JUSTIÇA UNIVERSAL

Elias recebeu uma casa de herança situada ao norte de uma pacata cidade do interior fluminense, para onde se mudou. Não era exatamente a residência que desejava, mas era bem localizada. Havia grande diversidade de comércio no bairro, e a vizinhança era simpática. No dia da mudança, alguns amigos o ajudaram na arrumação dos móveis. Para compensar o esforço que despenderam durante o dia, foram passar a noite numa danceteria muito conhecida naquela cidade. Foi uma noite divertida. Na manhã do dia seguinte, os seus amigos despediram-se dele, prometendo-lhe que retornariam para a comemoração do seu aniversário.

De um dos três quartos da casa, fez o seu escritório. Posicionou a escrivaninha em frente à estante abarrotada de livros de cima a baixo. Elias era escritor e professor de Literatura. Conseguiu transferência para uma escola não muito distante de onde residia. Todo mundo o admirava pela dedicação ao magistério. Quando terminava as aulas, sempre reservava um tempo para conversar com os alunos, conhecê-los melhor e inteirar-se das suas dificuldades. Ministrava as aulas no horário diurno, deixando a tarde livre para trabalhar no romance que escrevia. O livro que pretendia publicar versava sobre psicografia. Os personagens eram fictícios, mas os casos que relatava eram verídicos. Gostava de perscrutar o espiritualismo, a verdade impalpável, a realidade subjetiva que se situa fora dos limites da razão. Cumpria na vida atual o destino de deslindar a face oculta da existência. Acreditava que um dia a cortina que separa os mortos dos vivos iria desaparecer. Por isso, escrevia sobre a vida espiritual, que é a vida real. Com o passar do tempo, as folhas secas do velho mundo serão substituídas pelas folhas verdes de uma nova era de esperança baseada na evidência.

O Sol brilhava na manhã de sábado. Foi até o quintal para varrer as folhas que caíram da árvore que o falecido pai havia plantado. Estava feliz, embora ainda sensibilizado pela morte violenta do melhor amigo que tivera na vida. O pai fora assassinado num roubo seguido de homicídio. O latrocínio foi registrado no distrito policial, mas o inquérito policial não teve o andamento que esperava por absoluta falta de indícios da autoria. Enquanto varria o quintal, ouviu uma pancada que parecia ter sido produzida no interior da sua residência. Apoiou a vassoura na árvore e entrou em casa. O escritório foi o último cômodo que revistou. Nada encontrou de estranho, a não ser uma folha de papel caída no chão, com alguns rabiscos ilegíveis. Foi até a cozinha, acendeu o fogão e fritou três ovos no azeite. Era o seu lanche preferido, um costume que herdara do pai. Depois disso, foi para o trabalho, retornando para casa ao anoitecer.

Naquele dia da semana, a noite estava prazenteira. A lua cheia compunha a beleza do céu estrelado. A tranquilidade daquele momento despertou nele o desejo de escrever. No escritório havia um aparelho de som. Ouvia música clássica sempre que escrevia, porque o acalmava, além de inspirá-lo. Costumava primeiro rascunhar o texto à mão para só depois digitá-lo no microcomputador. A caneta arrastava-se nas pautas do caderno até que, de repente, parou. Faltava-lhe inspiração para desenvolver o romance. Algumas vezes, embora concentrado, as palavras não vinham, por mais que forçasse a imaginação. No entanto, não largou a caneta. Enquanto meditava sentiu que a mão direita ficou trêmula e, muito lentamente, começou a escrever, como se tivesse vontade própria, ao mesmo tempo em que ouvia uma fala interior, inicialmente incompreensível, mas que aos poucos se tornou clara. Nesse instante, o aparelho de som, que tocava uma música sacra de Rossini, parou de funcionar. O rosto do pai veio-lhe à consciência. Elias não estava apavorado, apenas admirado. O que escrevia era o pensamento do pai, e não o seu. Quando terminou, espantou-se com a mensagem que havia psicografado. Revelava detalhes do assassinato. Naquela noite, conheceu o perfil do assassino e o seu endereço. Descobriu que o assassino morava ao sul daquela cidade, numa área suburbana.

