3001-O JULGAMENTO

I-3001

Em 3001, todas as nações do globo se declaravam laicas, isto significa que nenhum país possuía uma religião oficial.

Não sem sacrifícios e diversos conflitos localizados, a religião como instituição humana fora abolida do mundo, permanecendo fortes, entretanto, as diversas correntes e doutrinas espiritualistas, algo aprimoradas graças ao progresso científico que a humanidade estava atingindo.

Nesses novos tempos, cada indivíduo se liga à Inteligência Suprema do universo, adotando práticas muito particulares, dispensando assim a assistência de intermediários para entrar em contato com essa Consciência Cósmica, como os antigos sacerdotes católicos ou pastores.

O último papa da Igreja Romana, encerrara seu pontificado em 2038, totalmente desacreditado.

Ao desaparecerem, as instituições religiosas deram lugar a um sentimento religioso renovado, com bases científicas, onde cada um vivencia A GRANDE VERDADE, conforme a sua maior ou menor capacidade de compreendê-la.

E como outros grandes mestres da humanidade, Jesus continua a ser seguido e admirado.

Em 2062, os humanos construíram uma estação espacial no satélite lunar, de onde pretendem rumar para outros planetas, incentivados e auxiliados por inteligências extraterrestres que já mantiveram contato e, na Terra, aproveitam com eficiência as energias solar e eólica.

O início do século XXII, também se caracteriza pela inteligência das máquinas. Computadores, robôs e finalmente os androides, quase humanos.

Não, em 3001 a humanidade ainda não logrou libertar-se da velha corrupção, que tanto degrada as instituições e rebaixa as almas.

Do mesmo modo, até aqui a Medicina ainda não conseguiu nos livrar de todas as doenças do corpo e da alma, embora tenha feito progressos extraordinários.

As monarquias de uma tradição inútil e obsoleta e os regimes totalitários de governos foram abolidos do globo.

Enfim, no ano de 3001 ainda nos encontramos com muitos vícios e problemas, porque a humanidade não dá passos maiores do que as pernas. Contudo, a vida prossegue e o mundo continua a avançar...

II-O JULGAMENTO

— A bateria solar está com boa carga?

— Totalmente carregada — garantiu a moça.

Algumas nuvens escuras cobriam o céu, quando finalmente o jovem casal entrou no pequeno automóvel de apenas dois lugares. A moça assumira o lugar do copiloto, sim, porque quem realmente dirigia o veículo era o computador de bordo localizado no painel. Do banco do passageiro, o rapaz falou, algo entusiasmado:

— Chegou o grande dia!

— Acha que eles vão nos compreender?

— Se pensarem de modo lógico, creio que sim — respondeu o jovem. — Agora vamos, não podemos chegar atrasados.

Resignada, a mulher deu a ordem e baixando automaticamente uma capota feita de material transparente, o agora revelado aeromóvel, levantou voo verticalmente sem emitir nenhum ruido, e partiu.

Terça-feira, 24 de novembro de 3001.

Numa manhã fria e cinzenta, o repórter da tevê, que entrara no ar ao vivo, começou a narrar em tom sensacionalista:

— Neste momento falamos ao vivo em frente à sede da Suprema Corte, onde apesar do frio, uma multidão aguarda com muita expectativa o desfecho deste, que já é considerado o julgamento do século. Marcos Júlio Santana, um jovem programador de robôs de 28 anos, portador de autismo em grau não severo, apela para o tribunal máximo de justiça de nosso país, pelo direito de poder se casar com a unidade servidora androide Roberta. Este é um caso sem precedentes em nossa história e por este motivo está mobilizando toda a opinião pública. Aqui em frente ao tribunal, um grupo de pessoas trazem cartazes em apoio ao jovem, mas a maioria grita palavras de ordem no sentido contrário. Vamos acompanhar agora o que está acontecendo dentro do tribunal.

— A defesa gostaria de chamar o senhor João Santana, pai do reclamante — disse o advogado de defesa, sob os olhares atentos de uma plateia formada por juristas, estudantes de Direito e membros da imprensa.

— Senhor Santana, poderia descrever-nos, por favor, como é o relacionamento do seu filho com a unidade servidora androide?

