Aviso: esse texto é um "one shot" posterior à O Legado de Maltz.

ILÁRGIA

Emergindo do espaço profundo me choquei contra a escotilha que protegia a entrada da pequena cidade administrativa da lua exilada Ilárgia. Era chamada de lua exilada devido a força da gravidade da gigante vermelha Stele forçar sua trajetória elíptica a uma distância tão grande de Nakvo, que na prática o satélite não passava de um ponto no céu de Nakvo, o planeta mais próximo. Bati contra a escotilha com os punhos fechados, era um náufrago espacial, com o bio-traje me lembrando que o meu estoque de oxigênio estava atingindo níveis críticos. Olhei para a câmera, seria possível que nem mesmo um maldito androide teria me detectado aqui?
Tomei uma certa distância e fechei os olhos, pensando em como poderia arrebentar aquela escotilha e penetrar na base sem causar nenhum dano irreversível. Eu tinha uma granada gravitacional, mas disparar um microburaco negro ali poderia causar um estrago maior do que eu iria querer, mas no final das contas se eu fosse morrer sem ar de qualquer jeito, que diferença faria?
Peguei a granada que estava presa no cinturão do bio-traje. As luzes das estrelas eram tênues demais para iluminar a paisagem, envolta em um lusco-fusco que tornava o silêncio do espaço mais pesado ainda. Então um clarão me cegou por um instante, e quando eu voltei a abrir os olhos a escotilha estava aberta, e uma sala branca de plástico e metal me convidava para a vida. Dei um salto e cruzei a distância que me separava da base num átimo, na atmosfera leve da lua exilada.
Dentro da sala de descompressão, guardei a granada no cinto e acionei o controle de descompressão. A escotilha atrás de mim se fechou e um bipe intermitente se iniciou, após cerca de um minuto a escotilha à minha frente se abriu. A sala branca à minha frente estava com sangue por todos os lados, pedaços de carne espalhados no recinto. A base lunar estava inundada pelo mais profundo silêncio. Senti um frio na barriga e passei a mão no coldre vazio preso ao meu cinto. Do fogo para a frigideira, pensei, avaliando as alternativas. Havia um corredor com indicação ala sul e outro indicando ala oeste. Peguei a direção sul, ao atravessei a fiquei imaginando o que poderia ter causado aquele estrago. Que maldito ser aqueles mineradores estúpidos despertaram em suas escavações?
A escotilha se abriu revelando um longo corredor onde novamente restos humanos e sangue espalhado manchavam a pintura branca. Era uma bagunça, não era possível dizer o que acontera ali, ao olhar aqueles pedaços humanos. Sangue nas paredes como se algum Van Gogh maluco houvesse resolvido pintar painéis em cinquenta tons de sangue. Eu acabara de fugir de uma nave comprometida por risco biológico, e agora parece que meu inferno continuaria….
Estava desarmado e, perdido naquela base com sei-lá-o-quê. Alternativas? Precisava dar o fora dali o quanto antes, mas como? As cidades administrativas não costumam ter naves ou módulos de escape, como as instalações militares, eu precisava conseguir me manter vivo até a chegada do próximo cargueiro, o que poderia demorar semanas ou meses. Para isso eu precisaria descobrir o que estava acontecendo e buscar um esconderijo seguro, nem que fosse preciso me enfiar em uma câmara de crio animação. Zamex, o computador de bordo do bio-traje apareceu à minha frente, ele estava tentando se conectar com o computador da nave desde que chegamos, e finalmente conseguiu. A singularidade que atacara esta nave estava na região sul da nave, se encaminhando em minha direção desde que eu pusera os pés no interior da base, informou. De todos os 559 moradores da cidade administrativa de Ilárgia, apenas 32 se mantinham vivos, presos dentro da caixa-forte do Banco Satúrnia, localizado na ala leste.
— Sugira um caminho — ordenei.
