Aprendendo a brincar

- Sabre do que eu tenho mais saudade?

- Do quê?

- Tenho saudades das séries de super-heróis.

- Hah, e eu achando que você ia falar de uma boa cerveja, de um sanduiche do Mcdonalds ou de um milk shake de Ovomaltine!

- Não, tenho saudades das séries. De um tempo em que mesmo o mais cínico de nós ainda acreditava bem lá no fundinho de sua alma em que existiam pessoas que eram os exemplos de honra.

- Hunf!

- O que foi?

- Voe e suas ideias esquisitas.

- Quanto tempo faz?

- Quanto tempo faz o quê?

- Desde o grande pulso. Desde que todos os eletrônicos fritaram. Desde que recuamos 500 anos e nossa sociedade voltou a viver sem televisão, rádio, celular, sem eletricidade enfim.

- Acho que já se vão uns 20 a 22 anos.

- Será que vão conseguir gerar eletricidade de novo algum dia?

- Acho que não. Um amigo meu que trabalha na divisão de pesquisa disse que os aliens fizeram alguma coisa com o campo magnético da Terra. Não entendi lhufas da parte técnica que ele falou, mas o que parece é que no final das contas não se conseguem criar magnetos. E sem imãs sem eletricidade.

- Eu ouvi dizer que estão trabalhando em eletricidade estática, baterias solares sei lá o que mais.

- 20 Anos meu amigo. Acho que os aliens fizeram direitinho, por enquanto vamos ter que nos virar com o bom e velho fogo. Tenho certeza que alguém vai descobrir algo no futuro. Mas até lá... sem seriado para você.

O primeiro dos dois homens olhou com olhos tristes para a paisagem.

Até onde a vista alcançava era possível visualizar uma floresta de coníferas. As plantas tinham se adaptado rapidamente a este novo mundo e tinha requisitado seu espaço de volta de forma rápida e firme.

A ausência de veículos geradores de carbono parecia não ter sido um problema para elas. Os animais silvestres também estavam se multiplicando de forma bem mais rápida. O ar estava limpo e a visão agora alcançava dezenas de quilômetros. Os picos das montanhas exibiam um verde iridescente, e ele tinha certeza que no hemisfério norte deveriam estar ostentando um branco majestoso.

O rio abaixo corria caudaloso e com águas brancas e turbulentas. Ele tinha certeza que a população de peixes deveria ter no mínimo quintuplicado. A natureza parece que estava se dando bem com a reviravolta que os aliens haviam causado. No céu, nenhum avião. Ainda haviam homens voando em asas deltas. Algumas ainda resquícios da produção de vinte anos atrás, muitas, não tão seguras, construídas de forma artesanal. Ainda bem que o conhecimento não fora destruído. Mas agora era muito mais difícil passar adiante o conhecimento. Em diversos lugares comunidades voltaram a usar os bons e velhões mimeógrafos. Mas em breve as folhas de estêncil iriam acabar. Mas já estavam resgatando as prensas manuais.

A população mundial sofreu um enorme golpe com o fim da era eletrônica. As mortes se multiplicaram por 100, mas paradoxalmente os países mais atingidos pelas doenças e pragas foram os mais desenvolvidos. Sem geladeiras, freezers e demais conservadores de alimento e remédios a população se viu a mercê de doenças até então consideradas como banais.

Cidades como New York, Moscou, Londres e Paris viram explodir casos de cólera, difteria e até lepra. Os sistemas de fornecimento de água e coleta de esgoto entraram em colapso. Hospitais praticamente implodiram dado ao número absurdo de pacientes. A vida moderna tinha criado uma raça de pessoas sem imunidade.

Paradoxalmente os países do terceiro mundo e países emergentes foram os que menos sofreram. Falta de eletricidade? A grande maioria nunca teve mesmo. Alimentos eram conservados como a séculos, então conseguiram se manter mais ou menos sem muitos percalços. Houve é claro um êxodo das metrópoles para o campo. Muitas mortes. Mas no computo geral estes países se deram melhor.

As notícias chegavam de forma esporádica. A comunicação internacional praticamente deixou de existir. Mas estavam se organizando razoavelmente. As embarcações a vapor voltaram a funcionar. Só que uma travessia oceânica agora era uma aventura de meses e não mais questão de horas.

- Sonhando acordado garoto?

- Quem me dera. E quer parar com esta merda de me chamar de garoto. Sou só 5 anos mais novo que você. E com 50 anos me chamar de garoto é sacanagem.

- Está bem, está bem. Vamos, nós já enrolamos demais, estes porcos do mato já estão com um cheiro forte e não quero ser apanhado a noite carregando dois porcos mortos pelo meio da estrada. Sabe que tem muitos lobos e cães selvagens por aí.

- Sim, vamos lá.

Os dois levantaram-se quase simultaneamente. O mais jovem ajeitou as correias de sua mochila feita de couro de boi enquanto o mais velho acomodava duas cartucheiras no ombro. Cada um apanhou o suporte de uma padiola improvisada onde em cada uma repousavam dois porcos selvagens de pelo menos uns 80 quilos cada um.

Com um gemido começaram a descida do morro em direção à cidadezinha de Santa Matilde do Oeste. O peso e a atenção às redondezas deixaram a conversa em suspenso. Só se ouvia o ranger das hastes de mateira das padiolas e o bufar dos dois homens.

