POR QUE ME PERSEGUES?

Para muitas pessoas, chega um momento inesperado na vida em que o palco da verdade é descortinado. Neste instante, a descrença se transmuta em crença, e esta, em face de indubitável evidência, em certeza inabalável. A visão do mundo muda. A postura social muda. Os valores, os preconceitos... tudo muda quando vem à consciência incrédula a certeza absoluta de que existe, muito além do que é humanamente concebível, um Ser Supremo, idealizador e criador de todos os homens, de todos os céus e de todos os tempos.

Paulo de Tarso, então soldado romano, cavalgava por um extenso oceano de areia, por um deserto que parecia interminável para os seus olhos já cansados. A certa altura do caminho que trilhava extenuado, deparou-se com uma luz forte, que indicava a presença de um espírito muito evoluído tanto para a quela época quanto para a época atual. Na estrada de Damasco, de repente, um brilho intenso que descia do reino dos Céus tirou-lhe a visão. — Saulo, Saulo, se nada te fiz, por que me persegues? — disse a voz. Paulo de Tarso, sem conseguir abrir os olhos, perguntou com um sentimento de insegurança que lhe invadira o pensamento. — Quem és? — nada mais. A resposta não tardou. — Eu sou Jesus, a quem tu persegues! — deixando o soldado romano hesitante, sem palavras e sem ação. Amedrontado diante da situação inusitada e sobrenatural.

Em algum ponto do tempo, a verdade emerge, convincente e inquestionável, das profundezas da ignorância e esclarece o que até então era, para o espírito, uma nuvem espessa de dúvidas e incertezas insanáveis, seja no antes, no agora, ou no depois, considerando a relatividade do tempo. Paulo de Tarso converteu a sua descrença em crença ainda em carne e osso, porque havia um plano da Espiritualidade Superior traçado para a vida daquele homem que fora, durante muito tempo, um caçador obstinado dos cristãos, da fé religiosa e do poder libertador da redenção espiritual. Motivado pela mesma inveja que levou Caim a assassinar Abel, Saulo solicitava ao Grande Sacerdote cartas de apresentação para poder ameaçar de morte e prender os seguidores do Cristianismo, que crescia em popularidade. A inveja, quando incontida pelos freios morais, pode tornar-se uma arma perigosa e até mesmo letal.

Ao longo da História, a discriminação sempre deu causa a muitas desavenças e tragédias variadas. Alguns seres humanos são discriminados porque nasceram com a pele negra. Outros, porque nasceram com predisposição à homossexualidade. Outros, porque nasceram judeus (Hitler que o diga). E outros, ainda, porque nasceram no berço desconfortável da miséria, na linha da extrema pobreza, como uma vocação para a marginalização, como uma vocação para a criminalidade, como uma vocação para a desgraça. Sem falar do etnocentrismo, esta tendência generalizada entre as sociedades humanas de se valorizarem ao máximo para serem vistas pelo mundo como as melhores. Apesar de tudo, de toda diversidade biopsicossocial e cultural (porque o homem está imerso na linguagem e na cultura de sua época), a tolerância é possível, a boa convivência é possível. Deus, que transcende o limite da possibilidade, sabe perfeitamente o que faz, como faz e quando faz. Na condição existencial humana, porém, não há um caminho correto, previamente definido e calculado para dar certo. Existem o caminhante, os seus passos e o rastro de sonhos, realizações e frustrações que fica registrado ao longo da caminhada terrena. A vida em sociedade segue o método de aprendizagem de tentativa e erro. Errar é humano. Aprender com o erro é sinal de humildade e força de vontade. Persistir no erro é que conduz invariavelmente à estagnação e ao fracasso.

Sabe aqueles dias em que tudo parece normal no trabalho, mas algo fora do normal acontece e modifica radicalmente a maneira de pensar a vida? Pois é! Esta é a história de um homem que desafiou a mudança e o impossível, porque, para ele, criar e arriscar eram as ferramentas ideais para projetar o melhor caminho a seguir no mundo. Ao final da peregrinação espiritual à qual se propusera iniciar, experimentou o sétimo céu.