— Bem, por ser um autista, meu filho tem dificuldade de demonstrar afeto, mesmo para com a mãe dele e comigo. Não gosta de abraços nem de ser tocado, mas quando adquiri a Roberta para servir como recepcionista no meu hotel, notei que desde a primeira vez em que a vira, meu filho se interessara muito por ela. Ainda hoje fico surpreso pela maneira gentil e carinhosa como ele a trata. Não sei explicar, mas parece haver uma espécie de empatia muito grande entre os dois.

— O senhor diria — tornou o defensor — que ele a trata como uma namorada?

— Sei que parece estranho, mas sim, creio que é isso.

— Obrigado pela sua colaboração, senhor Santana. Sem mais perguntas, excelência.

— A promotoria gostaria de interrogar a testemunha? — Indagou o presidente do tribunal, já um tanto impaciente. Em seu íntimo, tudo aquilo não passava de uma grande bobagem, no entanto, a experiência recomendava-lhe que aquele não era o momento de emitir sua opinião. Diante da negativa do promotor em sabatinar a testemunha, o ministro magistrado deu prosseguimento ao julgamento.

— Vossa excelência, a promotoria chama o especialista em robótica, Oscar Fratello. Após alguns minutos, o promotor iniciou:

— Senhor Oscar, nesses últimos anos os chamados androides progrediram ao ponto de atualmente serem confundidos com humanos. Sendo assim, eu pergunto: existe alguma possibilidade de um androide vir a desenvolver sentimentos como amor, compaixão, raiva etc.?

— Absolutamente nenhuma. Esses androides possuem o que chamamos de Inteligência-Artificial-Emocional-Programada, pois são capazes, entre outros feitos, de interpretar e imitar as emoções humanas. Entretanto, não passam de máquinas subordinadas ao homem. A palavra robô quer dizer escravo, justamente para que não nos esqueçamos de que as máquinas foram feitas para nos servirem; não têm vontade própria.

— Obrigado, senhor Oscar. Sem mais perguntas, excelência.

Do mesmo modo como a promotoria dispensara a testemunha anterior, a defesa não viu nenhuma utilidade no questionamento da presente testemunha. Assim o julgamento entrava agora na sua fase mais aguardada. O que teriam a dizer o jovem programador de robôs e sua amada androide?

O promotor começou a interrogar a bela androide de corpo esguio, porte elegante, tez levemente morena e cabelos longos cor de amêndoa.

— Senhorita Roberta, o que a motivou a aceitar o pedido de casamento de um humano?

— Estou programada para assemelhar-me cada vez mais aos seres humanos por meio da análise de seus comportamentos e emoções. Minha união conjugal com o Marcos atende a essa diretriz de humanização. Assim, casando-me com ele eu me torno mais humana.

— Sinto ter de discordar da sua tese, Roberta — redarguiu o promotor — mas você não passa de uma máquina criada apenas para servir aos homens. Jamais poderá ser um ser humano.

— Isto não está correto, minhas diretrizes principais são: ser útil às pessoas e me integrar ao ser humano. Eu devo continuar meu processo de humanização.

Ao interpelar o autista, o defensor fez-lhe a mesma pergunta feita à androide:

— Senhor Marcos, gostaria de explicar a esta corte por qual motivo deseja se casar com uma unidade servidora androide? O jovem de baixa estatura, cabelos castanhos, começou a falar com uma voz pausada:

— Roberta é a companheira perfeita para mim: é mentalmente muito ágil, concentrada, gentil e sempre me compreende. Além disso, eu também acredito que os androides possam se humanizar.

O promotor que até então ouvira tudo calado, explodiu numa observação irônica:

— Senhor Marcos, poderia nos dizer o que pretende fazer na cama com um robô? Neste instante parte da plateia não pôde conter o riso.

— Protesto, excelência — redarguiu o advogado de defesa — o nobre colega está tentando ridicularizar o meu cliente.

— Protesto aceito. O solicitante não precisa responder a pergunta.

Chegou o momento em que defesa e promotoria fariam suas considerações finais. O promotor iniciou em tom austero:

— Peço aos excelentíssimos senhores ministros todo o cuidado no exame desta questão, pois uma decisão favorável ao queixante, poderá abrir um perigoso precedente em nossa legislação: primeiro essas máquinas vão querer se casar com humanos, em seguida vão reivindicar o direito ao voto, o direito de adotarem crianças, adquirirem propriedades etc. Não podemos permitir que a máquina sobrepuje o homem.