O computador de bordo hesitou, então desapareceu no ar e uma seta indicando o caminho apareceu na tela. Comecei a correr seguindo o corredor até o final, quando a escotilha se abriu, estava em uma ampla sala octogonal, para onde diversos corredores convergiam. No centro da peça uma grande tela mostrava um mapa com todos os túneis que serpenteavam pela cidade. A tela estava encrustada de sangue ressequido. Inferno, a cidade toda se tornara em um maldito abatedouro! O bio-traje filtrava os odores nauseabundos automaticamente, mas o ícone de carniça não saía do canto de minha tela. As setas indicaram o terceiro corredor à direita. Passei por uns corpos e após doze metros havia uma porta lateral. Acionei os controles e uma plataforma da estação de aero-bondes estava à minha frente. Os aero-bondes são pequenos vagões que correm por trilhas de suspensão, um software controla toda a movimentação, ao usuário basta entrar e apertar um dos destinos. Atravessei o cenário de carnificina e tirei o cadáver de uma jovem que apodrecia em um dos bancos do vagão com um grande número 23 pintado na lataria externa. Limpei o sangue dos controles e hesitei ante as opções. O computador de bordo do traje veio em meu socorro: acione o botão “Praça das Orquídeas”.
Quando eu acionei o botão pude ouvir um som distante, cortando o silêncio como uma navalha em brasa. Um rugir de fera que gelou meus ossos. O computador, sentindo as alterações em minha pressão sanguínea, informou que a singularidade estava se aproximando. Singularidade? O quê é isso? Antes que pudesse descobrir a porta do aero-bonde se fechou e o vagão 23 se colocou suavemente em movimento, acelerando imperceptivelmente à velocidade do som. Poucos segundos depois parou e a porta se abriu em outra maldita estação de cadáveres. Caminhei até a porta que se abriu descortinando a praça das orquídeas ensanguentadas. No alto da praça um vidro se estendia formando uma abóbada que possibilitava observar as estrelas. Do outro lado da praça o brasão do baronato de Satúrnia, as quatro setas unindo suas bases, formando um X estilizado nas cores azul e cinza. Corri até lá o mais rápido que pude, havia 527 motivos para mim me apressar.
Entrei no banco e seguindo as setas percorri os corredores da agência até o cofre forte. Contemplei a enorme porta de metal impenetrável, o ruído de coisas sendo arrastadas e derrubadas crescendo no silêncio daquela tumba lunar. Era a segunda vez no dia que uma porta fechada me separava da morte, mas agora não havia o que fazer, a não ser esperar a misericórdia dos sobreviventes. Os sons cresciam, a singularidade estava se aproximando, meus batimentos cardíacos aumentavam. O computador do traje buscava contato com os sobreviventes no interior da caixa-forte. Fui até a porta por onde entrei e acionei o comando de bloqueio. O computador lacrou as portas do banco. Um urro grotesco ecoou pela praça próxima. A besta se aproximava. Então houve um clic, e a pesada porta do cofre-forte se abriu impulsionada por pistões.
— Entre logo — uma voz aveludada me chamou.
Peguei na mão da sobrevivente e dei um salto para dentro da caixa forte enquanto os pistões fechavam a porta novamente. Vi-me então num comprido corredor cercado de armários selados onde os outros 31 sobreviventes me observavam com interesse. A mulher que me recebeu era uma agradável surpresa naquele antro, uma deliciosa ruiva de olhos amendoados e tez pálida como a neve, usava o macacão vermelho com o brasão azul do baronato de Satúrnia. No peito uma plaqueta de identificação informava seu nome: Rúbia Barcelos, logo abaixo das duas estrelas. Duas estrelas significava que era cabo. Ela bateu continência para mim, retribui:
— Robert Rodriguez.
 Enquanto eu mergulhava em seus olhos castanhos, sons abafados de coisas sendo dilaceradas invadiam o ambiente.
— Estamos seguros aqui, capitão, ele está tentando invadir essa caixa-forte há semanas.
Eu estava exausto. Nas últimas horas tive que abandonar uma nave condenada e saltar como um náufrago até a lua exilada Ilárgia. Tirei o bio-traje e dormi como não dormia há dias.