Cedo pela manhã, alguém soltara um peido com efeito sonoro. O fedor que se seguiu ao ruído era a prova olfativa desse fato que, a princípio, é natural, mas que se torna antissocial quando é praticado dentro do elevador de um edifício comercial. Que coisa feia! Quem teria sido o porco, ou a porca? Amargar um peido sonoro logo pela manhã é desanimador. Ninguém merece. Chega a ser até uma penitência. Assim que o ascensorista abriu a porta, todos evadiram rapidamente do elevador com uma das mãos cobrindo o nariz. Parecia uma manada de alces fugindo de um tigre em disparada. Cláudio deu alguns passos, colocou o lenço que usara para tapar o nariz no bolso do paletó, abriu a porta do escritório, entrou em sua sala e sentou-se à mesa. Pegou o bule e encheu a xícara. Quatro goles foram suficientes para beber todo o conteúdo. Como sempre fazia pela manhã, a secretária tinha acabado de preparar o café. Dotado de uma lucidez incomum, Cláudio era um advogado especializado em causas cíveis e criminais. Trazia uma força de vontade inquebrantável na personalidade, o que lhe era favorável na defesa dos lídimos interesses dos clientes. Sonhava alto, mas com os pés no chão. Estava estudando para prestar concurso público para a Magistratura. O falecido pai chegara ao cargo de Desembargador, e ele queria enveredar pelo mesmo caminho. Outro traço marcante de sua personalidade era a busca incansável pela verdade. Aprendera com o pai a procurar o equilíbrio entre a crença e a razão, pois aquela supre as limitações desta, oferecendo teorias para esclarecer os fatos que carecem de explicação à luz das ciências humanas, e esta supre a inconsistência daquela, traçando os limites do que é aceitável à luz do bom senso. Em outras palavras, seguia pelo caminho do meio, equilibrando-se entre a fé e a lógica. Cláudio era um homem que queria compreender a vontade de Deus, e não apenas acreditar na pregação religiosa, muitas vezes eivada de interesses financeiros escusos e inconfessáveis. Mais que isso, queria ter certeza absoluta de sua existência, de tal forma que pudesse falar de Deus com convicção. Viera ao mundo com a semente da intuição, mas esta ainda não havia germinado.

A esposa ligou avisando que iria visitar a mãe, que não estava bem de saúde, e retornaria à noite para preparar o jantar quando a situação estivesse sob controle. Cláudio ouviu o recado e disse que estaria à disposição para qualquer emergência. Pousou o fone no gancho e endireitou-se na cadeira. No instante seguinte, olhou para a fotografia do pai sobre a mesa. Sentiu um arrepio. Talvez ele estivesse ali para lhe fazer uma visita. Nas pessoas sensitivas, como Cláudio, o arrepio indica a presença de um espírito. Enquanto arrastava o porta-retratos para mais perto dos olhos, teve uma ideia. Vestiu o paletó, pegou o elevador e desceu até o térreo. Atravessou a rua a passos largos, caminhou para a direita e dobrou a primeira esquina. Naquela rua funcionava uma loja de artigos religiosos. Comprou um baralho cigano. De volta ao escritório, ouviu passos às suas costas enquanto caminhava pelo corredor. Virou-se rapidamente. Não havia ninguém. Estava quase chegando ao escritório quando ouviu novamente os passos. Virou-se mais uma vez e percorreu os olhos pelo corredor. Ninguém por ali. Entrou no escritório, fechou a porta, tirou o paletó e sentou-se à mesa. Abriu a caixa do baralho cigano e escolheu uma carta aleatoriamente, mantendo os olhos bem fechados. Em seguida, levantou-se, deu seis passos à frente e colocou-a cuidadosamente em cima da estante, de maneira que ninguém pudesse vê-la. Queria manter isso em segredo. Não sabia qual era a carta. Já estava de saída para uma audiência quando a campainha tocou na recepção. A secretária levantou-se e abriu a porta. Era um amigo de Cláudio, Alexandre. Também advogado, este amigo tinha combinado com Cláudio de irem juntos até o fórum. Alexandre ofereceu-se para levar o amigo em seu automóvel. O ascensorista abriu a porta do elevador. Desceram até o térreo. O automóvel estava estacionado em frente ao prédio. Um garoto de rua tomara conta dele durante a sua ausência. Alexandre meteu a mão na carteira de dinheiro e pagou-o pelo serviço de vigia. Deu a partida no motor, ajeitou o retrovisor e partiu para o fórum, que se localizava a dez quarteirões dali.