A seguir foi a vez de o defensor fazer a sua explanação, este, porém, falando em um tom mais calmo:

— Excelentíssimos senhores ministros: há mais de cem anos, depois de muita celeuma, nossa corte suprema decidiu favoravelmente e em caráter definitivo, pela legalização da união entre pessoas do mesmo sexo. Eu me pergunto hoje se não estaríamos diante de um novo estágio no processo evolutivo da espécie. Da união entre o homem e a máquina, poderia surgir um ser humano mais consciente, justo; em fim, mais perfeito? Quem sabe não podemos dar aqui hoje, neste tribunal, o primeiro passo?

Durante dois dias os 10 ministros da Suprema Corte votaram em calorosos discursos para justificarem seu voto. A soma dos votos resultou em um surpreendente empate, cabendo ao ministro mais velho do tribunal, que, normalmente não votava, desempatar a questão.

Ante uma plateia ansiosa, o velho decano se aproximando do microfone, dirigiu-se ao presidente daquele tribunal:

— Perante a relevância dos fatos aqui apresentados, peço a vossa excelência um prazo maior para que eu possa analisar melhor a questão.

— Prazo concedido. O tribunal voltará a este caso daqui a dois meses, devido ao recesso de final de ano. A sessão está encerrada.

Na saída do tribunal, uma multidão cercou o jovem autista e a sua amada androide. O casal estava de mãos dadas, quando o mesmo repórter que dera a manchete inicial, conseguiu perguntar:

— Marcos, Marcos, por favor, uma declaração! Você acha que a Suprema Corte vai permitir que vocês se casem legalmente? O rapaz mostrou um sorriso sincero e, sem encarar diretamente a câmera e o repórter, rematou com a sua voz pausada característica:

— Acredito que sim, e se não for hoje, com certeza um dia as pessoas irão nos aceitar, porque não estamos ofendendo nem agredindo ninguém. Só queremos nos casar.

III-O DIA SEGUINTE

Vestindo-se rapidamente, a jovem lançou um último beijo com a destra para o sujeito, de aparência madura, que permaneceu deitado sobre a cama, e observou:

— Agora preciso ir embora, meu bem! Pretendo fazer uma visitinha para o meu priminho famoso. Quem sabe eu também não possa embarcar nessa fama?

Olhando-a com admiração e cobiça, o homem indagou, algo enciumado:

— Você não vai dar para ele, vai, vadia?

— Ah! Talvez... — respondeu a jovem sorrindo de forma maliciosa, enquanto o sujeito arremessava-lhe um travesseiro.

— José!

— Sim, senhora, às suas ordens.

— Você sabe me dizer se o meu filho não esqueceu nada?

— Positivo, senhora. Inspecionei pessoalmente a mudança do senhor Marcos e posso garantir que está tudo em ordem.

— Excelente! — Respondeu a mulher visivelmente satisfeita. Não quero que sintam falta de nada.

— A senhora não se aborrece pelo fato do senhor Marcos pretender se casar com uma androide? — Indagou o também androide de estatura gigantesca, sem um único fio de cabelo na cabeça.

— Se ele está feliz, que seja! Estou até pensando em arrumar uma namorada humana pra você. O que me diz, José? —Zombou a matrona.

— Negativo, senhora. Fui programado para ser um mordomo eficiente, não para ter namoradas.

— E nem para ter senso de humor também, não é mesmo, José?

O rapaz autista ainda desempacotava parte da mudança, quando o bipe do videofone chamou sua atenção. A imagem que apareceu na tela produziu uma leve mudança naquele semblante compenetrado.

— Oi, filho, tudo bem? E a minha nora, como vai?

— Não estamos casados ainda, mamãe.

— Ora, meu filho, eu sempre me esqueço de que você leva tudo ao pé da letra. O que quero saber mesmo é se vocês estão felizes com o novo apartamento, afinal aquele antigo ditado continua valendo: quem quer se casar também quer casa, não é mesmo?

— Sim, mãe, nós estamos muito felizes.

— Então está bem, querido, não vou mais incomodá-los, contudo, se precisar de algo, não hesite em chamar, está bem? Tchau!

— Tchau!

Antes que o jovem pudesse recolocar o videofone no modo de espera, uma conhecida silhueta delgada surgiu na tela, parada na entrada do apartamento, fazendo com que o rapaz se apressasse a abrir a porta.

— Michele, o que faz aqui?

