APOSENTADORIA (revisado)

Estavam casados há 50 anos. Trabalhavam há 75. Finalmente chegara o dia da Aposentadoria. Pela primeira vez suas vidas iriam lhe pertencer! Mas as necessidades dos seus trabalhos eram imperiosas. Ele estava em missão e ela precisava concluir várias análises antes de poderem desfrutar de sua liberdade. Até antevendo isso, a festa de comemoração só fora marcada para daqui um ano.

Por isso mesmo seu dia começou como outro qualquer. Levantou-se, tomou café, fez seus exercícios matinais, se arrumou e foi caminhando para o serviço. A manhã estava agradável, como quase todas. Dentro dos Domos, com clima absolutamente controlado, era sempre assim. Fosse nos do Hemisfério Norte ou nos do Hemisfério Sul. Eles até faziam pequenas variações para que não se tornasse monótono. Do lado de fora a natureza continuava caprichosa como sempre fora. Dependendo da região, furacões e tornados eram comuns. Secas prolongadas ou excesso de chuvas. Sempre que o marido ficava em casa a 1ª coisa que o entediava era a regularidade do clima. No 28º dia reclamava, podia apostar sem medo de errar.

Ela trabalhava na maior construção do Domo, o Instituto de Neurociência Aplicada. Era historiadora sênior. Uma das 25 maiores especialistas do mundo em 2ª Guerra Mundial. Seu campo de estudos específico era a Batalha de Stalingrado. Mas seu trabalho diário envolvia análises que abrangiam qualquer lugar do mundo entre 1914 à 1953. Tanto que seu trabalho atual era uma análise sobre as condições nas minas de diamante na Namíbia depois da 1ª Guerra Mundial. Mas diferente dos seus colegas do passado, sua preocupação era tentar montar um quadro da situação da época que fosse o mais completo possível. Incluindo sons, cheiros, lugares, cores, tudo. Era ela que fornecia os subsídios para que os Reguladores pudessem ajustar continuamente a alimentação da estimulação neural dos "sonhadores". Noventa por cento da área do Instituto em que trabalhava era destinado a fornecer fantasias históricas às pessoas. Desde a segunda década do século XXI nenhum estimulo natural poderia se comparar aos produzidos artificialmente. Há uns 300 anos estavam proibidas as criações de mundos imaginários como forma de recreação. Sendo assim sua profissão era de suma importância, dado que qualquer estória tinha que estar estritamente baseada na História.

Quase que nascera para a tarefa. Seu mapa genético estava todo esquadrinhado antes de nascer. Mas não antes de ser concebida. Apesar das concepções e gestações serem controladas, não havia manipulação nos embriões, fora a eliminação de doenças e deformidades. O óvulo e o espermatozoide ainda eram fornecidos pelo casal. Cada criança ainda era a consequência da união de seu pai e da sua mãe. Pelo perfil já se tinha uma ideia desde o nascimento qual seriam as aptidões e se dirigia as atividades da pessoa para isso. A clonagem atingira o nível da perfeição, no entanto era rigorosamente proibida. Era conhecida como a Lei de: Um Corpo; Uma Vida. A população era regulada cuidadosamente. Cada casal podia ter dois filhos, sendo que não escolhia o sexo deles. Alguns casais privilegiados, rigorosamente por mérito, podiam ter mais. Eles possuíam quatro.

Todo esse sistema era uma herança da Grande Crise do séc XXI. Por volta de 2050 a tecnologia superou o problema energético, tornando obsoletos o petróleo, o carvão, o gás natural e outras. As tecnologias de informação deixaram o ser humano obsoleto também. Não havia nada que o homem fizesse que uma maquina não pudesse fazer melhor. Junte isso a elevação abrupta dos níveis do mar que cobriu grande parte das cidades costeiras e planícies baixas. A enorme convulsão social fez com que as elites buscassem se isolar do resto da população. E assim 400 anos atrás os Domos surgiram.

Mas a humanidade não se encontrava só neles. Existiam bases na Lua, em Marte, no Cinturão de Asteroides e nos satélites de Júpiter. E claro, ainda na Terra em estado selvagem. Estes eram 700 milhões. Em contraste com os 70 mil nos Domos e os 10 mil nas estações espaciais.

Essa diferença era motivo de grande preocupação. Era consenso geral que a população selvagem deveria ser controlada. Tanto o seu crescimento demográfico quanto o seu desenvolvimento técnico. Esse era o serviço do seu marido. Seu "Lawrence da Arábia". Ela deu um sorriso involuntário pensando na comparação. Ele se misturava entre eles como um negociante de armas. Fazia assim o mesmo que tinha sido feito com as tribos indígenas norte-americanas no séc XIX e com os africanos no final do séc XX. Os armava além do seu desenvolvimento e deixava que sua cupidez fizesse o resto. Para quê os matar se eles fazem isso por si mesmo tão bem?

Depois que ele voltasse ficariam um ano inteiro juntos. Os filhos já haviam conseguido licenças especiais para poderem estar um tempo com eles. Sentiu uma tristeza funda no peito. Diferente do que ela sonhava, seu marido havia escolhido, após este ano, viver como agente permanente entre os selvagens. Entendia racionalmente, afinal sempre fora a função dele. Sempre imaginou que ele devia "esquecer" as suas conquistas sexuais nos seus relatos sobre seu tempo fora. Mesmo assim como alguém podia preferir este mundo de incertezas?

Sua câmara neural já estava pronta. Nasceria em 1898 em Moscou, seria importante na Revolução, participaria da Batalha de Stalingrado como comissária política, depois se tornaria diplomata em vários países e morreria antes da Queda do Muro de Berlim. Teria filhos e netos e seria feliz. Mas queria de alguma forma encontrá-lo, mesmo sem saber que era ele...

Aristoteles da Silva
Enviado por Aristoteles da Silva em 04/11/2016
Reeditado em 04/11/2016
Código do texto: T5813275
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