Para atingir o objetivo que tinha em mente, Cláudio já havia dado o primeiro passo. Comprou um baralho cigano, retirou uma carta ao acaso e a colocou em cima da estante, tudo conforme a intuição o aconselhara. O próximo passo consistia em descobrir qual era a carta. Essa seria a fase decisiva, na qual depositava toda a esperança. Desde a adolescência, estivera às voltas com o ocultismo. Dessa vez, intentava desvendar o mistério da morte de forma incontroversa, para nunca mais ocupar-se com tal dilema. A decisão estava tomada. Fez uma prece com as mãos juntas diante do peito. Com um assomo de ousadia, propôs a Deus que lhe provasse a sua existência revelando o número da carta. Jamais fizera uma experiência dessa natureza antes. A incredulidade sempre lhe afirmara de forma categórica que era uma bobagem muito grande de sua parte supor que Deus se interessaria em provar a sua existência a um simples mortal. Como sempre dera ouvidos a ela, nunca testara a boa vontade divina. Não imaginava o dom que havia despertado dentro de si com a prece que fizera. O dom da intuição, que até então se resguardara por causa de sua hesitação. Depois de passar anos a fio acreditando em Deus, finalmente chegara a hora de trocar a crença pela certeza. Não arredaria os pés do terreno desconhecido em que havia pisado com tanta firmeza. No entanto, para se certificar da existência de um Ser Supremo, que preside o Universo e toda a vida que nele há, teria de aguardar pacientemente a revelação divina. Naquele momento, as palavras-chave eram estas: fé e paciência.

Por volta das vinte horas, Cláudio chegou em casa. “Gisela, cheguei!, disse assim que abriu a porta. A esposa o esperava para o jantar. Contou que a mãe recebera a visita de seu médico particular e fora devidamente medicada. Enquanto comia, Cláudio comentou com a esposa o pedido que fizera a Deus. “Isso é loucura”, disse Gisela, enquanto colocava um pouco de queijo parmesão ralado sobre a macarronada. Cláudio ergueu o rosto, olhou para ela e ficou quieto. Gisela era ateia. Nesse instante, Cláudio percebeu que não deveria conversar com mais ninguém sobre esse assunto. As pessoas educadas diriam que estava passando por um período de estresse, e que isso era devido ao excesso de estudo. As mal-educadas debochariam dele, dizendo que tinha enlouquecido de vez. O melhor a fazer nessa situação era mesmo guardar segredo. Ninguém lhe daria crédito. Quando olhou para o marido, Gisela notou as olheiras escuras sob os olhos. O rosto dele era a expressão do cansaço. Estudava toda noite pelo menos duas horas para o concurso público, e nos fins de semana dedicava ao estudo toda a parte da manhã. Terminada a refeição, foram para a cozinha lavar e guardar os utensílios. O marido a ajudou nessa tarefa. Enquanto ela lavava, ele guardava as louças e os talheres no armário. Depois dos vinte minutos seguintes, os olhos de Cláudio voltaram-se para o relógio de parede. Estava na hora de recolher-se ao escritório para estudar. Anotava no caderno os trechos que julgava relevantes. Já havia preenchido dois cadernos com essas anotações. Por volta da meia-noite e meia, já exausto e sonolento, fechou o livro de Direito Constitucional, guardou-o na estante e foi direto para o quarto. Gisela dormia. Receando acordar a esposa, deitou-se ao lado dela devagar, sem balançar a cama. Uma noite de sono era tudo de que precisava. No dia seguinte, teria de comparecer a duas audiências.

