Meu nome é dor.

-Precisa de mais café?

Solinus anuiu com um movimento cansado de ombros e seu assistente saiu, deixando a porta bater com força atrás de si.

-Você odeia quando ele faz isso tanto quanto eu?

A resposta veio em forma de chiado da placa de circuitos ligada a um pequeno reator a sua frente.

-Eu sei que sim- concordou o Dr. Harker com ar sorridente.

Há dois dias atrás a rede neural que vinha desenvolvendo a anos começou a finalmente responder, o que o deixou animado ao ponto de não precisar dos remédios para dormir. Helena não gostava de remédios, ele lembrava bem.

O assistente, retornou segurando duas xicaras fumegantes com as pontas dos dedos.

-Lucas, acho que estamos prontos - disse Harker, de forma otimista, ouvindo o chiado da rede neural ficar mais alto.

-Tem certeza?- largou as xicaras e levou o fino dedo indicador à boca.

-Você não está ouvindo? As sinapses nunca estiveram tão ativas, eu conferi o algoritmo algumas vezes na ultima meia hora e acho que não teremos outra chance- disse, Solinus com ar sabido.

-Ok, você é o gênio, eu só trago o café- disse o rapaz raquítico em função de uma condição hormonal rara.

Ambos moveram-se pelo laboratório, precisos como as engrenagens de um relógio. Ligaram geradores, alinharam placas, digitaram longas linhas de código em uma série de estações de trabalho conforme a sequencia ensaiada centenas de vezes para a chegada daquele dia. Sabiam que, funcionando ou não, aquela seria a ultima oportunidade de ativação da rede neural no cérebro positrônico do ciborgue que Solinus levara 30 anos para concluir.

-Você pode ouvi-la? Ela está feliz!- Solinus concluiu com ar sonhador.

-Claro, claro, Doutor- concordou Lucas, mesmo sem concordar. Tudo o que podia ouvir eram chiados indistintos vindo de uma placa que ele não fazia ideia de como funcionava sem uma fonte de energia. Achava o doutor um pouco maluco mas não duvidava de sua genialidade ou de sua capacidade de lhe pagar um salário muito acima do que receberia analisando feses de macaco.

-Estamos prontos- exclamou Solinus, com a mão sobre a matriz energética que carregaria completamente o cérebro positrônico, ativando-o em definitivo.

Com um beijo na aliança da mão direita, fechou os olhos, respirou fundo e ativou o sistema principal.

Uma explosão eletromagnética já prevista foi o primeiro sinal de que a energia fluiria bem, uma segunda explosão não. Solinus se moveu quando uma terceira explosão irrompeu sacodindo seus instrumentos e um segundo depois as trevas engoliram o laboratório.

Um grito de horror sustou o breve silencio e Solinus procurou por Lucas, tateando seu caminho na escuridão. Com a mente em turbilhão, percebeu que o grito aterrorizante não poderia vir do assistente.

-Doutor, o que está acontecendo?- berrou o assistente, tentando se fazer ouvir acima do lamento desesperado.

-As luzes de emergência, Lucas, acenda as luzes!- ordenou nervosamente.

Quando as trevas se dissiparam, a dupla sobressaltada de cientistas, descobriu a origem do infernal som.

O ciborgue que se contorcia em espasmos violentos ao lado da mesa de onde havia caído, no chão frio do laboratório.

-Meu De... - foi tudo o que conseguiu dizer o assistente.

-Hoje não, Lucas- respondeu Harker, animadamente –Ela esta viva, eu a trouxe de volta!

-O que?- disse num combinado de descrença e terror.

-Minha Helena, garoto!- falava enquanto caminhava confiante na direção da aberração de metal, e tecido hidratado.

Os gritos terrivelmente altos de Helena continuavam a preencher o laboratório, mas o cientista não pareceu se importar –você está viva, eu realmente consegui.

Solinus a abraçou com força, ignorando seus espasmos.

-Por que ela não para de gritar?- perguntou Lucas, com a respiração descompassada após o terror inicial.

-Ela esta sentindo dor, não é incrível?- Solinus sorria abertamente apesar de não estar satisfeito em dividir aquele momento com seu assistente nanico.

-Faça parar!- suplicou, Lucas, imóvel a não ser por suas mãos e pernas que teimavam em continuar tremendo.

Solinus ignorava a presença do rapaz -Helena, fique calma, você vai ficar bem.

Os gritos se transformaram em um sussurro suplicante quando os espamos começaram a diminuir.

–por favor... queimando- balbuciou a abominação de ferro e carne, sem controle sobre seus movimentos.

-Doutor Harker, isso não pode estar certo, você tem que desliga-la!- pediu Lucas, num murmúrio amedrontado.

-Não podemos desliga-la, seu ignorante!- rosnou o cientista em retorno –Ela está viva!- reiterou por entre os dentes.

