Terrorista – Capítulo II

Eu chamei por Emma assim que comecei a acordar, de manhã cedo, e me assustei quando ela não respondeu. Então me lembrei que dormi desconectada da rede.

Meu primeiro impulso foi me conectar direto, mas me lembrei da noite anterior, e resolvi esperar um pouco. O confronto do dia anterior me assustou mais do que eu gostaria de admitir, e a verdade é que eu estava hesitando em entrar na rede. Estranho, normalmente eu achava o mundo aqui fora muito mais assustador.

Eu só me conectei depois de me lavar e tomar meu café da manhã. Era muito diferente comer sem um mínimo de conexão. Não só a comida parecia sem gosto, mas era muito solitário não ouvir a voz de nenhuma das minhas inteligências. Difícil acreditar que ainda existiam pessoas que viviam desconectadas.

Por fim, o silêncio estava me deixando nervosa demais, e resolvi restabelecer uma conexão limitada.

Alguma coisa estava me deixando insegura, e meu instinto sempre era muito bom nestas coisas, era uma parte importante do que eu era. Eu resolvi ser ainda mais cautelosa que o normal, e coloquei Emma, Valéria e Samantha em uma sub isolada, junto comigo, e fechei todas as conexões com a rede principal. Só então me deitei na poltrona de rede e entrei em modo imersão.

Abri meus olhos para um cenário virtual vazio, tão semelhante a região da rede que eu visitei no dia anterior que me deu um calafrio na espinha, mas eu não quis perder tempo preenchendo ele com nada. A meu pedido, minhas três inteligências surgiram na minha frente com seus avatares padrão.

Eu queria repassar os acontecimentos do dia anterior. Tinha certeza que havia deixado passar alguma coisa. Pedi para Valéria relatar tudo que aconteceu. Talvez ela tivesse percebido algo que eu não vi, ou talvez durante a narrativa dela, eu me lembrasse de algo importante. De todo modo, resolvi também fazer algumas perguntas.

- Valéria, durante o relatório você me disse que a IA sabotadora não chegou a tentar nada contra você, não é?

- Sim, Mary. Tivemos sorte de sair de lá a tempo. Eu só teria perdido algumas horas de existência, até você me reinicializar, como Emma e Samantha, mas não quero imaginar o que podia ter acontecido se ele tivesse pego você.

- Ele? - Por que ele, e não ela? Meu instinto estava mais a flor da pele.

- O sabotador. A Inteligência Artificial - Valéria respondeu prontamente.

- Quanto tempo mesmo ele levou para destruir o código de Samantha? - eu tinha que perguntar para Valéria. Samantha e Emma não tinham recordação direta do que aconteceu. Na prática, eles nunca estiveram junto conosco, ou melhor, a Samantha e a Emma que nos acompanharam não existiam mais.

- Vinte e três segundos.

- E o código de Emma.

- Três segundos.

Tudo se encaixou no exato instante que Valéria falou, e eu reagi instantaneamente, por puro instinto, tentando me desconectar, mas é quase impossível ser mais rápido que um programa da rede, mesmo para mim.

A sensação foi agradável por um segundo, a desconexão completa entre minha mente e meu corpo, como quando eu deixei Emma assumir o controle das minhas funções vitais, mas desta vez era contra a minha vontade. Eu bem que gostaria de sentir o jorro de adrenalina que certamente estaria correndo em meu corpo.

Eu comecei a ser atacada de forma muito semelhante ao que o sabotador fez antes, uma tentativa de sobrecarga das minhas funções neurais. Normalmente, Valéria não teria nenhuma chance contra mim, mas ela tinha a vantagem da surpresa e do tempo. Se ela quisesse me matar, quanto tempo levaria para causar uma parada cardíaca, antes mesmo que eu percebesse?

Não sei se sozinha teria conseguido a tempo, também não sei se Valéria iria me matar ou não se pudesse. Por sorte, Emma e Samantha reagiram quase tão rápido quanto ela. Em um instante ela estava inerte, e eu tinha voltado a controlar meu corpo.

- O que aconteceu? Por que ela fez isto? - A voz de Emma trêmula, assustada. Antes que eu falasse, Samantha respondeu.

- Ela foi comprometida. Foi isto que Mary se deu conta, e quando viu que foi descoberta, ela atacou. O sabotador levou apenas três segundos para destruir você pois ele aprendeu como funcionamos comigo, nossos códigos são quase idênticos. Ele teria levado o mesmo tempo ou menos com Valéria.

- Mas ele preferiu corrompê-la - eu conclui - e talvez tenha me deixado escapar.

- Mary - a voz de Samantha hesitante - Valéria pode ter se infiltrado em nosso código durante a noite. É melhor reinicializar todas nós - ela não gostava desta ideia, as IAs detestavam ser reinicializadas.

Eu não respondi inicialmente. Primeiro verifiquei que Valéria estava efetivamente congelada, depois isolei cada uma das três IAs tanto de mim quanto uma das outras.

- Eu não vou reinicializá-las sem necessidade, Samantha. Vou só deixar cada uma de vocês isolada, enquanto rodo um diagnóstico. Vou reinicializar Valéria apenas, mas vou deixar o código contaminado inerte, até descobrir o que exatamente aconteceu.

Eu tinha meu psicólogo em menos de duas horas, tempo suficiente apenas para ter certeza que Emma e Samantha estavam bem. Valéria ficou muito constrangida quando eu a reinicializei e ela soube o que tinha acontecido.

Eu decidi ficar apenas com contato com elas, mantendo nós quatro separadas da rede até ter certeza que estávamos seguras. Minha maior dúvida era o quanto eu devia revelar para a corporação. Os Wu tinham que saber que estávamos lidando com alguma coisa ainda mais perigosa que imaginávamos, mas eu não gostava de chamar a atenção deles para minhas inteligências.

Mas eu teria que resolver isso depois. Era hora de ir no meu psicólogo.

Eu respirei fundo e me preparei para algo em certo sentido ainda mais assustador que vírus assassinos se infiltrando em minhas amigas e tentando me matar.

Andar pelo mundo real.

Ashur
Enviado por Ashur em 13/06/2015
Código do texto: T5275627
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