VÊNUS

Considerava a maior das maldades o lugar que escolheram para sua reclusão. Transformaram uma das salas de observação em cela. O chão e as paredes eram feitas de uma espécie de acrílico ultra-resistente transparente. Isso lhe dava a impressão de estar suspenso na atmosfera turbulenta de Vênus. Isso não o incomodava de forma alguma. Cinquenta anos ali tinham lhe feito completamente imune ao medo de não ter um chão sob seus pés. O que lhe doía profundamente era não ver mais o pequeno filete de gás marrom que antigamente saía da estufa microbiológica. Isso indicava que não eram mais lançadas as bactérias e os fitoplanctos adaptados a composição de ácido sulfúrico e dióxido de carbono da atmosfera. Era a prova cabal do abandono por parte dos novos chefes do trabalho da vida dele. A tentativa de mudar o clima do planeta para algo compatível com a vida humana. Agora eram apenas aquelas imensas espaçonaves saindo carregadas de insumos para fabricação de fertilizantes na Lua e em Marte.

Se arrependimento matasse... Tinha sido o mais ardoroso defensor das boas intenções da missões lunares e marcianas. Afinal depois de quarenta anos de silêncio nas comunicações estava desesperado por relações com outras comunidades humanas. Seu idealismo, tão importante para manter a coesão e a moral da estação científica venusiana quando do colapso da Terra, o impediu de ver que o mesmo evento levou as outras colônias espaciais ao pragmatismo mais extremo. Eles chegaram e fizeram terra arrasada dos seus setenta anos de trabalho. Vieram com suas naves enormes, tomando toda a base, impondo suas novas diretrizes. Aprisionaram imediatamente 76 dos 105 habitantes.

Mas teria sido o seu crime menor? Os que se salvaram estavam dispostos a explodir todo o complexo. Haviam se refugiado numa das unidades flutuantes que ainda não estavam presas à ancora principal que o prendia a base à superfície. Antes que pudessem iniciar o processo de autodestruição ele cortou suas amarras. Condenando-os a chicotear pelos ventos de mais de trezentos km\h das nuvens superiores, para depois serem comprimidos pela pressão atmosférica 90 vezes maior do que a da Terra e finalmente torrar nos mais de 400ºC das camadas inferiores. Haveria maior traidor desde Judas? Estranhamente encarava tudo placidamente: a traição e a morte dos companheiros pela suas mãos, o fim do seus sonhos e mesmo o isolamento completo que já durava dois meses. Um monge tibetano da antiga Terra. Deviam estar lhe medicando através da comida.

A porta se abriu e ao invés de aparecer o costumeiro dispositivo robótico que estava trazendo seu alimento ou os materiais para higiene pessoal, veio um homem alto e de uniforme com o que parecia serem condecorações ou divisas. Provavelmente era oficial:

-Prof. Anderson? Major da Armada da Liga das Comunidades Espaciais Yuri Andropov. Ficou com a mão estendida no ar para cumprimentá-lo por alguns instantes. Ao perceber a inutilidade do gesto a recolheu e voltou-se para a parede transparente:

-Entendo seu ressentimento. Mesmo assim quero te informar que você será condecorado com a Ordem do Sol, a maior condecoração da Liga. Além disso estou aqui para avaliar se será possível contar com sua ajuda para continuarmos com a colonização de Vênus.

Ele já havia se sentado encostado em uma das paredes laterais. O olhar perdido no horizonte, evitava olhar para seu interlocutor.

-Minhas trinta moedas de prata? Não, obrigado. Se querem me homenagear eu preferiria um julgamento e ser lançado para fora.

-Muitos gostariam de lhe dar isso mesmo. No entanto a verdade é que você salvou a estação e 100 anos de dados inestimáveis sobre os planeta.

-Então, não precisam de mim! Por favor, me matem ou me deixem em paz. Respeitem meus 90 anos.

-De novo, até gostaríamos de fazer uma das duas coisas e deixar o assunto por encerrado. Mas há a opinião pública em casa e o fato de que necessitamos de gente com experiência.

-Pelo que tenho visto daqui vocês estão se saindo muito bem sem mim. Apontou para cima, em direção da espaçonave que se preparava para partir.