 

Doze horas depois Rúbia me colocou a par do que acontecera. Um mês atrás o cargueiro Damarco chegou até Ilárgia trazendo suprimentos e uma nova leva de operários para trabalhar na mineração da lua. Uma das naves de desembarque de operários trouxe a singularidade para dentro da cidade, junto com os cadáveres dos tripulantes. A fera emergiu para começar uma matança sem precedentes. A pequena força militar ilargiana foi destacada para conter a ameaça, mas em vão. Todas as armas que dispunham foram usadas contra a besta, mas a fera não retrocedia. Rúbia fugiu com um grupo guiado pelo engenheiro Liu Woo para o cofre forte. Liu projetara a base. Muitos sobreviveram por dias fugindo dentro dos aero-bondes, mas a fera afinal acabou os alcançando. A sagacidade da fera não condizia com seu aspecto animalesco. Nem mesmo os androides foram poupados, qualquer coisa que se movesse era estraçalhada.
— E afinal o que é essa fera?
— Nenhum computador foi capaz de responder essa questão. Nenhum ser geneticamente modificado pode ser programado para não morrer.
— Esse ser contraria todas as regras da biologia. Como ele entrou nesse cargueiro, de onde ele veio?
— Não sabemos como ele entrou no cargueiro. O Damarco zarpou sem entregar os suprimentos após os primeiros ataques. O capitão informou que vieram direto de Satúrnia para cá.
— Qual aparência da fera?
— Ele parece um cão selvagem mutante.
— Qual o seu tamanho?
— Um metro e meio, mais ou menos.
Eu fiquei imerso em pensamentos. Buscando alternativas para explicar essa singularidade. Havia algum ser como esse nas colônias? Seria algum teste dos vimanoi, os alienígenas que vivem em seu impenetrável setor negro?
— E se a fera não tiver embarcado nesta nave de desembarque, mas sim fosse algum dos tripulantes, que de algum modo estava infectado e sofreu uma metamorfose.
Ela considerou.
— Você já ouviu falar de lobisomem?
Ela balançou a cabeça, negando.
— É uma lenda dos tempos imemoriais, segundo a qual alguns humanos podem se transformar em uma fera meio homem, meio lobo. Segundo essa lenda o licantropo se mantém na forma humana a maior parte do tempo, ficando apenas algumas noites no mês como fera. O que determina essas mudanças é a influência da lua.
— Da lua?
— Sim, e pelo que eu saiba estamos em uma lua.
— E o que mata essa fera, essa sua lenda diz?
— Argiria, ou seja, infecção por prata.
— Prata? — ela questionou.
— Zamex, há prata nesta cidade? — questionei.
— Não. Esse metal caiu em desuso com o passar dos séculos, desde o período em que os computadores biológicos começaram a ser usados em larga escala.
— Por que computadores? — ela perguntou.
— A prata era muito usada em computadores, pois é um excelente condutor.
— Nós temos um museu de computadores na ala oeste — Rúbia informou, mas Zamex descartou a possibilidade de encontrar prata naquelas máquinas, pois eram muito mais recentes.
***
Dois dias depois estávamos mortos de fome e sem comida. Conversei muito com Liu e com Rúbia nesses dias, e um plano se formou em minha mente. Peguei a arma de Rúbia e abri a porta.
Parecia que um tornado havia passado por dentro da agência bancária, os móveis de pernas para o ar, papéis amassados por todos os lados, um vazamento d’água encharcando o amontoado de entulho que aquilo se tornou. Mas havia um silêncio inquietante. Zamex informou que a criatura se encontrava no lado sul. Caminhei até o centro da praça, que devia ser muito bonita antes do ataque, com a grande abóbada panorâmica divisando as estrelas. No centro da praça uma fonte onde estátuas de seres míticos brincavam na água, sob o monumento ao barão Otto Satúrnia. Imponente, montado em um cavalo puro sangue. Dei alguns saltos até estar sobre a estátua, então lancei uma corda até a estrutura de metal que segurava os vidros blindados da abóbada panorâmica. Escalei os mais de vinte metros de corda até os vidros e colei um dispositivo de antimatéria na estrutura. Preparei o detonador remoto e me coloquei a uma distância segura, ainda no alto da estrutura. Zamex ia me dando a localização do lobisomem, que sentira meu cheiro lá do outro lado da base e corria feito louco para mim.