No domingo, ao despertar, fez uma ligação telefônica para a mãe, com quem conversou demoradamente sobre a comunicação que tinha psicografado, com ênfase na descrição dos traços fisionômicos do assassino. Soube por meio dela que aquele homem era um antigo empregado da microempresa do seu pai, que tinha sido demitido por ter cometido desfalque. Queria mais informações, mas isso era tudo o que a sua mãe sabia. Essa informação não fora prestada na mensagem psicográfica. A motivação do crime podia ter sido o desejo de vingança de um bandalho incapaz de reconhecer a falta grave que ensejara a sua demissão. Não poderia participar o fato à polícia, porque ninguém o levaria a sério. “Quem vai acreditar em mim?”, indagou-se por dentro. Teria de agir por conta e risco próprios. Telefonou para o diretor da escola e solicitou-lhe o gozo das férias vencidas. Precisaria de tempo disponível para investigar. Estava ansioso por apurar a autoria do crime e ver o criminoso na cadeia.

Na manhã da segunda-feira, arrumou-se e foi até a secretaria para tratar da parte burocrática das férias que lhe foram concedidas. Esperava solucionar o caso no prazo de trinta dias, a todo custo. No dia seguinte, as suas esperanças aumentaram quando chegou à casa do meliante que procurava. Confirmou com um vizinho o nome dele e fez um levantamento da sua vida pregressa. Soube por esse vizinho que era um muambeiro chamado Jairo. Depois da demissão por justa causa, não conseguiu nenhum outro emprego formal. Vendia nas redondezas mercadorias contrabandeadas, que eram entregues em sua residência por outro muambeiro, com quem estava mancomunado. Um negócio lucrativo e livre de impostos. Do outro lado da rua, Elias aguardava pacientemente a chegada daquele homem, que costumava retornar a casa ao anoitecer. Já havia passado uma hora desde que lá chegou. O relógio de pulso marcava dezoito horas. Não tardaria muito a conhecer pessoalmente o assassino do pai. Às dezenove horas notou a aproximação de um homem de estatura mediana, branco e com cavanhaque. Elias sentiu um calafrio quando viu que aquele homem entrou na casa que lhe fora indicada pelo vizinho que consultara. Era o próprio, em carne e osso. Precisava manter a calma, não queria partir para a violência. A lei dava-lhe o direito de perquirir, mas a punição cabia ao Estado. A sua intenção era conseguir daquele homem a confissão do crime, embora suspeitasse no seu íntimo que não lograria êxito, porque sabia que a assunção da culpa é uma virtude rara numa sociedade competitiva e individualista. Fez com o polegar da mão direita três cruzes, uma na testa, outra na boca e outra no peito. Fora educado segundo os preceitos do catolicismo. Se abandonasse os princípios morais, não seria melhor do que os felinos. Depois de ter feito o sinal da Santa Cruz, foi até a porta da casa e acionou a campainha. Não foi atendido. Tentou várias vezes até que finalmente viu a porta abrir-se e ficou frente a frente com o homem que mais odiava no mundo. “O que você quer?”, perguntou-lhe o muambeiro. “Conversar com você!”, respondeu-lhe Elias. Entreolharam-se por um instante até que Elias foi convidado a entrar. Assim que atravessou a porta, o silêncio que marcava aquele momento foi quebrado pelo som estridente de sirene. Do lado de fora havia estacionado uma viatura policial. Uma dupla de policiais dirigiu-se até a porta daquela casa e um deles anunciou que era a polícia. Prontamente foram recebidos por Jairo, que foi surpreendido pela exibição de um mandado de prisão pelo assassinato do pai de Elias, cuja autoria havia sido apurada no curso da investigação. Não tentou empreender fuga. Mais tarde, no distrito policial, Elias foi informado pelo escrivão de que aquele homem, na noite em que cometera o latrocínio, deixara cair a carteira de identidade, que somente há pouco tempo fora encontrada no local do crime, dentro de um bueiro. Na fuga, a carteira de identidade que trazia no bolso traseiro da calça ficara para trás, sem que o meliante tivesse percebido a falta de sorte. Outro meio de prova foi o reconhecimento por meio de fotografia feito por um mendigo que se acomodara debaixo do toldo de uma lanchonete na noite da ocorrência do crime. Elias telefonou para a sua mãe e colocou-a a par do acontecimento. “Meu pai queria que eu presenciasse a prisão do seu carrasco!”, disse à sua mãe, com a alma fortalecida pelo sentimento inefável de justiça. O brilho no olhar era a expressão da sua satisfação. Para isto existem os olhos: para enxergar o mundo exterior e expressar o mundo interior. Em seguida foi ter com o delegado, a pedido deste, para ser esclarecido sobre as circunstâncias da ação delituosa da qual o seu pai fora vítima. Naquela noite distante em que o homicídio fora consumado, Elias estava participando de um congresso em Brasília. A última vez em que esteve com o seu pai fora num restaurante, onde comemoraram a conclusão do curso de mestrado. Ainda hoje, com os olhos fechados, Elias vê o seu rosto sorridente, o seu corpo magro e a ternura do seu olhar quando se encontravam.

