CAPITÃO SMITH

A vida é uma caixa de surpresas. Muito embora ainda houvesse amizade, do casamento só restara o contrato matrimonial. Dentro dos cinco anos de casados, o amor nunca existira de verdade, ou então fora negligenciado. Samuel e Gabriela não encontraram nenhuma possibilidade de salvar a relação conjugal. Depois de uma longa conversa, decidiram-se pelo divórcio amigável. Samuel era escravo do trabalho. Gabriela, por sua vez, ressentia-se da falta de atenção. Não existe uma fórmula perfeita para um casamento dar certo. O relacionamento afetivo tornara-se uma relação de amor e ódio. As brigas tornaram-se constantes. Por fim, separaram-se. O divórcio foi a melhor solução naquele momento tempestuoso. Depois da separação conjugal, encontravam-se vez ou outra para almoçar. Algum tempo depois, ela contraiu núpcias e mudou-se com o novo marido para São Paulo. Ele continuou morando no Rio de Janeiro, onde administrava uma indústria têxtil de sua propriedade que herdara do falecido pai. Samuel era administrador de empresas. O seu hobby era a navegação marítima. Com muito sacrifício financeiro, conseguira adquirir um iate motorizado há algum tempo. Não via nesse passatempo um símbolo de prosperidade econômica, mas tão somente um lazer. O seu trabalho era muito estressante. Por isso, tentava espairecer navegando em alto-mar. O iate foi batizado com o nome de Capitão Smith, em homenagem a Edward Smith, comandante do transatlântico Titanic, naufragado em sua viagem inaugural.

Após concluir os seus afazeres profissionais, Samuel decidiu gozar férias. Programou com um amigo uma pescaria em alto-mar. Marcaram as férias para o mesmo mês. Além da oportunidade de relaxar, a navegação marítima era também uma oportunidade de despertar o potencial criativo, e Samuel precisaria de muita criatividade para alavancar os negócios da empresa. O Iate Clube dispunha de uma completa infraestrutura de lazer e esporte. Quando não navegava, praticava tênis para manter o preparo físico. Samuel e Mateus fizeram juntos o curso de formação de capitão amador. Mateus era contador. Trabalhava para uma empresa multinacional do setor financeiro. Era uma quinta-feira de janeiro. Combinaram o embarque para o sábado. No dia seguinte, Samuel foi ao clube para checar os equipamentos náuticos. Estavam todos em perfeito estado de funcionamento. Tudo pronto para mais uma aventura, só que essa marcaria a sua vida para sempre.

Chegando em casa no final da tarde, Samuel precisou apenas de alguns minutos para arrumar a bagagem. Mateus ficou encarregado de comprar os mantimentos, o suficiente para os dez dias que passariam embarcados. De volta do supermercado, Mateus fez os últimos preparativos para a pescaria. Deitou-se cedo, por volta das vinte e uma horas. Tratou com Samuel de encontrá-lo às oito horas no estacionamento do clube. Aquela noite tinha tudo para transcorrer normalmente. Entretanto, Mateus acordou assustado no meio da madrugada. Tinha sonhado que estava diante de uma esfera enorme que irradiava uma intensa luz branca. Nada do que sonhara fazia sentido para ele. Um vento suave soprava através da janela do quarto nesse momento. Mateus não se mexeu. Em seguida, virou-se para o lado da janela e dormiu novamente.

O sábado amanhecera com o céu aberto. Às sete horas, o despertador tocou. Mateus abriu os olhos. Permaneceu deitado por alguns instantes, tentando vencer o sono. Por fim, ficou de pé e caminhou até a cozinha. Enquanto ia caminhando, pensava no sonho que o assustara. Quando terminou de lanchar, vestiu-se, pegou a bagagem e saiu. Fechou a porta e girou a tranca. Desceu de elevador até a garagem, e colocou a bagagem no porta-malas. Ao abrir a porta para entrar no automóvel, foi tomado pelo pressentimento de que um fato inusitado estava prestes a acontecer, mas não via nisso motivo para desistência. Nesse momento, o celular tocou. Mateus levou-o ao ouvido. Era a voz de Samuel. Aparentemente estava tudo transcorrendo conforme o combinado. Samuel o aguardava no clube. Mateus disse ao amigo que já estava a caminho. O relógio do celular marcava sete horas e meia. Havia tempo de sobra. O clube ficava localizado próximo de onde morava. Com um assomo de autoconfiança, entrou no automóvel, endireitou o retrovisor, deu a partida no motor e seguiu sem pressa.