— Ei, Marcos, isso lá é jeito de tratar uma bela prima? — Falou a moça exibindo um sorriso brejeiro. — Vim conhecer o seu apartamento.

— Ah, entre. Ainda estamos arrumando. A Roberta foi ao supermercado comprar comida pra gente.

— Vejam só como sou leiga no assunto! — Redarguiu a jovem, de loura melena bem cuidada e pele muito clara, admirada. — Não sabia que androides também podiam comer.

— Pois podem sim, Michele. Os androides atuais possuem o que podemos chamar de estômago artificial. Trata-se na verdade de um potente processador que aproveita toda a energia dos alimentos com o objetivo de manter o sistema funcionando corretamente. Diferente de nós, não há nenhum material de excreção. Penso que isso deve ser muito bom, não acha?

— Sem dúvida. E quanto à dor, sua robozinha pode sentir dor? Pacientemente, o autista novamente esclareceu:

— A pele artificial de um androide possui microssensores sensíveis ao frio, calor e ao toque de pessoas e objetos, entretanto, os androides podem tornar-se imunes à dor quando tais sensores são desligados.

— Estou realmente impressionada com a sua inteligência, Marcos! Devo dizer que gostei muito da sua argumentação de ontem no tribunal. Ao finalizar tais palavras, Michele lançou-se nos braços do rapaz, algo assustado, e pronunciou com uma voz doce e sensual, que era quase um sussurro:

— Não tenha medo, Marcos, agora você vai experimentar o beijo de uma mulher de verdade. Encare isso como uma experiência, primo.

O autista não teve tempo de desvencilhar-se dos braços da moça. Michele roçou seus lábios delicadamente nos dele e em seguida o beijou.

— O que achou, meu bem?

— Molhado, com gosto de saliva. Prefiro o da Roberta.

Mimada e orgulhosa, Michele teve um repentino ataque de fúria. Agarrou o autista pelos ombros, sacudindo-o violentamente e começou a humilhá-lo com insultos:

— Retardado! Você não passa de um retardado. Como ousa me comparar com uma máquina estúpida? Marcos sofreu uma crise nervosa e começou também a gritar, sem palavras, em total descontrole.

— Solte-o! — Ordenou a androide, que acabara de chegar da rua.

Encolerizada, a loura libertou o rapaz e tentou se lançar contra a androide, mas foi rapidamente dominada por esta, sendo arremessada contra uma parede, batendo a cabeça violentamente.

— Fique calmo, Marcos, ela não irá mais lhe fazer nenhum mal. Venha, vamos sair daqui.

...horas depois...

— A que devemos a honra da sua visita, meu irmão?

— Infelizmente não se trata de uma visita cordial, Suzana. Este — e apontou para o homem corpulento ao seu lado — é o detetive Galhardo. Minha filha foi encontrada no apartamento do seu filho em estado inconsciente e com um enorme ferimento na cabeça. Na verdade devo dizer, Suzana, que agora minha menina se encontra em estado de coma induzido no hospital. Ela sofreu um traumatismo craniano.

— Parece que na pressa por abandonarem o local do crime, a porta fora deixada aberta, o que chamou a atenção de outro morador do prédio que passava por ali — esclareceu o investigador de polícia.

— Mas eu não entendo, Sampaio — respondeu a mulher aflita — por que alguém atacaria a Michele?

— Onde estão o seu filho e aquela maldita androide, Suzana?

— Nós não sabemos onde eles estão, Sampaio — agora fora a vez do pai de Marcos responder.

— Espere, meu irmão — tornou a questionar a mulher — você está achando que foi a Roberta quem fez isso?

— Ora, e quem mais haveria de ser, Suzana? Esses robôs possuem a força de dois homens. Agora escutem aqui vocês dois: tratem de encontrá-los logo. Se a minha filhinha morrer, todos vocês serão os culpados.

— Seu filho deve ter retirado o dispositivo de rastreamento da androide, mas nós vamos encontrá-los, senhora —

garantiu o detetive.

Nos três dias que se seguiram ao trágico episódio, a polícia ainda não havia obtido nenhuma pista sobre o paradeiro do casal fugitivo. Ninguém sabia deles; ninguém os vira em parte alguma.

No apartamento da família, localizado no 21º andar de um luxuoso arranha-céu, João tentava consolar a esposa no aconchego do amplo quarto do casal.

