DE VOLTA AO NOSSO LAR

O sonho é a força mental capaz de trazer para a existência a realidade que ainda não existe. Os sentimentos positivos funcionam como ímãs espirituais que atraem o concurso favorável do Universo para que o sonho torne-se realidade. A epifania da existência pode ser a brisa que afaga os desejos, como pode ser também o tufão que devasta as esperanças. O planeta Terra é um vale de lágrimas, algumas de alegria, outras de tristeza, dependendo da qualidade da energia que o espírito irradia.

Uma semente doentia não produz uma árvore sadia, tampouco uma criança corrompida gera um adulto que adicione valor às instituições sociais. Uma sociedade livre, justa e solidária surge da liberdade, da justiça e da solidariedade aprendidas na infância, quer no seio da família, quer na sala de aula.

A vida representa o amor compartilhado, o mundo é a partilha do prazer escasso. A vida acolhe e cuida, o mundo tolhe e manipula. A vida é o verso da Natureza, o mundo é o seu anverso.

A realidade deve ser vista com os olhos da razão, com os pés no chão, mas precisa também ser sentida pelo coração, numa atitude de aceitação que alimenta a esperança de um mundo melhor para a posteridade. Pode ser tudo, como pode também ser nada. É tudo quando está plena de realização, é nada quando está vazia de emoção. A vida é a realização da emoção sonhada, pretendida. Existe amor no conjunto multifário da realidade, no barro que o oleiro transformou em vaso, porque o vaso é belo, e no diamante bruto que o lapidário transformou em brilhante, porque o brilhante é belo. Amar a vida é extrair da realidade cognoscível a beleza perceptível pelos olhos invisíveis do espírito.

O amor é o sentimento supremo, expressa a concretude e a abstração divinas que penetram pelos poros da alma e atingem o âmago do homem, o seu pomar interior, onde cultiva e colhe, dia a dia, a inspiração para a sua existência. O amor é uma realidade interior, porque é a harmonia traduzida em sentimento.

Em tudo o que cria para ser feliz, o homem deve atentar para o amor, porque sem amor a vida não faz sentido. O amor é o principal componente da criatividade, posto que Deus, o criador do tempo, do espaço e da vida, é puro, infinito e incondicional amor. O amor encurta a distância entre os corações afastados e soa em uníssono com o coral das criaturas angelicais.

A vida é um momento carente de explicação, mas repleto de mistérios que a tornam fascinante. Completa-se com a morte, mas não se extingue com ela. O amor exalta o prazer e suporta a dor. Às vezes, nasce do espanto e, às vezes, do acalanto. Observa a diversidade filosófica, mas segue na contramão da intolerância, porque a paz social exige a convivência indulgente das diferentes crenças e opiniões. Tem todas as cores do espectro, mas se apresenta também sem nenhuma delas. Mostra o verde da esperança, o azul da serenidade e o vermelho da paixão, mas revela também toda a solidão incolor do mundo quando não é correspondido. O amor nasce da união, jamais da solidão, e procura na dualidade da existência a unicidade da sabedoria, tirando dos bons e maus momentos da vida as alegrias merecidas e os ensinamentos necessários para a conquista da felicidade, com a firme convicção de que o mal não existe, sua presença é somente a ausência do bem, assim como a escuridão também não existe, é apenas a falta da luz. Seja qual for a situação, sempre há espaço para a expressão do amor.

Anselmo estava algente como um cubo de gelo, sem encontrar em algum recanto da alma a esperança candente de ver a vida sorrir para ele com sinceridade, sem máscara. Já viajara por lugares populosos, mas tendo sempre na solidão a companheira inseparável. Ao longo da vida, os sonhos foram muitos e variados, mas nenhum dos sonhos vividos no passado o remetera a um futuro melhor. Tudo era silêncio. No fundo da alma, não queria aceitar a ideia de que estivesse exânime para a vida social. O dia em que Anselmo conheceu o poder da fé foi o melhor de todos os seus dias na Terra. Nesse dia, caiu na realidade, e descobriu que não poderia contemplar a beleza natural, nem cultivar a beleza espiritual, se não guardasse e aprimorasse o amor no espaço insondável do coração. Isso ocorreu durante uma missa dominical, quando sentiu a tangibilidade de Deus enquanto orava de joelhos, o que fez com que as lágrimas escorressem pelo rosto pálido. Se outrora eram de tristeza, nesse domingo foram de alegria. A névoa de gelo que envolvia o seu espírito desapareceu, permitindo que as estrelas voltassem a cintilar no céu da sua vida. Anselmo é forte na fé que o fortalece. A sua memória jamais ignorou a chuva ácida trazida pelos ventos contrários, pelas adversidades que enfrentou na vida. Em razão da fé esclarecida, Anselmo desenvolveu o hábito de rezar diariamente em agradecimento pelos ventos de esperança que lhe trouxeram a tão esperada paz de espírito.