Durante a noite Cláudio acordou, calçou os chinelos e foi até a cozinha beber um copo de água. De volta à cama, virou-se para o lado da esposa e dormiu de novo depois de alguns minutos. Sonhou que estava no cume de uma montanha. Era dia claro. O azul do céu transmitia uma intensa sensação de tranquilidade. Ouvia o canto de pássaros ao redor, embora não os visse. Sentia-se confortável por dentro. Não havia ninguém por perto, mas pressentia a aproximação de alguém. Ergueu os olhos para o céu e viu descer um anjo. Pouco depois, o anjo firmou os pés no chão, olhou fixamente para ele e disse com uma voz que nunca ouvira na vida: “Você não sabe como descer desta montanha, as trilhas são acidentadas e vigiadas por feras em busca de presas indefesas, mas eu posso ensiná-lo a chegar até a base dela com segurança, se você assim me permitir. Vai dar tudo certo. Confie em mim”. Cláudio despertou ouvindo o farfalhar de asas. Levantou-se, caminhou até a janela e olhou para o céu. Havia estrelas cintilando, mas nenhum anjo voando. Voltou para a cama, cobriu-se com o cobertor e dormiu profundamente até o amanhecer.

Seis horas da manhã. O Sol já se preparava para despontar no horizonte, inaugurando mais um dia. O alarme do despertador a corda quebrou o silêncio. O casal acordou e saiu de baixo do cobertor. A esposa foi para a cozinha preparar o lanche. O marido foi ao banheiro tomar banho. Antes de sair de casa, Cláudio acariciou os cabelos da esposa, beijou-a na boca e caminhou até o elevador. O apartamento ficava no sexto andar. Na garagem do edifício de dez andares, deu a partida no motor do automóvel e seguiu para o escritório de advocacia. O Sol já nascera e o céu estava limpo. Era uma quarta-feira sem chuva do inverno de 1939. Cláudio trabalhou muito nesse dia, e no dia seguinte, até que na sexta-feira, de volta do trabalho, saiu com a esposa para jantar. O casal foi a um restaurante que ficava nas redondezas. Não houve necessidade de irem de automóvel. Andaram apenas duas quadras para chegarem ao restaurante. O jantar de sexta-feira era um compromisso quase religioso que tinha com a esposa. Ela gostava de jantar fora. Ele, também. Os garçons já os conheciam. Eram fregueses de longa data. Para comer, escolheram estrogonofe de filet mignon. Para beber, fizeram o pedido de sempre. Vinho cabernet sauvignon. Depois de servidos, passaram quase uma hora entre garfadas, goles e muita conversa. Ambos eram bons falantes, além de apreciadores de um bom cardápio e de um bom vinho. Ao final da refeição principal, pediram a mesma sobremesa. Torta de chocolate com recheio de doce de leite. Tinham muitos pontos em comum, entre eles o paladar exigente.