A pequena trilha era ladeada por coníferas e na margem do caminho uma profusão de flores ladeava a estradinha. Os dois homens demonstravam esforço, mas seus semblantes não demonstravam tristeza ou cansaço exacerbado. O ar era frio e limpo, nas árvores ao redor pássaros canoros de diversas espécies promoviam uma agradável algazarra. O céu era de um azul irretocável e o sol estava rumo ao zênite. Depois de quase duas horas de caminhada neste bucólico ambiente começaram a ouvir ruídos humanos. Um cheiro bom de pão recém assado permeou o ar, bem como um delirante odor de carne assada, misturado a especiarias.

O mais velho ergueu a mão e apontou para uma pequena clareira ao lado da estrada, onde dois toscos bancos de madeira ladeavam um trono de arvore de pelo menos 6 metros de diâmetro cortado de forma irregular, denunciando o corte feito a machado.

Os dois sentaram-se, de novo, quase simultaneamente. O mais velho porem respirava de forma notadamente mais ofegante.

- Já não tenho idade para isto!

- Há há. Você ainda vai viver mais uns 50 anos. Engraçado, se fosse nos tempos passados acho que seriamos dois velhos capengas agora. Eu mesmo me admiro do meu físico.

O mais velho se esticou fazendo algumas juntas estalarem.

- Realmente. Há males que vem para bem.

- Você soube as notícias de Brasília?

- Não, o que houve?

- Tentaram novamente a instauração de um governo central.

- Mesmo? E aí?

- Escorraçaram os coitados para fora da cidade. Dizem que estão correndo até agora.

- Ha há há. Será que não aprendem. Bom pela reação que você está me contando parece que o povo aprendeu. Será que está assim em toda parte?

- Olha, pelas notícias que o comunicador traz, parece que sim. As pessoas preferem não ter um governo central. Parece que é voz comum e decidem tudo em assembleias, como aqui na cidade.

- Hum, por um lado me sinto melhor assim. Mas será que algum dia vamos voltar a ser o que éramos?

- Ser o que? Amargos, egoístas, fúteis e umbigocentristas?

- Esta última palavra não existe!

- Um amigo meu sempre a usava.

- E que merda quer dizer?

- Meu umbigo é o centro do universo!

Os dois explodiram numa gargalhada uníssona.

Depois que o riso acabou, ficaram os dois contemplando a estrada.

- Os estradeiros estão fazendo um ótimo trabalho mantendo os caminhos arrumados.

- Sim e não só eles. Os cultivadores com as plantações, os curadores com os hospitais, os ensinadores com as escolas, os guardiões com a segurança...

- Nós com a caça...

- Sim reparou que todos têm uma função, ninguém questiona. Todos se sentem felizes fazendo o que gostam e a cidade segue em frente.

- É ...

- O que será que eles queriam a final?

- Eles quem?

- Os aliens. Eles vieram, destruíram a sociedade como a conhecíamos, e depois foram embora. Não houve ataque, não houve invasão. Nem um comunicado.

- Sei lá. Vai saber o que vai na cabeça de uma raça que nem sequer chegamos a ver.

- É..

- Vamos acabar de chegar.

Levantaram-se continuaram a jornada. O sol já começara a descer, mas ainda provia um calor agradavel. Mercê das imensas arvores favorecendo um clima ameno.

À entradinha da cidade um bando de crianças corria atrás de uma bola feita com couro de boi e recheada de trapos velhos.

Os caçadores olharam com um meio sorriso para os pequenos e já haviam passado pelo grupo quando uma briga explodiu entre os dois times. Cada qual gritando mais alto que o outro e querendo a bola para si.

O mais novo deixou sua padiola no chão e voltou a passos lentos para o grupo. Sua chegada impôs silencia instantâneo.

- Muito bem o que houve?

- Dois dos mais velhos do grupo se adiantaram e começaram a falar ao mesmo tempo.

- Eles estão dizendo que fizeram gol, mas não fizeram, queremos a bola e vamos brincar em outro lugar.

- Mentira, ele sabe que marcamos. Vamos pegar a bola e vamos embora jogar lá no campinho do rio.

E algazarra se restabeleceu.

O Caçador olhou para o mais velho que, aparentemente alheio a tudo, mascava um pedaço de carne seca.

O mais novo se abaixou, pegou a bola, colocou-a debaixo do braço e voltou-se tranquilo. Ao ver aquilo os meninos pararam a discussão imediatamente.

- Caçador, caçador? Onde vai com nossa bola?

- Se vocês não sabem brincar juntos não merecem o brinquedo. Quando aprenderem a brincar juntos, vão lá em casa e eu devolvo a bola.

Todos os meninos calaram-se e baixaram os olhos.

Ele apanhou as hastes de sua padiola e voltou a puxa-la.

- Sabe, acho que foi isto.

- Foi isto o que?

- O que eles queriam.

- Os meninos?

- Não garoto! Os aliens. Era isto que eles queriam. Disse o mais velho olhando para a bola.

- Não entendi.

- Eles queriam que aprendêssemos a brincar juntos. Por isto tiraram nossos brinquedos.

O mais novo olhou demoradamente para a bola e depois para o mais velho. Deu um suspiro e voltaram a caminhar levando a caça para o açougue comunitário.

Longshot
Enviado por Longshot em 24/10/2016
Reeditado em 25/10/2016
Código do texto: T5801939
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