Ela é para sempre.

Há sempre alguma loucura no amor. Mas há sempre um pouco de razão na loucura.
Friedrich Nietzsche
  

 
                -O senhor sabe que o que me pede é ilegal? – disse o mecânico, seus olhos eram estrábicos, um maior que o outro, face carcomida, talvez pela radiação ou algum comprometimento genético, havia na face uma cicatriz em meia lua junto ao lábio, canto esquerdo, homem repugnante, de baixa estatura, de sua altura Paulo, que tinha um metro e noventa, ver a sua careca e os fiapos nascendo do centro, caminhando como serpentes para a  parte de trás da cabeça, as sobrancelhas eram grossas, parado parecia um anão, porém quando se movimentava parecia ainda mais baixo e era certo que ele mancava da perna direita que era tão curta que para equilibrar-se o homem tinha que encostar a mão no chão.
                O que estava fazendo ali? Pensou Paulo: é que o homem tinha reputação, apesar de feio era um engenheiro conhecido no mercado negro, oficialmente o que Paulo queria era proibido.
                -Tenho certeza absoluta – Paulo olhou para os filhos parados e silenciosos ao seu lado - ou o senhor acha que viajei dois mil quilômetros até essa área deserta somente para termos uma conversa senhor Spencer? – disse Paulo, ainda segurava a caixa na mão com o que tinha de mais importante na sua vida.
                -Sabe que não posso dizer de onde as carcaças vêm – o homem parecia mastigar as palavras -  mister Paulo, o senhor é um homem muito rico e famoso, nem mesmo para o senhor posso dar essa garantia, tenho um respeito muito grande pelo seu pai, ele foi um herói de guerra, lutando contra todos aqueles androides imbecis, mas as regras são claras, não posso dizer a origem de uma carcaça alfa, elas são raras, depois da guerras só sobraram as porcarias, de carcaça beta é muita sucata, essas não servem para nada, prestam apenas para falsificações – ele cuspiu uma gosma branca – por isso veio até mim, tem medo de uma falsificação? Sabe que admiro o seu pai, sabe que ele me tirou daquele buraco radioativo – disse o mecânico. Sentou em um banco imundo e olhou para a montanha de sucata de androide, Paulo sabia que era arriscado o que estava pedindo a Spencer, porém no mercado negro ele era o único capaz de fazer a fusão – posso construir mas a fusão não pode ser  controlada, mesmo numa carcaça alfa, neste mundo que sobrou duas carcaça dessas deixam o homem rico, o senhor sabe que vai ter que pagar muito bem pelo androide pronto? Não posso fazer nada por amizade, não aqui nesse inferno.
                -Sei senhor Spencer.
                Paulo e os filhos tinham viajado dois mil quilômetros até a planície sul no deserto novo onde fica a casa de Spencer, fortemente guardada por androides recondicionados. Seu Pai o general David salvou Spencer e contou a historia do gênio deformado de como ele era capaz de fusionar as memórias a uma carcaça e fazer a alteração necessária para trazer de volta uma pessoa da morte.
                A lenda é que só em uns poucos lugares existia uma carcaça alfa, no mundo habitável, Spencer era considerado um criminoso. Após a guerra os criminosos foram banidos para fora do mundo civilizado, Spencer, considerado um gênio por muitos era odiado por políticos. Paulo tinha conexões políticas e beneficio de uma vida confortável, por isso um certo medo em estar frente a frente com Spencer.
                -Sei dos riscos senhor Spencer e agradeço o fato de me receber, pagarei muito bem pelo seu trabalho – disse Paulo e apertou o lábio direito – eu e meus filhos vivemos dessa esperança e gastamos tudo o que tínhamos nessa ideia, a minha esperança é tê-la de volta, o senhor é nossa única possibilidade.
                -Vai ser caro – Spencer balançou o dedo e continuou sem olhar nos olhos de Paulo – mesmo para o filho do general, tenho um modelo alfa – Spencer ligou o computador – sim senhor esse vai servir, posso fazer a remodelação molecular e deixar esse modelo com a aparência de uma bela mulher de trinta anos e ele vai durar muito tempo, uns vinte a vinte cinco anos, talvez trinta – ele fechou o arquivo vermelho -  posso trazer a sua mulher de volta com essas memórias senhor Paulo, porém terá que me levar de volta para civilização esse é o preço, uma casa, roupas limpas e uma mulher de verdade – sorriu Spencer com dentes podres a mostra.
                -Não sei se posso – disse Paulo.
                Spencer fixou os olhos carcomidos em Paulo.
                -O senhor vai conseguir, sei que vai – disse Spencer.
                Paulo olhou para os filhos Fernando e Marcos, dois adolescentes, um de dezessete e outro de quinze, eles não suportavam mais a ausência.
                -Ok– disse e empurrou a caixa com as memórias da esposa para o mecânico.
                O velho pegou a caixa e fez um gesto com os ombros de desdém.
                -Ela será bem próxima da outra, porém terá uma intervenção da carcaça, entende isso?
                -Sei disso, não sou um leigo em genética, nem em robótica.
                “Não, não é, é só um idiota com dinheiro que me procura para fazer o que não sabe fazer sozinho, sei que me despreza, me vê como uma aberração” pensou Spencer.