O clube estava lotado por causa do fim de semana. O parque aquático oferecia vestiários e uma lanchonete exclusiva para uso dos sócios. Um amplo estacionamento estendia-se por toda a área do clube, facilitando o acesso dos banhistas às piscinas. Samuel e Mateus encontraram-se no estacionamento e seguiram para a garagem náutica. Já estavam atravessando o píer quando Samuel lembrou-se de que havia esquecido o GPS no porta-luvas do automóvel. Retornou ao estacionamento em companhia do amigo. Pouco tempo depois, estavam de volta. Samuel trazia o aparelho receptor no bolso da jaqueta. Precisaria dele para se informar sobre a posição exata da embarcação. Um fato extraordinário aguardava-os sobre o “mar de Atlas”. Na mitologia grega, Atlas foi um titã condenado por Zeus a carregar o mundo nas costas. Quando Atlas morreu, o mundo continuou sendo uma nau à deriva. A criação do nome do oceano Atlântico foi inspirada nessa divindade mitológica da Grécia Antiga. Aos dez dias de abril, a aventura teve início. Tempo bom e mar calmo. Nada a temer.

O barco já havia se afastado mais de cinquenta milhas náuticas da costa, navegando a uma velocidade de dez nós. A bandeira nacional tremulava no mastro. Samuel e Mateus só viam água e céu. Às vezes, avistavam uma embarcação navegando ao longe. O mar estava calmo. Samuel desligou o motor. Passados alguns minutos, o iate parou. Fez a ancoragem logo em seguida. Enquanto isso, Mateus examinava um atlas oceanográfico. A embarcação dispunha de um drogue, que é uma âncora flutuante utilizada para diminuir o andamento do barco no mar.

O dia seguinte foi igual ao anterior. Água, céu e, às vezes, uma embarcação navegando a distância. Não havia previsão de chuva para aquele dia. Pelo menos até aquele momento. Eram oito horas de um dia de céu aberto. Um ar de tranquilidade transparecia nos rostos dos tripulantes. A calmaria era tão soberana quanto a vastidão oceânica. O tempo demorava a transcorrer. Essa era a sensação que experimentavam. Entediados, Samuel e Mateus decidiram fazer uma pescaria. Há muito que vinham esperando pela oportunidade de pescar um atum. Lançaram o anzol ao mar e ficaram na expectativa. Samuel confiava como ninguém na intuição. “Vai ser hoje!”, exclamou confiante. Entretanto, à medida que os minutos passavam, ia perdendo no mesmo compasso a confiança nela. Mateus afastou-se do gradil, sentou-se em um banco e cruzou os braços, aparentando desânimo. Isso deixou Samuel mais fulo ainda. A vontade que tinha era pular na água e pegar um atum pela cauda. Passaram o resto do dia na esperança de que um atum fisgasse a isca. No entanto, tiveram de amargar a tentativa frustrada. Quando já estava anoitecendo, convenceram-se do mau êxito da pescaria. Recolheram a linha. Para se consolarem do malogro, comeram filé de atum em conserva na janta.

Quando terminaram de jantar, foram até a proa da embarcação. Mateus levantou os olhos ao céu. Este parecia um manto escuro bordado a fio de lã com incontáveis estrelas e uma Lua Cheia. Lembrou-se do sonho que lhe causara espanto. Logo chegou a esta conclusão. A esfera branca e reluzente que se aproximara dele no sonho só podia ser a Lua. O que mais poderia ser? Este entendimento o satisfez. Não pensou mais nisso. Samuel e Mateus passaram aquela noite trocando ideias. Não havia mais nada a fazer para preencher o tempo senão conversar.

