GÊNESIS: IMPASSE

Acordou quando o módulo de exploração acoplou-se na naveta.

"Você deve entrar direto na câmara de desinfecção e seguir pelo corredor transparente até seus aposentos."

"Gaia, você ainda consegue operar em modo verbal?"

"Sim."

"Então a partir de agora, por favor, quando eu estiver sozinho, use-o! Quero conseguir ter uma conversa normal com alguém enquanto estiver aqui. E não precisa me passar nenhum dado. Eles que se virem para explicar porque me mandaram subir."

-Como desejar.

Gostou da voz dela. Feminina, suave. Há cento e vinte anos que tentava imaginar como ela soaria. O chip instalado em seu cérebro permitia que tivesse acesso a todo conhecimento acumulado da humanidade e a todas as determinações do comando da missão de colonização, sempre por intermédio dela. Através dela também transmitia todos os dados e análises que fazia em campo, na superfície da Nova Terra. E estes eram extensos. Como único analista no planeta, já havia visitado todas as comunidades humanas, muitas mais de uma vez.

Olhava tudo com interesse, como se nunca houvesse visto antes. O que era estranho pois tinha nascido e vivido seus primeiros vinte anos ali. A primeira coisa que o incomodava era a gravidade muito menor. Desde o embrião tinha sido preparado para viver no planeta. Seus ossos e músculos eram mais desenvolvidos do que o dos outros, similares ao da população na superfície. Os pesos de metal na vestimenta, que tentavam substituir a gravidade pelo magnetismo, não pareciam ajudar muito.

-Gaia, tem como dormir sem essa roupa?

-Retire-a e deite na cama.

Obedeceu. Surgiram pequenos arcos sobre o leito que pareciam fazê-lo sentir-se lá em baixo. Afofou o travesseiro e espreguiçou-se.

-O que eles querem comigo Gaia?

-Não estou autorizada a revelar. Lhe será explicado na reunião, daqui a sete horas padrão.

-No horário planetário, por favor.

-Quatro horas e vinte minutos.

-Obrigado.

Não entendia o porque de tanto mistério. Mas devia ser algo muito importante. Era o primeiro observador que voltava ao espaço depois da erupção do grande vulcão Thor. Cinco mil anos, muito tempo. E mesmo assim as marcas das interferências deles estavam por toda parte. Nas línguas, nos costumes, nas lendas. Mas principalmente nas religiões. Vários deuses e valores tinham sua origem facilmente rastreados até um agente de campo. Chegava a ser enjoativo o número de culturas que seu patriarca era um tipo de Noé, Moisés ou Jonas. O monoteísmo é singular na história terrestre, apenas o Judaísmo começou assim. A natureza humana é politeísta, mesmo assim metade das civilizações da Nova Terra reverenciava um Deus só. Contra a filosofia de não interferência inicial da Gênesis, a nave colonizadora que saíra da Terra. E da Gaia até hoje. Essa, em teoria, era a justificativa de haver apenas um agente de campo por vez e do rígido código de conduta de não ensinar nada que pudesse originar grandes transformações. Sempre se perguntou porque isso não incluía a infertilidade. Começou a contar o número dos filhos que sabia serem seus. Adormeceu perto de duzentos.

"Oficial de Observação de Campo?"

"Ahn... Gaia?... Já te pedi quantas vezes para não falar na minha cabeça quando estou dormindo?"

"Quem fala é o Primeiro Oficial de Navegação."

"Perdão, senhor. Estou desacostumado."

"Tudo bem. Vista o traje de isolamento que está na porta. A reunião vai começar daqui a meia hora."

"Se vamos conversar mentalmente, porque se encontrar?"

"A situação é muito séria, o protocolo exige que seja assim."

"Que assim seja então."

Quando foi se levantar quase bateu no teto. Resmungava contrariado enquanto vestia o traje. Se não fosse outro cataclismo iriam se arrepender de tê-lo trazido de volta. Seguiu andando uns vinte metros por um estreito corredor vazio. Setas no chão lhe indicavam o caminho. Na sala estavam vinte pessoas, todas com o mesmo traje branco que lhes transformavam quase em uma mesma criatura. Seguiram-se as apresentações, apenas o alto comando.

"Oficial de Observação, qual a sua opinião sobre o Império Kanu?"