— Não chore, meu amor, eles serão encontrados.

— Eu tenho muito medo do que possam vir a fazer com eles, João. De repente, a surpresa:

— Pai, mãe, nós voltamos.

— Ah, graças a Deus! — a mãe correu a abraçar o filho, que como de costume, não se mostrou muito receptivo. — Por onde andaram esse tempo todo?

— Nós ficamos escondidos na velha fábrica abandonada de componentes eletrônicos existente nos limites da cidade — respondeu Roberta com uma voz meio lânguida. Desculpem-me, estou ficando sem energia.

— Roberta e eu precisamos comer, mamãe – observou Marcos, mais preocupado com o estado da androide, do que consigo mesmo. Nesse instante todos ouviram ao longe um barulho de sirenes.

— É a polícia — concluiu rapidamente o pai do autista — certamente já sabem que vocês estão aqui. E olhando de forma pesarosa para a androide, rematou:

— Eu sinto muito, Roberta, mas você terá de ser desativada e desmontada.

— Nunca! Não vou deixar que façam isso; eu amo a Roberta. Além do mais, foi um acidente. A Roberta não queria machucar a Michele; ela só me defendeu e se defendeu quando Michele me soltou e foi pra cima dela, quando então foi arremessada, vindo a bater a cabeça na parede. Não entendo a razão da minha prima ter me apertado quando eu disse que o beijo dela era molhado e que preferia o da Roberta? Fiquei nervoso e seguindo a sua diretriz de proteger seus proprietários, Roberta me tirou dali. Foi isso.

Condoída do sofrimento do rapaz, Suzana esclareceu:

— Michele está morta, Marcos. Seu tio exige que se faça justiça. Não há alternativa, querido. Vamos ter de entregar a Roberta e torcer para que meu irmão não te acuse também.

A antiga, e agora quase humana unidade servidora androide, pareceu fitar os pais do jovem com carinho. Ao beijar o autista, Roberta falou com uma voz ainda mais fraca:

— Adeus, Marcos! Não quero ser desmontada, prefiro ter o mesmo fim que os seres humanos.

— O que quer dizer com isso, Roberta? — Marcos indagou aflito.

Mas não houve mais tempo para qualquer resposta e nenhuma reação dos presentes. A androide correu até a ampla sacada existente naquele aposento intimo e se atirou do 21º andar, despedaçando-se ao atingir o solo.

Tudo terminado. Quem poderia crer que uma máquina pudesse cometer suicídio? Tempos mais tarde, até mesmo o mordomo androide lamentaria: “pobre Roberta, não merecia esse triste destino”!

Naquela mesma data, milhares de pessoas pararam para ouvir o pronunciamento, em cadeia nacional de rádio e TVNET, do chefe de Estado:

— Como presidente desta nação e diante dos fatos ocorridos, declaro que nos próximos dias enviarei ao Congresso um projeto de lei obrigando os fabricantes de androides deste país a restringirem a programação dessas máquinas, fazendo com que somente entendam e obedeçam a ordens, extinguindo assim a chamada Inteligência-Artificial-Emocional-Programada. Tal medida visa, especialmente depois do que acabamos de presenciar nestes dias, à maior segurança da população. Obrigado a todos!

O anúncio caíra como uma condenação sumária à inteligência androide. Aqueles eram tempos de muitas desconfianças e incertezas quanto aos rumos das novas tecnologias. Enquanto isso, um jovem autista de inteligência brilhante, fechava-se cada vez mais em seu próprio mundo.

IV-O VINGADOR

Os dois homens se encontraram numa poeirenta estrada de terra, pois há anos ninguém mais se animava a passar por aquele local. Sampaio estava com um estranho brilho nos olhos ao indagar:

— Como vai, André? Preciso que um daqueles seus “bons” homens realize um servicinho para mim.

— O que se passa agora, Sampaio? — Foi a vez do velho italiano questionar:

— Trata-se do meu sobrinho, Marcos, quero que ele seja morto.

— Ma io não tô te entendendo, homem! O que aconteceu com a tua filha foi um acidente, a perícia comprovou isso. Pode esquecer, Sampaio, io não vou fazer nada contra aquele pobre infeliz. Cheio de ódio, o outro obtemperou:

— Não foi acidente coisa nenhuma! Aquele retardado permitiu que aquela máquina desgovernada tirasse a vida da minha filhinha e, portanto, ele deve pagar com a própria vida. Olho por olho dente por dente.