Quando ele finalmente chegou à praça, correu para a estátua e deu um salto no vazio vencendo mais de dez metros, mas incapaz de me afetar. Ele caiu com tamanha violência que quando se chocou contra o chão foi possível ouvir seus ossos se partindo e seu ganido selvagem. Mas o animal se empertigou rápido e se virou para mim, preparando outro salto. Ele escalou o monumento, e quando saltou fui capaz de contemplar todo o fogo que brilhava no fundo daqueles olhos, o ódio do universo concentrado na íris rubra do agressor. Apertei o detonador e o dispositivo liberou um mícron de antimatéria. O choque da matéria positiva com a negativa gerou uma explosão de luz que consumiu a matéria do vidro num raio de alguns metros. A fissura gerada na abóboda se expandiu enquanto o ar da praça ia sendo sugado para o vácuo do espaço exterior. Numa fração de segundos os vidros blindados começaram a se torcer e espatifar, desaparecendo no vácuo. Eu me joguei no ar e fui pego pelo vórtice, rodopiando para fora da cidade administrativa. Atravessei o grande buraco e virei-me para tentar ver se a fera fora pega na rajada. Pude ver ele se chocar contra a borda do vidro com tal violência que imaginei que fosse ser partido em dois, mas o animal tinha uma resistência sobre-humana, e se projetou no espaço em uma rota perpendicular à minha própria. Eu seguia em direção ao vazio, contemplando a fera se debatendo contra a falta de oxigênio, sendo morta por asfixia para sobrenaturalmente renascer e sofrer da horrível morte por asfixia novamente. Por quanto tempo mais essa rotina iria se manter? Eu não queria pagar pra ver, mas vim preparado para assistir à morte desse monstro, de um jeito ou de outro. Peguei na minha coxa um pequeno tubo branco e o arremessei em direção à besta. O objeto corrigiu sua rota, guiado por Zamex e seguiu a criatura em direção ao infinito. Quanto a mim, não tinha planos de ir onde homem nenhum jamais esteve, apontei o braço para a cidadela que se distanciava de mim a cada segundo e lancei um arpão que cortou o espaço em direção à estrutura de metal abaixo, carregando atrás de si uma microcorda de altíssima resistência. Enquanto observava a fina corda cortar o espaço, avistei uma estrutura de metal se fechar como uma grande boca onde antes havia a abóboda de vidro que estourei. Era um dispositivo de contingência desenvolvido para proteger a base no caso de quebra acidental dos vidros por eventos não previstos. Graças a essa informação fornecida pelo engenheiro da base, foi possível esse estratagema dar certo.
Eu retornei até a base através da entrada mais próxima e fui de encontro aos sobreviventes na sala do cofre.
Quando a porta do cofre se abriu Rúbia me abraçou com força.
— Acho que temos um herói — o engenheiro falou, enquanto Rúbia tirava meu capacete e me beijava.
Nesse instante Zamex cortou meu lance com a garota de vermelho, com uma informação importante. Levei-os até a praça, ou o que sobrou dela, após o vácuo tragar até placas de revestimento das paredes. Estendi a mão e Zamex projetou sobre um pedaço da parede o vídeo que recebeu do artefato que coloquei no encalço do lobisomem. A imagem mostrava a besta em agonia rodopiando em sua jornada para o vazio, então, quando a distância da lua exilada Ilárgia era considerável, o monstro começou sua mutação, retornando à forma humana. O corpo gigante do animal foi perdendo massa, seus membros se retorcendo, os pelos sendo deixados em sua trajetória. Quando a mutação estava completa, o homem se retorceu e tentou gritar, como um moribundo que acordasse de seus pesadelos e delírios da febre. O infeliz olhou à sua volta completamente confuso. O maldito acordou no meio do espaço, buscando alguma alternativa para manter sua vida miserável e amaldiçoada, mas em vão. Em segundos a pressão e a falta de oxigênio o transformaram em uma massa de carne e ossos destinada a vagar por toda a eternidade rumo ao vazio.


FIM
 
Pósfácio

Esse conto é uma continuação do conto O Legado de Maltz, o qual foi visualmente influenciado pela série de jogos de computador Dead Space, escrito para participar do 6º Desafio por Imagens do website A Irmandade. O tamanho máximo para o desafio era de 3.500 palavras. O Legado de Maltz é a continuação do conto mangpu’ pegh, um conto escrito no idioma klingon e originalmente publicado no website Stories To Enhance Klingon Spirit, em 25/04/2010 (http://www.btinternet.com/~qeSan/EKS/index.htm). O conto mangpu’ pegh (Os Soldados Secretos), conta a história da invasão da nave The Shepherd por Diane e suas forças, e como o capitão Rodrigues ativou um detonador dentro da nave matando todos os tripulantes e fugindo com Cameron, ferida, em um módulo de escape.
Mauricio R B Campos
Enviado por Mauricio R B Campos em 07/03/2015
Reeditado em 07/03/2015
Código do texto: T5161055
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