, conforme a perseverança e a sinceridade desse exercício mental, o que é idealizado no mundo interior pode ser concretizado no mundo exterior. Era um defensor entusiasta da teoria da força do pensamento como poder transformador da realidade, seja espiritual, seja material. De acordo com a crença de Tiago, para transformar a situação na qual vivia, Hugo teria de estabelecer para si mesmo, como verdade incontestável, a ideia de que o pensamento existe de forma concreta, e que a existência do pensamento é inseparável da essência espiritual. Tiago recomendou-lhe que não duvidasse das suas percepções sensoriais, pois essa certeza seria imprescindível ao seu processo de libertação emocional do passado, ao qual permanecia acorrentado pelo sentimento de culpa. Sem, todavia, descuidar-se do tratamento psiquiátrico, para que a intervenção mediúnica lograsse êxito, seria necessário que Hugo reordenasse o seu mundo interior com pensamentos elevados, criando, ao seu redor, um campo de força que o protegeria da influência perniciosa dos espíritos inferiores, cujo padrão vibratório de baixo nível entrara em sintonia com o seu perispírito em virtude do sentimento de culpa, que debilitara a sua saúde espiritual, resultante de uma relação matrimonial fracassada no passado. A pessoa irosa que havia solicitado o concurso predatório desses espíritos malignos era a sua ex-mulher. Não conformada com a separação, ela recorreu a um trabalho orientado de “magia negra”, a fim de fechar todos os caminhos que Hugo quisesse e pudesse trilhar para alcançar a felicidade. Muitas vezes, o sucesso alheio incomoda as pessoas que lograram fracasso nas suas iniciativas. O que essas pessoas não sabem, ou não admitem, é que cada dia, cada momento do dia pode ser um recomeço para quem mantém acesa a chama da esperança. Toda iniciativa bem-sucedida é uma luz que se acende na alma humana, e o resultado esperado da prática reiterada de boas ações é a iluminação interior, que alarga o horizonte de oportunidades de realização pessoal. O satanismo moderno é uma seita religiosa representada pela adoração a uma deidade maligna em oposição a uma deidade benigna, na qual a vingança triunfa sobre o perdão. Movida por um ódio incoercível, a sua ex-esposa comportava-se como uma víbora bufadora. A víbora bufadora é uma serpente que cospe o seu veneno no candidato à vítima. Hugo era o candidato à vítima.

Um dos principais recursos emocionais utilizado pelos espíritos obsessores é despertar o sentimento de culpa nas suas vítimas, valendo-se das falhas e dos erros cometidos na condução das suas vidas por imperícia, negligência ou imprudência. O passo seguinte é, com o tempo, intensificá-lo até a exaustão, de forma a convencê-las de que todo sucesso é imerecido e, por conseguinte, nenhuma conquista é permanente. Hugo estava fazendo o jogo deles em seu desfavor, uma vez que os fortalecia com a sua fraqueza moral. “Quanto mais poder se confere à opressão, maior será a tirania!”, concluiu Tiago, olhando diretamente nos olhos de Hugo.

Além do sentimento de culpa, outra arma emocional muito eficaz na obsessão espiritual é a técnica que explora o sentimento de medo, um sentimento que, se não for controlado, é capaz de provocar uma enorme desarmonia interior, deixando a pessoa vulnerável a toda sorte de influências perniciosas. Muito preciso nas suas assertivas, Tiago finalizou a conversa com Hugo dizendo-lhe para que orasse a Deus diariamente, pedindo-lhe força moral, porque temer significa ocupar voluntariamente uma posição de inferioridade, na qual a pessoa é incapaz de acreditar e investir no seu potencial, chegando ao ponto extremo da autoboicotagem, numa tentativa inconsciente de evitar o sucesso. Na mente em que o medo campeia sem rédeas, desfalece a força renovadora do amor. O medo faz com que o seu escravo sofra uma baixa no padrão vibratório, tornando-se, dessa forma, vulnerável às forças negativas externas. Sentir medo de alguém, ou de alguma situação, sem esboçar nenhuma reação defensiva, é o mesmo que passar um atestado de inferioridade. Por isso, na sua sabedoria divina, Jesus Cristo disse aos discípulos para que não temessem as forças do mal, mas, em lugar disso, enfrentassem a subjugação com fé e determinação, mesmo ao custo do sacrifício da dor, que foi o preço que o próprio Divino Mestre pagou por ter resistido à tentação do Príncipe das Trevas. Todos os homens têm necessidades existenciais que só podem ser satisfeitas pela experiência espiritual, porque nem só de pão vivem os homens.

Naquela noite, já tendo retornado ao aconchego do lar, Hugo pensou em trocar de residência. Talvez assim ficasse livre daquele atoleiro de culpa no qual se revolvia desde a separação conjugal. As ideias inimigas estavam gritando na sua mente, mas não lhes deu atenção. Concentrou-se na leitura de um livro de autoajuda. O sono veio devagar. Mais um pouco de leitura e o sono chegou, sugerindo-lhe que vestisse o pijama e fosse dormir. Rendeu-se a essa sugestão, e adormeceu contemplando as estrelas que cintilavam no céu. Hugo realizou a sua verdadeira mudança no dia em que se converteu à religião cristã, passando a frequentar a igreja evangélica que ficava em frente ao centro espírita. O pastor conseguiu persuadi-lo a perdoar os pecados que cometera no passado, na intenção de liberar os seus braços para que pudesse abraçar um futuro feliz. Nos meses que se seguiram à sua conversão, Hugo conheceu Isabel durante um culto dominical, com quem se casou e teve um filho, que veio ao mundo como um troféu pela recuperação da autoestima. Ofereceu-se à felicidade, e conquistou-a. As vozes misteriosas calaram-se para sempre.

Carlos Henrique Pereira Maia
Enviado por Carlos Henrique Pereira Maia em 08/08/2013
Reeditado em 01/10/2013
Código do texto: T4425452
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