"Grande civilização do continente norte. Do tipo hidrográfica, como a China e o Egito clássicos, nasceu da união das pessoas para grandes obras de contenção dos seus rios. Seu enorme tamanho faz com que seja pacífica por natureza. Até demais, na minha opinião. Mas provavelmente sobreviverá muitos séculos por conta da natureza descontínua das massas não encobertas pela água do planeta. Talvez os Gamitros, do arquipélago ao lado deles, se tornem um país só e um dia o invadam. Mas eu acho difícil. Como eles mesmo dizem, se dois gamitros colonizam uma ilha, fundam três cidades estado."

"Bem, o país Kanu foi invadido, mas não pelos ilhéus. Foi uma coalizão de tribos do nordeste do continente. Eles agora preparam uma enorme frota para invadir as ilhas."

"Aquelas tribos selvagens? O que aconteceu, surgiu algum Gêngis Khan ou Maomé entre eles?"

"Isso mesmo. Ao que parece este acaba de falecer e é seu filho que organiza a invasão."

"Certo, mas qual é a grande questão aqui? Vocês querem me mandar para lá observar? Não precisavam me trazer para fazer isso."

"Nós o trouxemos para ajudar a decidir se vamos intervir ou não. A cultura Gamitro é excepcional. Estão mais avançados em tecnologia, arte e filosofia do que todas as outras civilizações da Nova Terra. Esta invasão pode ser extremamente danosa para seu desenvolvimento."

"Não vejo o motivo para esse alarme todo. Esses impérios pessoais costumam se fragmentar após a primeira geração. Pode até ser bom. Os invadidos podem acabar invadindo a cultura dos invasores e fazendo-a avançar ainda mais"

Fez-se um silêncio nas comunicações. Percebeu um mau estar geral. Em um primeiro instante ficou perplexo, mas então entendeu. O problema era justamente este. A propagação dos avanços da civilização insular poderiam apressar o surgimento do telescópio, o que os revelaria e obrigaria a Gaia a aterrizar e se esconder. Sua presença ali devia-se ao fato deles não conseguirem suportar o peso da decisão sozinhos.

"Fico triste com essa decisão, mas o fim de uma civilização como aquela seria imperdoável. Como seria a intervenção?"

"O módulo que o levará de volta subirá de novo e será jogado no mar, próximo aos barcos do invasor."

"Sendo assim a apoio. Peço para me aposentar agora. Quero aproveitar um pouco a vida que me resta. Também acredito que não continuarei fazendo um serviço de qualidade após fazer parte desta torturante decisão."

Os vinte outros na sala pareceram sorrir. Pena que não poderia pedir para Gaia repassar sua última frase. Nunca pensou como soaria o sarcasmo na linguagem telepática. Será que perceberam? Na verdade, será que ainda eram humanos?

"É o seu direito. Agradecemos os anos de serviço. Sua ligação conosco será cortada assim que deixar a nave, como de praxe."

"Obrigado. Se for possível gostaria de voltar imediatamente."

"Como desejar."

Saiu da sala e seguiu direto para o módulo.

-Gaia, pode me escutar.

-Sim, senhor.

-Quero ficar na ilha 4215 do arquipélago de Gamintros.

-A ilha imperial?

-Esta mesma. O imperador ainda tem filhas em idade de casar?

-No último festival de inverno foram ofertados cinco barcos de flores a deusa do mar.

-Perfeito.

Começou a pensar em como faria para que acreditassem que a grande onda seria obra sua. Depois em como casar com alguém da família imperial. Como o Japão feudal, o povo que ia ser salvo só se unia em torno do seu regente nominal. E como ele e a Inglaterra Moderna, seria salva por uma intervenção dos céus que destruiria a frota de um invasor poderoso. Pela tradição, o imperador era descendente do deus oceano. E no futuro também dele, seu novo herói ou profeta. Quem sabe, até sua nova divindade. E quem poderá reclamar, afinal quem deveria vigiar para que isso não acontecesse é o principal responsável. Entrou no módulo sorrindo.

-Adeus Oficial de Observação, espero que tenha uma boa vida.

-Terei Gaia. Terei. Antes que nos desliguemos, recite para mim Eclesiastes livro 1 versículo 11.

-Já não há lembrança das coisas que precederam, e das coisas que hão de ser também delas não haverá lembrança, entre os que hão de vir depois.

Iniciou sua viagem de volta pensando em quanto Salomão estava errado. E no quanto acertara ao dizer que tudo era vaidade...

Aristoteles da Silva
Enviado por Aristoteles da Silva em 25/11/2016
Reeditado em 26/11/2016
Código do texto: T5834722
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