Quando era menino, Anselmo acreditava que poderia mudar o mundo quando crescesse, e que receberia gratidão em resposta à sua generosidade. No entanto, ao longo dos anos, muitas vezes foi tratado com gentileza pela frente e zombaria pelas costas. Quem lhe jurava lealdade num dia, tramava a sua queda no dia seguinte. Tudo em que acreditou, com o passar do tempo, revelou-se pura ilusão, expectativa frustrada. Aprendeu, às duras penas, que é melhor encarar a falsidade com clareza do que tentar se convencer de uma sinceridade imaginária. Sonhou durante muito tempo, tropeçou pelos caminhos acidentados, foi ao chão, mas sempre se levantou e seguiu em frente. Em vez de tentar controlar os outros, como fazia no passado, Anselmo passou a procurar o poder sobre si mesmo, sobre os pensamentos e sentimentos. Enfim, acendeu no coração a fogueira coruscante da fé, e nunca mais sentiu o frio paralisante da incredulidade. Depois de ter navegado por um mar de incertezas, criou raízes no espírito de Anselmo a certeza de que a vida continua após a morte.

Era noite de uma segunda-feira de inverno. No frio daquela noite, o vento fustigava a sua pele. A chuva havia cessado, e as nuvens cinzentas evadiram-se do céu, dando lugar à Lua e às estrelas. O luar escorria pelas rochas escorregadias e acalmava as plantas com a sua serenidade. Anselmo ficou quieto, em sintonia com o silêncio soberano da noite fria. O sono veio dessa tranquilidade. Adormeceu enrolado no edredom que cobria a cama. O dia seguinte amanhecera ensolarado, espantando o frio cortante que o afligira durante a noite. A névoa desfez-se, e o Sol brilhava no céu aberto. “Senhor, obrigado por mais um dia!”, exclamou no seu íntimo ao despertar, enquanto apreciava o voo das andorinhas pela janela do quarto. Abraçou o travesseiro, querendo dormir outra vez, mas o sono não veio. O sono tinha ido embora, deixando apenas a lembrança do que havia sonhado. Era bom estar ali, em paz consigo mesmo. Olhando para o azul do céu, recordou o sonho que tivera naquela noite gélida. Neste sonho, Anselmo estava atravessando um rio num barco a remo, quando se deparou com uma mulher vestindo uma túnica branca e reluzente. Atrás dela havia três cavaleiros montados em cavalos de pelo negro, dispostos um ao lado do outro, cada qual com uma espada embainhada na cintura. Estavam todos postados sobre a água lamacenta do rio. A mulher louvou o nome de Deus, ao que se seguiu o estrondo de um trovão, que o ensurdeceu por um instante. Depois disso, ela disse-lhe em tom suave: “Em nome do Pai, eu o declaro guerreiro de Deus”. Em seguida, os cavaleiros empunharam as espadas e as apontaram na direção de Anselmo, que viu sair delas um jorro de luz dourada que o envolveu por inteiro. Notou que os cavaleiros sorriam, e os seus olhos eram intensamente vermelhos. Pareciam rubis com lapidação brilhante. Anselmo demonstrou gratidão pela honra de integrar o exército divino juntando as mãos na altura do peito. Assim que terminou o gesto de agradecimento, despertou do sono.