Quando o Sol despontou no horizonte, recolheram-se aos seus aposentos. Depois de poucas horas, Samuel acordou. Não costumava dormir muito. Sem nada para fazer, pegou o álbum de fotografias para dar uma olhada. Depois de volver algumas folhas, deparou a fotografia de Gabriela ao seu lado na praia de Ipanema. Costumavam ir à praia nos fins de semana. Nesse instante, irrompeu uma sensação de saudade do tempo em que eram marido e mulher. Até certo ponto, podia ser um efeito do isolamento em que se encontrava, mas, no fundo, ainda gostava dela. Por mais que não quisesse admitir, a ausência de Gabriela o entristecia. As lembranças do casamento surravam-lhe a alma. Durante alguns minutos, enquanto recordava o passado, esteve ausente do corpo. Lançou os olhos ao redor, como se procurasse pelo rosto da ex-esposa em algum canto do quarto. Depois de matar a saudade, fechou o álbum fotográfico e passou a mão pela capa aveludada. Pegou uma folha de papel e uma caneta na escrivaninha. Deitou-se novamente na cama, ajeitou o travesseiro e deu um tempo para que viesse a inspiração. Em seguida, começou a escrever. Quando terminou, leu o texto em voz alta. Era um poema. O título que escolheu para ele foi “Eu te amo”. Dobrou a folha de papel e colocou-a no bolso da camisa. Momentos depois, levantou-se da cama e retornou à proa do iate. Caminhou lentamente carregado de emoção, sentou-se em um banco e repetiu a leitura do poema, só que dessa vez em silêncio, como quem faz uma prece em um momento de angústia. Não disse tudo o que queria, nem escreveu da melhor maneira que podia, mas o poema proporcionou-lhe a catarse emocional de que necessitava. Terminada a leitura, ficou olhando fixamente o mar, absorto pelas lembranças que lhe assenhorearam o espírito. Virou-se em seguida e notou a aproximação do amigo. Diante dele, Samuel pediu que ouvisse o poema que escrevera para a ex-esposa. O amigo sentou-se ao seu lado, demonstrando interesse. Ao final da leitura, Samuel quis saber dele se havia gostado. Mateus confirmou com um gesto da cabeça. O poema que Samuel declamou para Mateus foi este.

É pouco o que eu tenho para te dizer,

É menos que um átimo, que um segundo,

Mas é muito mais que os átomos do mundo!

O que eu tenho para te dizer é pouco,

Suavemente breve, como a alva do amanhecer,

Mas é o que me faz gritar... até ficar rouco!

Com que poema eu poderia enfim declarar

Que és tudo de bom, e de melhor, para mim?

De quem tudo espero, e nada reclamo?

Não sei como, nem onde, nem quando te falar

Que és meu navio seguro, e meu mar sem fim:

Só queria que soubesses que... eu te amo!

Um vento cálido soprava nesse instante. Já havia passado do meio-dia. Levantaram-se e foram até a cozinha preparar o almoço. Dessa vez, o prato seria macarrão com molho à bolonhesa. Alguns minutos depois da refeição, foram para a cabine da embarcação. A informação de que dispunham era de que uma tempestade aproximava-se daquele local, mas isso não era novidade para eles, pois já haviam enfrentado outros temporais antes. Essa seria mais uma intempérie entre tantas. Não demonstraram preocupação com as condições meteorológicas.

O crepúsculo vespertino havia chegado, mas as nuvens não apresentavam a tonalidade rosicler do arrebol. As nuvens brancas que enfeitaram o céu durante o dia deram lugar a nuvens cinzentas. Naquele ocaso, a cor cinza era predominante em toda a extensão do céu. Cor sombria de um crepúsculo que ensaiava o seu pranto. Ventava muito e o mar ficara agitado. As ondas já atingiam a altura de quatro metros. Em face dessa visão, Samuel e Mateus começaram a ficar preocupados. Não queriam presumir o pior, mas já sentiam as primeiras pontadas de medo. Perceberam algo de estranho naquele cenário.