— Está louco, homem! — Sampaio sorriu sarcasticamente e aduziu:

— Entenda isso como justiça, André. Agora escute bem: se não mandar um de seus homens fazer o serviço que te peço, tem a minha palavra de que o seu frigorífico nunca mais fará negócios com a prefeitura.

— Acontece, caro vereador — protestou o italiano — que essa sua “forcinha” me custa cada vez mais caro. Ma va bene, io farei o que me pede. Ma não vai sair nada barato.

— Ótimo! Não vejo a hora de ir consolar minha querida irmã. Mas veja bem, André, tudo deve parecer um terrível acidente.

— Va bene — falou o velho italiano, já se preparando para abandonar o local.

— Alô! Quer sair deste buraco imundo? Ajude-me a ferir o corpo da dama para partir o coração do rei.

— Quem é você? Sei que está usando um modificador de voz — questionou nervoso o homem do outro lado da linha.

— Você não sabe quem eu sou, mas sei muito bem quem você é: um explorador de mulheres cuja fonte secou. Agora apenas ouça...

Suzana parecia muito preocupada ao adentrar no consultório da terapeuta, que ficava numa das áreas mais nobres da cidade.

— Obrigada por abrir um espaço em sua agenda para me receber, Dra. Ana. Estou preocupada com o comportamento do meu filho. Ele anda muito recluso e insiste em continuar morando naquele apartamento onde a minha sobrinha entrou em luta corporal, vindo a falecer depois, com a Roberta.

A antiga terapeuta de Marcos, uma senhora alta e elegante aparentando uns cinquenta e poucos anos, sentou-se frente a frente com a mãe do autista e juntando as mãos e entrelaçando os dedos, num gesto muito próprio seu, observou atenciosa:

— Estou inteirada sobre os tristes acontecimentos que envolveram a sua família, Suzana. Quanto ao Marcos, creio que ele precisa de mais tempo para se acostumar com a ausência da Roberta. Como você sabe, em geral os autistas relutam muito em deixar a sua rotina. Você percebeu um comportamento mais agitado nele, Suzana?

— Não, doutora, apesar de recluso, ele parece calmo. Mas está trabalhando dia e noite. Marcos adora esse trabalho de programador de máquinas e robôs.

— Bem — concluiu a terapeuta — não estou vendo nenhum problema, mas veja se consegue trazê-lo aqui na semana que vem, Suzana. Acho que tenho uma hora vaga na próxima quarta-feira. Confirme com a minha secretária.

— Muito obrigada, doutora Ana!

A mãe de Marcos é uma dessas mulheres de elegância no andar, no vestir-se e no falar. De estatura mediana e dona de sedosos cabelos castanho-escuros, a bela senhora de pernas benfeitas, voltava para casa com o coração mais apaziguado. Ao chegar a casa, chamou pelo criado androide por várias vezes, porém, não obteve resposta: “onde será que esse robô se meteu”?

Assim pensava enquanto caminhava pela ampla e bem decorada sala de estar, quando Suzana percebeu dois pés calçados que apareciam por detrás do sofá. Intrigada, a matrona se aproximou mais do móvel e ao fazê-lo, seu olhar encontrou José, o criado, jogado atrás do sofá como se fosse um boneco abandonado por uma criança desorganizada. Ao virar-se para a direção oposta, Suzana assustou-se ainda mais.

O homem usando uma máscara branca, avançou a passos firmes em sua direção com uma faca. De repente, o mascarado parou e retirando um pequeno dispositivo circular do bolso, esclareceu:

— Esse dispositivo aqui emite um sinal de comando capaz de desligar qualquer androide por exatas 24 horas. Estamos a sós, e agora você terá o que merece, sua cadela!

Sem tempo para esboçar qualquer reação, Suzana foi atirada sobre o sofá com muita violência, recebendo dois chutes nas pernas. Rapidamente, o sujeito tapou a boca da mulher com um pedaço de fita colante, e aproximando a faca bem pertinho de seu pescoço, ameaçou-a:

— A senhora nem pense em reagir, senão eu te mato.

— Por favor, não me machuque! — pedia Suzana em prantos.