Cláudio passou o sábado inteiro dentro de casa, estudando. A data do concurso público estava se aproximando a galope. Reservou o domingo para ir à missa pela manhã. Embora fosse ateia, Gisela sempre o acompanhava. À noite, ficaram em casa, jogando xadrez. Cláudio não lera os exemplares do jornal de sua preferência nesse fim de semana. Quando chegou do trabalho na segunda-feira, escutou a campainha do telefone. A pessoa do outro lado da linha era a esposa. Ela fora ao supermercado e já estava de volta. Olhou para o relógio de pulso. O mostrador indicava que eram dezenove horas e quinze minutos. Cláudio tomou o banho habitual, pegou o jornal do sábado, recostou-se no sofá da sala de estar e pôs-se a ler as notícias. Reparou na fotografia de uma pessoa conhecida. Pensou um pouco até se lembrar de quem era aquele rosto. A mulher havia sido assassinada pelo marido. O rosto não apresentava marcas de violência. A fotografia era de uma cliente. Cláudio tinha movido uma ação judicial de separação há cerca de dois meses a pedido dela, que não aguentava mais a violência com que era tratada pelo marido desequilibrado. Além disso, descobrira que ele tinha uma amante. Não conformado com a separação, o homem decidiu vingar-se dela a todo custo. Entrou na casa de sua cliente pela janela do quarto que deixara aberta. Pegou um lenço, jogou-se em cima dela e a matou por asfixia. A autópsia, realizada no mesmo dia da ocorrência, não constatou sinais de estupro. A vítima morreu dormindo, sem saber quem a assassinara. Um vizinho vira o homem invadindo a casa da vítima e imediatamente chamou a polícia. A viatura policial que se deslocara até o local do crime não chegou a tempo de impedir o homicídio premeditado, mas os policiais lograram êxito em efetuar a prisão em flagrante do facínora. Conduzido até a Delegacia Policial daquela circunscrição, confessou o crime, assinou a nota de culpa e foi recolhido à carceragem para posterior transferência para um presídio. A violência doméstica é uma serpente má que se arrasta pelo mundo afora envenenando as famílias. Não faz acepção de pessoas no que respeita ao nível cultural e à condição econômica. O jornal noticiava também a invasão da Polônia pelas tropas do exército nazista. Esta invasão militar representou o limiar da Segunda Guerra Mundial. Consultando o jornal do domingo, soube que a Inglaterra e a França declararam guerra ao III Reich por conta dessa incursão. Muitas vidas ainda seriam ceifadas e lançadas à frialdade da terra. No Brasil vigorava o Estado Novo, um governo de cunho fascista. Depois da leitura, consultou o relógio de pulso e olhou para a janela. Tinha começado a chover naquele momento. Em seguida, a esposa entrou pela porta da cozinha com uma bolsa de compras. Não estava com a roupa molhada. A chuva desceu depois que ela entrara no prédio. Cláudio comentou com a esposa o noticiário que tinha acabado de ler. Gisela mudou logo de assunto. Disse que comprara farinha de trigo e linguiça calabresa. O jantar seria pizza de calabresa com suco de laranja. A sobremesa, queijo com goiabada. A chuva batia contra as vidraças. Choveu a noite toda.

Uma quinzena depois, Cláudio ainda não fazia a menor ideia de qual era a carta que colocara em cima da estante da sala comercial. A fé já dava os primeiros sinais de esmorecimento.

– Deus vai atender a minha súplica – pensou, tentando avivar a fé.

– Vai, sim – disse a voz da intuição.

– Mas não aguento mais tanta espera – reclamou, declinando a cabeça.

– Então reze – a intuição lhe sugeriu.

Ao meio-dia saiu para almoçar. De volta ao escritório, retomou o trabalho. Estava sentado à mesa folheando um processo penal. Ao virar uma folha, a de número 66, deparou-se com uma folha de papel dobrada. Colocou-a sobre a mesa, do seu lado esquerdo, e prosseguiu o exame das peças processuais até o fim. Terminando a análise, guardou o processo penal dentro da gaveta superior da mesa e trancou-a a chave. Em seguida, pegou a folha de papel, desdobrou-a e notou que trazia uma mensagem escrita a mão. As letras pareciam desenhadas. A grafia era muito bonita. Ficou surpreso ao ler isto: “Afastei de você o malfeitor que o perseguia. O caminho está livre. Vai dar tudo certo. Confie em mim”. Nesse instante, lembrou-se do sonho. O relógio de parede marcava dezoito horas. A secretária despediu-se dele e saiu. Em seguida, colocou o bilhete dentro do bolso interno do paletó, ajeitou a gravata, pegou a maleta e foi embora. No trajeto para casa, estacionou o automóvel em frente a uma padaria, onde comprou pão e leite para o lanche da manhã seguinte. Logo depois, rumou para casa. Dessa vez, não comentaria com a esposa sobre o bilhete. Não queria ouvir dela o que ouvira da vez passada: “Isso é loucura”. Chegando em casa, tocou a campainha. A esposa tinha saído. Enfiou a mão no bolso externo do paletó, pegou a chave e abriu a porta principal do apartamento. Deixou a maleta sobre a mesa de centro e esparramou-se no sofá da sala de estar. Alguns minutos depois, a esposa chegou. Tinha ido visitar a mãe. Nessa noite, por algum motivo, ficou pensando no pedido que fizera a Deus. Queria descobrir qual era a carta, mas isso não dependia somente de sua vontade. O baralho cigano tinha 36 cartas. Se fizesse uma única tentativa, a chance de acerto seria de 2,8%, com aproximação da casa decimal. Não queria correr o risco de errar o prognóstico. Isso representaria uma grande decepção. De alguma maneira, que a intuição ainda não lhe revelara, conheceria a verdade, e a verdade o libertaria das garras afiadas da dúvida. Um fato extraordinário estava na iminência de se consumar.