Pouco tempo depois, chegou a noite. O céu noturno não era sedutor. Pelo contrário, inspirava pavor. O mar revolto já apresentava ondas de até seis metros de altura. A tempestade desceu, desafiando a coragem de Samuel e Mateus. Pingos grossos começaram a cair do céu fechado. O aumento da velocidade dos ventos tirou do semblante deles o exíguo ar de tranquilidade que ainda restava. O mar agitava-se cada vez mais, e as ondas tornavam-se assustadoramente mais altas. Apesar do mau tempo, Samuel insistia na crença de que era uma chuva passageira. Fora assim em outras ocasiões. Não seria diferente dessa vez. Procurava a todo custo pensar positivamente, mas, de vez em quando, sentia o seu pensamento ser invadido pela apreensão. Samuel afastou-se da proa do iate e sentou-se em um banco. Sem nada dizer, Mateus ficou de pé ao seu lado. Um tanto preocupado, Samuel ficou de pé também. A inquietação de ambos crescia à medida que aumentava a altura das ondas. Durante a hora seguinte, a tempestade não se acalmou. As ondas alcançavam a altura de dez metros. Dez temíveis metros aos olhos dos dois navegantes. Só a ventura havia terminado, ou terminaria também a aventura? Os instantes seguintes revelariam a alternativa correta. O terror estava no ar. O mais preocupante naquele momento era uma possível instabilidade da embarcação decorrente da precipitação meteorológica. O barco poderia se inclinar até um extremo que impedisse a sua estabilização. Vista de longe, parecia uma onda com dez metros de altura. Porém, à medida que se aproximava, ela foi se tornando cada vez mais alta. Cada vez mais ameaçadora. Passado um instante, e mais próxima do iate, a onda alcançou a altura de cerca de doze metros. A instabilidade iminente era inevitável. De repente, um globo luminoso surgiu na escuridão celeste. À medida que se aproximava, aumentava de tamanho. Com este, crescia também o esplendor. A luz branca que irradiava clareou o local onde estava o iate. “Não era a Lua, era uma espaçonave extraterrestre!”, gritou Mateus. Samuel lançou-lhe um olhar de surpresa sem tecer nenhum comentário. Não entendeu o motivo do pasmo. Nada sabia do sonho. A luminosidade era muito forte. Muito, muito forte, mas não tão forte a ponto de fazê-los cerrar os olhos. Fugir para onde? Entraram em desespero. “Acho que veio nos ajudar!”, disse Samuel, tentando controlar o medo. Estas palavras não surtiram o efeito desejado. Nesse momento de tensão exacerbada, tiveram reações diferentes. Apavorado, Mateus vestiu um colete salva-vidas e jogou-se no mar. Admirado, Samuel permaneceu estático. O êxtase embaraçou-lhe os movimentos, impedindo que abandonasse a embarcação. Mateus estava certo. Era um objeto voador não identificado medindo cerca de trinta metros de diâmetro. Sem esboçar nenhuma reação, Samuel sentiu o seu corpo flutuar, como se não houvesse gravidade. Estava sendo abduzido pela cosmonave. Pensou em gritar, mas se conteve. Durante a abdução, não conseguiu se mexer. Contudo, o efeito paralisante da abdução não lhe afetou a voz. “Gabriela, eu te amo!”, disse Samuel pouco antes de entrar na nave extraterrestre. Foi essa a última declaração de amor que fez durante a sua estada na Terra. Logo depois, a astronave subiu ao céu com uma velocidade espantosa.

No instante em que a onda gigantesca alcançou o iate, a sua altura já havia ultrapassado quinze metros. A embarcação, que era de pequeno porte, não resistiu ao acidente e naufragou. Apesar das buscas realizadas pela Capitania dos Portos, o corpo de Mateus não foi encontrado. Provavelmente foi devorado por tubarões. Essa navegação oceânica representou a porta de entrada para um contato imediato de quinto grau, de acordo com a classificação ufológica universalmente aceita. Não sobrevive às tormentas quem evita o futuro, mas quem acredita nele com mais entusiasmo e menos temor. Arrojado por natureza, Samuel arriscou-se em uma navegação aeroespacial. Como disse o escritor e poeta francês Victor Hugo: “O futuro tem muitos nomes. Para os fracos é o inatingível. Para os medrosos, o desconhecido. Para os corajosos, a oportunidade”.

Carlos Henrique Pereira Maia
Enviado por Carlos Henrique Pereira Maia em 28/02/2017
Código do texto: T5926457
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