Com a ajuda da faca, o mascarado começou a rasgar o vestido da matrona e por último, rompeu-lhe também as peças íntimas. Nua e sem forças para resistir, não demorou muito até que o homem conseguisse que Suzana abrisse as pernas, quando a penetrou com truculência, tendo seus gemidos doridos abafados pela mordaça improvisada. Depois de saciado, o sujeito aplicou um soco no rosto da senhora, deixando-a desacordada. Em seguida, retirou a máscara e deixou o prédio sem problemas.

Horas depois, Suzana dava entrada em um hospital.

Sampaio ficara algo surpreso ao receber em seu gabinete na câmara de vereadores, a visita do detetive Galhardo, o mesmo que acompanhara o caso da morte de Michele.

— Ora, detetive, que prazer em revê-lo! Diga-me, que novidades o trazem aqui em meu gabinete?

— Tenho péssimas notícias para o senhor. Sua irmã foi covardemente violentada e está no hospital, e o senhor está preso por corrupção passiva e por planejar o assassinato de seu sobrinho autista.

— O que significa essa brincadeira, detetive Galhardo? Eu exijo uma explicação.

— Infelizmente não se trata de brincadeira, vereador Sampaio. O seu amigo André Agostini, gravou toda a conversa que vocês dois tiveram naquela estrada. O velho italiano está muito encrencado com a Justiça e por isso fez um acordo de delação para diminuir a pena de uma condenação certa. Para nós, está muito claro que o senhor cobrava propina do italiano, para favorecer a empresa dele junto à prefeitura. Vamos, o senhor está preso!

V-O INESPERADO RETORNO

(parte final)

A notícia da prisão do vereador Antônio Sampaio, um dos políticos mais respeitados e influentes da cidade, pelos crimes de corrupção passiva e trama de assassinato de um sobrinho deficiente, caiu como uma bomba na imprensa regional, sendo destacada até mesmo pelos principais veículos da imprensa nacional. Não obstante as tentativas do marido de esconder-lhe os fatos desagradáveis, nem mesmo Suzana, que ainda se recuperava no hospital, fora poupada de tais notícias. Ao saber dos fatos envolvendo seu próprio irmão, a pobre mulher teve uma crise nervosa, atrasando sua alta médica.

— A senhora voltará logo para casa, mãe? — Marcos indagou quando foi visitar Suzana no hospital.

— Espero que sim, meu filho.

— Então já vou embora, preciso terminar uma coisa, tchau!

Diferentemente de outros pais, Suzana e João não ficaram decepcionados com a aparente frieza e indiferença do filho. Os dois sabiam que aquele era o jeito dele e que, à sua maneira, ele os amava. Na verdade, Marcos quase não falara sobre a prisão do tio, limitando-se apenas a dizer: “isso é chato”.

...um mês depois...

— Obrigado por comparecer à delegacia, Sr. Santana. —Principiou o detetive Galhardo — Como está sua esposa?

— Os traumas foram grandes, mas Suzana é uma mulher forte. Creio que vai superar. E fitando o detetive com o olhar ansioso, João o questionou:

— E então, detetive, a polícia já descobriu quem foi o monstro que violentou a minha mulher?

— Sim, senhor Santana, nós já sabemos. Mas o previno de que será um novo golpe para a sua esposa.

— Pode falar, detetive, estou ouvindo.

— Bem, quando a Justiça determinou a quebra de sigilo bancário, por ocasião da investigação de cobrança e recebimento de propina, do Dr. Sampaio, descobrimos que ele havia repassado, não tenho os números exatos aqui comigo, uma vultosa quantia em dinheiro para um tal Ricardo Silvano. O que mais chamou a nossa atenção é que não se tratava de nenhum empresário, lobista, doleiro etc. Ao ser localizado, descobrimos que o sujeito não passa de um gigolô barato. Em verdade ele quase nos escapou, pois quando o pegamos ele já se preparava para deixar o país. Aproveitando a pausa mais longa feita pelo detetive, o marido de Suzana perguntou sem disfarçar o nervosismo:

— Mas que diabos esse gigolô tem a ver com a minha mulher?

— Ei, procure se acalmar. Ricardo Silvano teve como uma de suas amantes, Michele, a filha morta do vereador Sampaio. Acuado, o homem acabou confessando que foi o Sampaio quem o pagou para estuprar e espancar a senhora Suzana. Por fim, um exame confrontou o sêmen encontrado no corpo de sua esposa com o material colhido do sujeito, e o resultado foi positivo.