De manhã cedo, ao entrar no escritório, pediu à secretária que avisasse os clientes de que estaria ausente por uma semana. Viajaria com a esposa para a Itália. Já havia comprado as passagens de ida e volta. Fazia dois anos que não gozava férias. Passara todo esse tempo absorto pela advocacia. Precisava espairecer. Quebrar a rotina. A esposa tinha parentes italianos. Alguns moravam em Roma. Outros, em Nápoles. Católico praticante, Cláudio planejava uma visita ao Vaticano, o menor país do mundo em extensão territorial, e o maior em fé cristã. No início daquela semana, comprara uma câmera fotográfica especialmente para fotografar as capelas e estátuas que adornam a sede mundial da Igreja Católica, criada em 1929 pelo Tratado de Latrão.

Naquela fase da vida, não queria mais viver apenas de sonhos, como a onda empurrada pelo vento que nunca alcança a praia. Na antevéspera da viagem programada, depois de nadar exaustivamente pelas águas da incerteza, Cláudio alcançou a praia que procurava desde o dia em que ouviu falar em Deus pela primeira vez. Na infância, a mãe lia trechos do Novo Testamento para ele quando se deitava para dormir, e o levava à missa aos domingos. Às vezes, quando pensava em Deus, na sua bondade e justiça, sentia a presença dele, como uma nuvem protetora que o envolvia. Nessas ocasiões, uma sensação indescritível de paz irrompia em seu mundo interior. Depois de regular o relógio despertador, recolheu-se ao quarto e dormiu. A esposa ficou recostada no sofá da sala de estar, lendo um livro que ganhara de uma amiga. Por um instante, Cláudio achou que tinha acordado, mas continuava adormecido. Viu-se de pé sobre a cama. Embaixo, imóvel como uma pedra, estava o seu corpo. Ficou parado, olhando ao redor. Não porque quisesse ficar assim. Na verdade, não conseguia se movimentar. De repente, surgiu na escuridão do quarto um homem vestindo uma camisa branca de mangas curtas. As calças compridas também eram brancas. O homem aparentava 30 anos de idade. Os cabelos eram castanhos e curtos. O bigode ralo cobria o lábio superior da boca. Prestando atenção no olhar, pôde notar um ligeiro estrabismo. Em seguida, o homem aproximou-se dele com passos lentos. Depois de ter dado alguns passos, parou e permaneceu em silêncio. Nesse instante, um acesso de pânico fez com que Cláudio voltasse ao estado de vigília. Levantou-se aturdido e foi para a sala de estar. Não há nada que se imponha com tanta força quanto o medo do desconhecido. Ao vê-lo, a esposa fechou o livro, caminhou até ele e o abraçou. Em seguida, foram para a cama. Conversaram um pouco até o sono chegar. Dormiram abraçados. Cláudio deu-se conta de que estava totalmente consciente, embora adormecido. Dessa vez, não viu o homem estrábico vestido de branco. Diante dele, suspensas no ar, avistou seis bolas pretas dispostas na horizontal, contendo cada esfera um número na cor branca. Os seis números, da esquerda para a direita, seguiam esta sequência decrescente: 20, 19, 18, 17, 16, 15. Sentia a presença de alguém ao seu lado, mas não conseguia mover a cabeça para a direita. Nem para a esquerda, onde estava a esposa. Enquanto tentava compreender o significado daquela visão, deu-se conta de que havia retornado ao estado de vigília. Olhou rapidamente para a esquerda e não viu a esposa. O que teria acontecido com ela? Levantou-se e foi até a cozinha. Lá chegando, deparou-se com a esposa preparando um chá de camomila. Perdera o sono. O efeito calmante do chá poderia ajudá-la a pegar no sono novamente. Cláudio nada disse à esposa sobre a visão que tivera momentos atrás. Bebeu um pouco do chá também. Recolheram-se ao quarto poucos minutos depois. O sono havia retornado.