                -Nunca fiz isso para uma família, vai ser divertido, antes quem me contratava era o próprio, você sabe? O cara  que estava prestes a morrer, deve ter amado muito essa mulher não é mesmo senhor Paulo? – o sorriso de Spencer era negro, uma crosta de dentes amarelos e pretos, Paulo tinha repugnância.
                -Sem dúvida – Paulo olhou para os filhos novamente – prometi a eles que a traria de volta.
                -Posso saber como ela morreu? – perguntou Spencer olhando o monitor do computador.
                -Ela não morreu, tinha câncer, ela morreria em dois anos, nós decidimos em casa, ela concordou em retirar a sua memória em vida assim poderíamos ter o maior numero de memórias....
                -Meu Deus, retiraram a memória dela em vida, deixaram de viver com uma pessoa real por dois anos para viver com uma aberração – ele cuspiu no chão, Spencer parecia que desprezava tudo aquilo. – E eu que sou o monstro.
                -Quando termina? – disse Paulo sem querer alongar muito a conversa.
                -Três semanas, quatro para o trabalho ficar perfeito.
                O tempo passou rápido, Paulo voltou a sua rotina junto aos prefeitos, além de administrar a sua fábrica de reciclagem de silício, tinha um bom dinheiro, o tratamento do câncer da esposa foi caro e a integração da memória dividiria a sua fortuna ao meio. Spencer era um rato, assim que chegasse a cidade mandaria policiais locais prendê-lo, não podia se arriscar a deixar Spencer solto dentro da sua cidade.
                    Quando o general lhe falou de Spencer  foi  2112, agora Paulo queria se candidatar a prefeitura e queria a mulher de volta, logo ele seria lei majoritária na sua cidade e não poderia ter Spencer por perto.
O comunicador tocou, era Spencer.
                -Sr. Paulo, tive vontade de experimentar, a mulher ficou bonita, eu gosto muito de mulher, não posso mais procriar, a radiação matou as minhas bolas, venha dar uma olhada.
                -Já está pronto? – perguntou pelo comunicador para o mecânico.
                -Ah pelo jeito seremos vizinhos.
                -É mesmo – Paulo sentiu um gosto ruim na boca.
                A viagem para  o deserto foi turbulenta, mesmo com a escolta do exército, Paulo teve pesadelos com Spencer e sonhos com a mulher, os filhos conversavam animadamente no fundo da 8010, modelo de nave a jato, caro que só herdeiros da guerra tinham. Quando chegou ao local Spencer tinha um sorriso largo e feio, já se considerava íntimo de Paulo o que provocava uma repugnância.
                 -Eu mesmo chequei se a coisa dela estava gostosa – gargalhou Spencer – brincadeira, eu sou profissional e além do mais você está devolvendo a minha vida de volta, quando foi ativada já vestia um vestido azul escuro e tinha os cabelos presos no alto da cabeça. A surpresa chocou e emocionou Paulo, os filhos choraram, ele ia mostrar ao congresso que essa era uma possibilidade, tinham que reativar o projeto do androide alfa e a preservação do ente querido deveria ser feita a qualquer custo.
                    -Obrigado senhor Spencer – disse Paulo, teve pena do homem, não viveria muito tempo na cidade, o exército tinha ordens de executá-lo em seis semanas.
                    A vida voltou ao normal, o aparecimento da mulher em público dobrou a popularidade de Paulo, como ele pensava a sua mulher e o projeto androide alfa eram as duas plataformas vencedoras para a sua  eleição, em breve teria o poder total sobre a cidade.
                    Quatro semanas se passaram, nem sinal da mudança de Spencer para a cidade, os espiões  do  governo, agentes secretos encarregados de vigiar Spencer, disseram que ele estava viajando pela costa azul, vendo o mar, “menos mal, vai aproveitar a vida um pouco”.
Sua bela mulher estava de pé, ele sentiu desejo e se aproximou dela.
                     Amanda tinha feito ovos mexidos no café, seus olhos tinham um brilho incrível, que trabalho maravilhoso fez Spencer, pensou Paulo, os filhos corriam pelo jardim. A androide era a mulher, não havia dúvidas a voz a fala a lembrança, tudo isso trazia seus sonho de volta o que seria o homem sem a sua mulher?
                     Paulo deu a ordem para execução de Spencer. Um ou dois dias depois de assinada a ordem uma coisa estranha aconteceu, Paulo encontrou sobre a mesa da cozinha uma faca com sangue, a androide segurava nas mão um crânio humano.
                -AH meu Deus! Meu filho Fernando, o que  fiz?
                Paulo chorou.
                Spencer entrou pela porta dos fundos, dois androides seguravam armas e Amanda ficou ao lado de Spencer, depois de dar um beijo na boca do anão pustulento o que surpreendeu Paulo.
                -Eu sou Deus – disse Spencer – eu a criei.
                -Bandido onde esta Marcos? – disse desesperado Paulo.
                - Seu filho esta bem, é um salvo conduto – Spencer apontou para Amanda – teremos que dividir a androide – ele passou os lábios na boca dela – ela ficou demais – Spencer gargalhava.
                Paulo não tinha noção do inferno que estava por vir.
JJ DE SOUZA
Enviado por JJ DE SOUZA em 13/02/2014
Reeditado em 13/02/2014
Código do texto: T4689867
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