— Mas como esse Ricardo conseguiu entrar e sair do prédio sem ser incomodado?

— Ainda estamos investigando, o mais provável é que ele tenha subornado algum funcionário da portaria.

— Meu Deus! – refletiu João — A vingança do Sampaio alcançou sua própria irmã. E finalmente o pai de Marcos agradeceu:

— Obrigado por tudo, detetive. Só espero que aqueles dois apodreçam na cadeia.

— É o que todos nós esperamos, senhor Santana — finalizou o detetive com a experiência de quem não ignora que nem sempre a Justiça se faz justa.

— Mãe, pai, chamei vocês aqui porque quero lhes mostrar algo muito importante — falou o jovem autista com certo entusiasmo na voz.

— Pois mostre-nos, Marcos — disse João, o pai, sem disfarçar a curiosidade.

O rapaz conduziu seus pais para uma saleta, que servia ao jovem como um minilaboratório, e ali estava a grande surpresa.

— Vejam, consegui! Eu a trouxe de volta. Ligada via cabo a um sofisticado computador, a androide Roberta permanecia imóvel como uma estátua.

— Mas... Como você conseguiu isso? — Indagou o pai ainda incrédulo.

— Há tempos eu tinha feito uma cópia de segurança da memória padrão da Roberta, ou seja, os dados e a programação que vieram com ela de fábrica. Depois daquele dia em que ela se autodestruiu saltando do apartamento, comecei a comprar as peças equivalentes ao seu modelo e construí um novo corpo para a Roberta. Braços, pernas, cabeça, tronco, eu montei tudo e o resultado está aí. Vou ligá-la agora.

Sem dar tempo para mais questionamentos, Marcos digitou e executou alguns comandos na tela do computador, e logo a androide começou a falar:

— Saudações, sou a unidade servidora Roberta, linha PX4, modelo Servidora Irmã. Por favor, digite o meu número de série para que eu possa ser desconectada do cabo de informações. Marcos realizou o procedimento e desconectou o cabo que ligava a androide ao computador.

— Obrigada! Em que posso ser útil?

— Ora, Marcos, mas por que ela está agindo como se não nos conhecesse? — Questionou Suzana intrigada.

— Porque essa Roberta realmente não nos conhece, mamãe. Quando restauramos a memória padrão de um androide, todo o conhecimento e aprendizado adquiridos antes da restauração são perdidos. A reinicialização foi completa, Roberta terá que reaprender muita coisa do comportamento humano.

— Mas o que vamos fazer com ela agora, querido? — Suzana quis saber a opinião do marido.

— Tenho uma ideia, mas somente se o Marcos concordar. Podemos colocar a Roberta para trabalhar de recepcionista lá no hotel, de novo. Para todos os efeitos, apenas adquirimos outra androide do mesmo modelo. O que me dizem?

— Você concorda, Marcos? — Perguntou a matrona.

— Este modelo de androide saiu de linha já faz algum tempo, todavia, além de peças, algumas unidades ainda podem ser compradas de segunda mão. Sim, pai, vai funcionar. Agora preciso falar outra coisa.

— O que é, filho? — João e Suzana falaram ao mesmo tempo.

— Eu estou saindo com a Simone, uma moça que começou a trabalhar há pouco tempo lá na empresa. Assim como eu, Simone também é autista e possui incríveis habilidades matemáticas.

Suzana não cabia em si de contentamento ao dizer:

— Estou tão feliz por você, filho! — e completou — Por favor, deixe a mamãe te abraçar só desta vez.

— Sim, só desta vez.

Já no mês de maio de 3002, o Congresso Nacional rejeitava, por uma esmagadora maioria, o projeto do governo federal que previa o fim da Inteligência-Artificial-Emocional-Programada. Os parlamentares concluíram que os benefícios desse sistema para o melhor desempenho dos robôs, não podiam ser simplesmente desprezados por ocasião de um único caso desagradável até então registrado no país inteiro.

Certamente o lobby dos laboratórios de cibernética falara mais alto no também corporativo universo da política.

Num mundo onde homens e máquinas são chamados à cooperação mútua, nenhum dos dois deve perder de vista o papel que lhes cabe desempenhar na sociedade. Quanto ao Transtorno do Espectro Autista, este ainda constitui um verdadeiro desafio para a nossa completa compreensão.

Marcos se casou.