Aproximando-se com cautela, Lucas percebeu no olhar cego da criatura que Solinus dizia a verdade. Viu desespero, confusão, medo e dor nas órbitas pálidas e cheias de muco.

–Então, faça parar!

-Eu não posso, ela vai se adaptar- Harker respondia por instinto, sua atenção estava voltada para a representação toscamente fiel do rosto de sua amada Helena, morta em um incêndio 30 anos atrás.

-Mas- Lucas engoliu seco –isso não é vida, é... Horrível- ele apontou para o monitor que mostrava, na atividade cerebral do ciborgue, picos de dor lancinante, inexplicavelmente interpretados pelo poderoso cérebro artificial.

Solinus virou-se para seu assistente, com lágrimas correndo por sua feição transtornada –O que você acha que está fazendo?

-Você precisa desliga-la- repetiu, percebendo só naquele momento que segurava um bisturi elétrico na altura dos olhos.

-Você quer mata-la?- disse Solinus em um meio sorriso histérico –você quer matar a minha esposa?

Lucas temeu por sua segurança pela primeira vez. A palma húmida de suor mal sentia o aperto na lamina, a mente exausta não conseguia cessar os tremores e a baixa estatura sempre lhe dava a sensação de estar encurralado.

-Ela não está se adaptando- disse Lucas, percebendo com tristeza que sua voz soava como o ganido de um animal pequeno –essa coisa está sentindo tanta dor que as sinapses foram desativadas, só por isso ela parou de berrar e se contorcer.

Lucas apontou para o monitor sem precisar olha-lo diretamente –os gráficos de atividade foram extrapolados, ela esta sentindo uma forma de dor que um cérebro humano se quer poderia interpretar, menos ainda, suportar.

Os gemidos penosos do ciborgue retornaram de forma angustiante e algumas vezes podiam-se ouvir frases como “por favor”, “queimando” e “não”.

Solinus observou por um longo momento o peito nu e descorado de sua Helena subir e descer em num descompasso frenético. Olhou para o monitor e de volta para Lucas –Eu não posso- bufou o homem, claramente perturbado.

Lucas, desconfiando que a sanidade aos poucos retornava a mente do cientista, resolveu tentar uma nova abordagem –Doutor, pense no que Helena gostaria- e esse foi seu erro.

-O que, Helena...- respirou fundo -...gostaria?- Harker socou furiosamente o tampo da mesa que caiu com um estrondo metálico perturbando o ciborgue, que gritou alto –O que ela gostaria?- repetiu, como se para encontrar sentido na pergunta e sem qualquer tipo de aviso, avançou contra o assistente.

Gemidos ofegantes, objetos se quebrando, grunhidos inumanos e por fim o cheiro pungente de sangue invadiu as narinas do ciborgue.

O silencio perturbador que se formou, levou muitas horas para ser quebrado.

Seus olhos abriram-se rapidamente, ajustando-se a pouca luz do ambiente, focados no monitor que mostrava um gráfico estável.

Experimentou mover-se, pois a dor havia diminuído. Tentou falar, mas a voz era rouca e modulada. Ouviu seu próprio coração bater e se pudesse choraria, mas calmamente compreendeu que não seria capaz.

Rolou a cabeça no chão gelado e viu uma criatura deformada, desprovida de cabelos e com olhos opacos encarando-a de volta, respirou fundo compreendendo a função de seus pulmões e percebeu finalmente que via a si mesma no reflexo distorcido de uma chapa de ferro tombada ao seu lado.

Sentiu dessa vez, uma dor morna e pesada, ao tocar o próprio corpo com as palmas das mãos.

-Helena...- sussurrou uma voz familiar.

A Ciborgue virou-se então para o velho moribundo, deitado sobre uma poça escura de sangue, ao lado de um cadáver pequeno e estranho, disposto de forma não natural.

Ela rastejou na direção do homem, depositando toda a força que podia nos novos braços.

Reconheceu seu semblante, lembrando de uma versão jovem e sonhadora daquela decrépita criatura, que em uma outra vida, havia prometido ama-la para sempre.

Sentiu novamente a estranha dor lhe pesar no peito.

-Solinus- ela disse, mesmo sem compreender porque dizia.

-Sim...- ele respondeu, inexpressivo –Eu sinto muito.

Ela agarrou-se com força as pernas de Solinus e puxou todo o peso do corpo para cima, escorregando com facilidade pela poça pegajosa de sangue, para finalmente apoiar a cabeça no peito do homem. “Eu sinto muito” ele continuava dizendo, mas ela não pareceu se importar.

Aconchegou-se como lhe parecia natural de se fazer e sentiu a caricia fria do homem marchar-lhe de vermelho vivo, os pálidos e ressecados lábios.

Fechou os olhos até ouvir, com estranha satisfação, a ultima batida do coração do homem, que por amar de mais, a condenou a vida.

Então a dor desapareceu.