A justiça é um sentimento universal, todo o mundo anseia por ela. Muitos desejam, e outros temem, que a justiça, ainda que tardia, seja feita, quer neste mundo, quer no outro. Não é uma aquisição pessoal, nem uma recompensa social, é uma dádiva de Deus, uma condição para o progresso moral da Humanidade. A complacência com o criminoso, e não com o crime, é compreensível porque de perdão necessitamos todos, do mais inculto ao mais sábio dos homens. A vida social carece de respeito mútuo. Respeitar os direitos alheios é praticar a justiça, é amar, é engenhar a perfeição.

Naquela noite, Elias pôde dormir aliviado, e nos dias que se seguiram conseguiu concluir o romance. O desejo de vingança infesta os homens incautos, mas a cautela de Elias o livrou de fazer justiça com as próprias mãos, o que seria uma injustiça em face do ordenamento jurídico, e uma chaga moral que, cedo ou tarde, teria de resgatar.

Com o apetite de justiça saciado, a consciência estava leve como uma pluma. O dia seguinte marcaria o início da primavera e de uma nova vida para Elias, depois de atravessar noites e dias solapado pela angústia. Entrou no seu automóvel, deu a partida e retornou para casa. Estava cansado, com a fisionomia abatida. Precisaria de uma boa noite de sono para se recompor. Enquanto dirigia, alguém tocou no seu ombro direito. Elias virou-se para o lado e viu um homem de cabelos brancos sorrindo. Levou um susto, mas não se descuidou da direção. Estacionou logo adiante para conversar com o passageiro inesperado. “Quem é você?”, perguntou-lhe Elias em tom de perplexidade. “Sou seu espírito protetor!”, respondeu-lhe o ancião de forma amigável. “O que quer de mim?”, indagou-lhe com receio. “Quero que volte a morar com a sua mãe. Você não sabe, mas ela está adoentada. Precisa da sua assistência!”, respondeu-lhe mansamente. Depois de orientá-lo, o bom espírito contou-lhe que o seu pai estava vivendo em paz numa colônia espiritual, despediu-se de Elias e desapareceu. Chegando à sua casa, arrumou a mala depressa e telefonou para a mãe para avisá-la de que iria ter com ela ainda naquela noite. Quis saber do seu estado de saúde, pois imaginava que pudesse haver necessidade de internação hospitalar. Nada físico, apenas espiritual. A solidão em que vivia deixou-a deprimida. Sem a companhia do marido, ficara com a alma perdida no abismo sombrio do abandono. Elias e a mãe sofriam do mesmo mal. A solidão é uma contingência da vida, mas precisa ser renhida antes que se transforme em vício. No dia seguinte o problema já estava resolvido. Mãe e filho morariam juntos.

Carlos Henrique Pereira Maia
Enviado por Carlos Henrique Pereira Maia em 15/08/2013
Reeditado em 01/09/2013
Código do texto: T4435383
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