O Jogo da Amarelinha

O professor lançou apenas um rápido olhar para a manchete em letras garrafais na primeira página do jornal.

- A Crimeia... - divagou. - Eis aí um lugar que me traz boas recordações.

E virando-se para os membros do gabinete, explicou:

- Talvez não saibam, mas a minha família é originária da Crimeia.

- Woland não é um sobrenome escocês - ponderou o Lorde Presidente do Conselho.

- Assim como Battenberg é um sobrenome alemão - atalhou o primeiro-ministro. - Mas sobre o assunto da nossa reunião matutina, professor...?

- Perdoem a digressão - disse o professor. E em tom de mofa:

- Os senhores acreditariam se eu lhes dissesse que um escocês construiu uma máquina do tempo e voltou ao Pleistoceno?

Os quatro homens entreolharam-se confusos, até que o Secretário de Relações Exteriores abriu um sorriso e disse:

- Não! E H.G. Wells é inglês, professor.

Woland voltou-se então para o primeiro-ministro e também sorrindo, respondeu:

- Nesse caso, não há porque acreditar na veracidade desta notícia.

- Desculpe, mas não é assim tão simples, professor - retrucou secamente o primeiro-ministro. - Os nazistas afirmam que sua descoberta comprova que a tal raça ariana de que tanto falam dominou o mundo, centenas de milhares de anos atrás. Pode ser uma deslavada mentira, mas agora surgiram com uma prova material, a qual parece ter sido abalizada por proeminentes figuras da arqueologia internacional. Do ponto de vista da propaganda, foi uma manobra bastante eficiente.

- As tais figuras proeminentes são todas - com uma única exceção - oriundas de países hoje controlados pelo Eixo - minimizou o professor. - E a única exceção, daquele americano cujo nome não recordo agora, é um conhecido simpatizante dos nazistas. Portanto, não creio que seria difícil desacreditar essa descoberta estapafúrdia. Mas, acho que podemos fazer ainda melhor.

- Melhor... como? - Indagou o primeiro-ministro com suspeição.

- Segundo os nazistas, - respondeu o professor - o objeto encontrado possui inscrições que estariam sendo decifradas por uma equipe de linguistas de alto nível. As inscrições lembram ideogramas chineses, mas não há registro de chineses na Crimeia, muito menos há 500 mil anos...

- E as inscrições comprovariam que os ideogramas foram uma invenção dos arianos, depois repassada aos chineses etc., etc., - complementou o primeiro-ministro. - Sim, eu li a patacoada toda. Mas como comprovar que a história é falsa?

O professor voltou-se novamente para os outros membros do gabinete:

- Os nazistas divulgaram uma única foto do objeto, a qual nem mesmo é muito nítida. Mas algum dos cavalheiros viu uma foto, uma ilustração que seja, das tais inscrições?

A resposta foi um "não" uníssono.

- Por quê os nazistas não publicariam algo tão importante para dar substância à sua teoria de supremacia racial? - Questionou o professor.

- Por quê há nela alguma coisa que poderia desmontar o castelo de cartas? - Retrucou o primeiro-ministro com um sorriso sardônico.

- Precisamente - respondeu o professor.

O primeiro-ministro encarou o Secretário de Relações Exteriores e disse:

- Eden, creio que essa tarefa é talhada para você.

O Secretário ergueu os sobrolhos, com ar confuso.

- O que espera exatamente que eu faça, senhor primeiro-ministro?

- Convide os nazistas para sair do canto escuro, meu caro - disse o primeiro-ministro, batendo a cinza do charuto no cinzeiro. - Se não tem nada a temer, virão para a luz.

- Pelo progresso da ciência! - Acrescentou o professor.

- Que seja! - Disse o primeiro-ministro, repondo o charuto no canto da boca.

[03-03-2014]