-Na verdade graças a você. Se não tivesse impedido aquele grupo de destruir a base não estaríamos agora extraindo o ácido sulfúrico, o enxofre e o dióxido de carbono para enviar às outras colônias.

-Não precisa lembrar disso!

-Será que você tem ideia de como precisamos disso. Não há suprimentos de compostos de carbono em lugar nenhum. O custo de trazer dos satélites Jupiterianos ainda é proibitivo. Da Terra temos o problema da gravidade, da radiação e da peste.

-Ainda não descobriram uma cura?

-Não há cura... Ficaram mais de dois minutos calados, em um silêncio pesado.

-Paramos de receber comunicações de lá há cinquenta anos. O que aconteceu?

-O Apocalipse. Uma mutação do vírus da Influenza incrivelmente poderoso apareceu na Indochina ao mesmo tempo que uma superbactéria conseguiu sair dos hospitais americanos e infectar a população. Os dois com tempos de incubação longos e altas taxas de mortalidade. Dois bilhões de mortos em apenas um ano. Mas o que decretou o fim mesmo foram os acidentes pela morte das pessoas. Por causa das pragas dez usinas nucleares tiveram desastres que multiplicaram por dez o nível de radiação do planeta. Todas as outras foram desativadas a tempo. Só que não foram só elas. Tiveram várias plataformas de petróleo, fábricas, barragens. Aquilo tudo é uma bagunça só!

-Alguém sobreviveu?

-Centenas de milhões. Mas divididos em duas classes. Os dos Domos e os Selvagens. Os primeiros são aqueles que vivem na Terra como se estivessem em outro planeta, isolados do ambiente. Os outros vivem como antigamente, só que com taxas de câncer e mutações escandalosamente altas. Fora as doenças. Estimamos que a média de vida voltou a ser de uns 43 anos.

-De volta a Idade Média, então?

-Mais ou menos. O carregamento desta espaçonave que estamos vendo vai para lá. Para um Domo nas Montanhas Rochosas. Para que eles possam ampliar sua produção de alimentos com insumos não radioativos.

-Vocês poderiam simplesmente ter explicado tudo isso antes. Por que tanta certeza que não iríamos entender?

-Não podíamos arriscar. Vocês estavam isolados há muito tempo e nas suas transmissões pareciam ser obcecados com a ideia de mudar a atmosfera. Nossos espectografos já percebem uma mudança nas cores das nuvens devido à interferência de vocês. O Vórtex do Sul já está ligeiramente amarronzado mesmo a olho nu. O oficial olhou para o rosto do velho cientista prisioneiro e não acreditou na sua expressão de espanto:-Vocês não sabiam?

-Não... Não. Capturamos todos os satélites para aproveitar seus componentes e mineramos o asteroide que orbitava Vênus até não sobrar nada. Não tínhamos ideia. Acreditávamos somente. Mas, afinal, que alternativa nós tínhamos? Acreditávamos sermos os últimos. Ou que pelo menos nunca seríamos resgatados. Quando da Grande Catástrofe nós éramos em 32. Vinte e dois homens e dez mulheres. Desfizemos a Revolução Sexual e as transformamos em parideiras. Vivendo apenas para terem um filho atrás do outro. Foram proibidas de trabalhar em serviços técnicos, praticamente trancadas. Responsáveis pela preservação da espécie. A submissão feminina nunca veio da sua fraqueza. Vinha da sua importância! Reconstruímos nossos valores. Tudo na pequena esperança de um dia colonizar o inferno.

-Estavam sendo bem sucedidos. Por isso corremos para impedi-los. Talvez façamos isso um dia. Mas hoje temos 40 milhões de seres humanos para alimentar.

O velho professor olhou para as nuvens alaranjadas e de novo para a imensa massa prateada sendo abastecida. Limpou uma lágrima que rolou de seus olhos à revelia.

-Eu vou ajudar vocês. Mas não vou aceitar porra de medalha nenhuma!

Aristoteles da Silva
Enviado por Aristoteles da Silva em 07/05/2016
Reeditado em 26/05/2016
Código do texto: T5628459
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