Na manhã do dia seguinte, por volta das dez horas, sentado à mesa abarrotada de papéis Cláudio redigia uma minuta. A secretária tinha saído para pagar as contas do escritório no banco. Terminada a redação, acondicionou o documento dentro de um envelope e o trancou no arquivo. Concluíra assim a última tarefa antes da viagem. Aparentemente estava tudo em ordem. Poderia viajar tranquilo. Sem nada mais a fazer, endireitou-se na cadeira e ergueu os olhos até o alto da estante. “Qual é o número da carta?”, perguntou-se. “Qual é o número da carta?”, perguntou-se novamente. Quando ia repetir a pergunta mais uma vez, teve a intuição de que era a carta de número 15. Concentrou-se por um instante e focou a atenção nos outros números, mas continuou com o pressentimento de que era mesmo a carta de número 15. Se fosse verdade, teria certeza da existência do Criador. Não refutaria uma evidência, por mais que a incredulidade o atormentasse com o fantasma da dúvida. Um tanto receoso, não quis tirar a carta de cima da estante. No fundo, temia que pudesse estar equivocado em seu prognóstico, que a visão que tivera durante a noite tivesse sido apenas um sonho. Um sonho como outro qualquer, sem relação alguma com a oração que fizera a Deus. Um simples sonho. Precisaria de um pouco mais de coragem para estender a mão, pegar a carta e ler o número, mas a coragem não vinha, estava impotente diante de uma realidade desconhecida. Passados alguns minutos, a esposa entrou pela porta do escritório. Iriam almoçar juntos nesse dia. Cláudio virou-se para ela e afirmou que já descobrira o número da carta. “Qual é o número?”, indagou Gisela com o semblante sério. “O número é 15!”, respondeu Cláudio com convicção. A esposa estendeu a mão direita e tateou a parte superior da estante. Em seguida, recolheu o braço trazendo a carta na mão. Em seguida, colocou-a sobre a mesa, com o número virado para baixo. Cláudio pegou a carta, virou-a e leu este número: 15. Por um instante, manteve os olhos fixos na carta, enquanto ouvia uma voz interior que lhe falava assim: “Eu existo. Vai dar tudo certo. Confie em mim”.

No baralho cigano, o número 15 corresponde ao urso. No bom sentido, este animal simboliza a força espiritual, mais precisamente a força da fé. Nas relações com a Espiritualidade, verdades complexas são reveladas de maneira simples. Isso faz parte da sabedoria divina. Deus gosta de simplicidade. Por esse motivo, veio ao mundo como carpinteiro, e não como imperador. Cláudio substituiu a fé cega na vida eterna pela certeza resultante da evidência. No mês de junho do ano seguinte, nasceu o primeiro e único filho do casal. Na maternidade, a mãe olhou para o rosto do bebê e disse ao pai que se chamaria Hugo. No ano em que completou dezoito anos de idade, Hugo iniciou o curso de Física. Depois da formatura do filho, o pai aposentou-se como Desembargador do Tribunal de Justiça.

Carlos Henrique Pereira Maia
Enviado por Carlos Henrique Pereira Maia em 08/03/2017
Código do texto: T5934824
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