Levantou-se da cama e foi até a sala. Sentou-se no sofá e, introspectivo, refletia sobre o sonho inusitado. “Será que eu fui eleito por Deus?”, indagou-se em silêncio. Nunca antes acreditara em sonhos, mas aquele foi muito real. Afora esse, não havia experimentado até então outro sonho no qual tivesse tanta consciência de si mesmo, como se estivesse acordado. Ao anoitecer, saiu de casa para dar uma caminhada. Tinha andado já uns dois quilômetros quando, repentinamente, deparou-se com um cão que avançava em sua direção, mas, em vez de atacá-lo, o cão parou diante dele e ficou latindo, como se quisesse lhe dizer algo muito importante. Em seguida, o cão deu-lhe as costas, afastou-se alguns metros, virou-se para ele e voltou a latir alto. Anselmo entendeu que o cão queria que ele o acompanhasse. Foi isso que decidiu fazer. Seguiu o cão até a beira do rio. Nesse momento, fitando o céu estrelado, lembrou-se do sonho. Tudo acontecera naquele rio de águas turvas. O cão abocanhou uma folha de papel, e a levou para perto dele. Deixou-a sobre a grama, e correu em direção ao matagal, perdendo-se de vista. Anselmo agachou-se, pegou a folha de papel, dobrou-a e colocou-a no bolso do casaco de couro. Naquela escuridão, sem uma lanterna, não conseguiria ler o que estava escrito. Retornou para casa apressado, porque estava ansioso para saber o que dizia aquela carta. Durante o trajeto de volta, tentou lembrar-se do que fizera na parte da tarde daquele dia, mas nada lhe ocorria na memória. Era como se não tivesse existido. Preocupado com o horário, pediu a um pescador, que vinha em sentido contrário, que lhe prestasse essa informação. No entanto, não foi atendido. O pescador passou por ele sem lhe dar atenção. “Que sujeito mal-educado!”, queixou-se indignado.

Quando atravessou o último cruzamento da rua onde residia, percebeu que havia uma ambulância do Corpo de Bombeiros Militar estacionada na frente da casa em que morava. Acelerou os passos tentando alcançá-la, mas o veículo arrancou antes que chegasse a tempo de se informar sobre aquela ocorrência. Sem ter com quem obter alguma informação, já que ninguém lhe dava ouvidos, correu para dentro de casa. Não foi necessário abrir a porta. Sem que percebesse, ele a atravessou. Sentou-se no sofá da sala de estar e ficou pensativo, tentando entender aquela situação estranha, inesperada e sem explicação aparente. O que teria acontecido na tarde daquele dia? Enquanto tentava arrancar da memória a lembrança do que fizera no período vespertino, pegou o bilhete, desdobrou-o e pôs-se a ler o recado. A mensagem manuscrita dizia isto: “Seu corpo físico faleceu durante a tarde de hoje, enquanto você dormia. Seja bem-vindo ao mundo espiritual”. Logo abaixo do texto constava o nome do seu falecido pai, que havia se afogado nas águas do rio, num acidente que sofrera durante uma pescaria. Hesitava entre acreditar e duvidar. Nesse instante de perplexidade paralisante, lembrou-se de que o cão que o conduzira até o rio era idêntico ao que pertencia ao seu falecido pai. O cão também tinha morrido afogado naquela trágica pescaria. Todo o seu pensamento estava focado em encontrar uma explicação para o estado inusitado em que se encontrava naquele momento. Enquanto refletia sobre o que poderia ter acontecido com ele, Anselmo sentiu alguém segurar a sua mão direita. Sentiu um arrepio. Em seguida, olhou para o lado e percebeu que era a mulher com quem havia sonhado na noite anterior. Ela disse-lhe mansamente: “Eu sou a sua mãe. Desencarnei antes que você tivesse completado um ano de idade, acometida por uma doença grave. Estive ao seu lado durante toda a sua vida e agora vim buscá-lo. O seu pai não pôde vir, mas está ansioso para revê-lo. De hoje em diante, você viverá a verdadeira vida. O sonho acabou. Vamos, meu filho, de volta ao nosso lar”.

Carlos Henrique Pereira Maia
Enviado por Carlos Henrique Pereira Maia em 04/06/2014
Reeditado em 23/07/2017
Código do texto: T4831743
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