SOMOS

Vagamente inspirado em 2001, Uma odisséia no espaço, de Arthur Clarke.

Somos um. Somos mil. Somos um gugol.

Não temos corpo. Somos uma névoa pairando no ar. Uma consciência interligada. Se um de nós pensa, todos pensamos. Se um de nós sente, todos sentimos. Se um de nós é, somos.

Vivemos neste planeta primitivo.A vida, exceto algumas bactérias existentes no limo primordial, não existe. Nosso lar é apenas uma pedra enorme vagando no espaço infinito. Apenas um grão infinitisimal no macrocósmico universo.

Porque fomos deixados aqui ? Não sabemos! Por quem ? Também ignoramos ! Por quanto tempo mais ? Como saber? O tempo ainda não foi inventado.

O que sabemos é que precisamos sobreviver e um microcóspica parte do nosso ser nos impele a isso. E sobreviver , para nós, significa apenas encontrar uma espécie receptiva aos nossos anseios. Penetrá-la e fazê-la nos levar de volta ao nosso verdadeiro lar.

Estamos na primeira casa no imenso jogo de xadrez que é o Universo. O que temos a fazer é mover as peças num único sentido, se quisermos vencer. E vencer significa apenas, e apenas sobreviver. Tão somente sobreviver.

Agora existem pequenas bactérias habitando o chão. Pouco maiores que um micron, rastejam pelo solo arenoso à procura de alimento. Multicelulares, multiplicam-se pelas frestas das rochas porém não são receptivas. Alguns de nós desistiram.

Simplesmente deixaram de pensar como os demais e sucumbiram. Apenas uma peça movida e abandonaram o tabuleiro. A maioria entretanto continua em busca de vitória.

Ás vezes penetramos o chão em busca de conhecimento. Analisamos cada componente, por menor que seja. Talvez esse seja o segundo objetivo do jogo: conhecer. Ás vezes nos misturamos com as partículas de vapor que sobem das águas. Então subimos, subimos. Depois despencamos feito chuva sobre as poucas árvores existentes agora.

Invadimos o cerne dos grandes quadrúpedes que habitam o chão e os poucos voadores que cortam os céus. Alguns deles nos assimilam, mas o fracasso é inevitável. Grandes, pesados, minicerebrais, seria impossível progredirem.

Quando o planeta acomodando-se, move-se em seu eixo principal e as geleiras cobrem toda a terra existente, não resistiram e morreram. Certos movimentos do jogo, não estudados completamente tornam-se, via de lógica, inoperantes.

Quando o gelo frio da evolução planetária nos envolve tornamo-nos céticos por um certo tempo com as possibilidades de vitória. Céticos até de nossa sobrevivência. Afinal, esperamos há muito tempo, mesmo para nós. E esperar sem certezas de chegar ao nosso objetivo é, no mínimo, frustrante.

Gelo branco e frio cobrindo o chão, ficamos em repouso esperando algo acontecer. Algumas vezes nos esqueiramos pelas moléculas do frio e espreitamos o céu que nos rodeia. Noutras analisamos os grandes e pequenos movimentos do planeta em acomodação. Porém, na maior parte do tempo espiamos o astro brilhante em seu percurso celeste. Ele é a fonte da vida do nosso lar. Ou sua causa, para ser mais exato. Apenas ele poderá dar algum movimento às pedras do jogo.

As geleiras começam a se derreter. O tempo passa!

O astro inicia a subida de temperatura. O tempo passa !

Pequenos animais derivados dos grandes de outrora começam a povoar lentamente o planeta em gestação. É um parto doloroso e lento. Raizes escapam do gelo e elevam as árvores rumos ao alto. Diversas pedras do tabuleiro são movidas ao mesmo tempo e em todas as direções. Umas tem rumo certo, outras seguem em direção inversa e se perdem, mas todas com uma única meta, um único destino final : Evolução.

Tentamos novas simbioses. Conseguimos novos fracassos.

Existe uma certa lógica no processo evolutivo: os seres necessitam de membros livres para o desempenho das ações manuais. Não adianta serem estimuladas se não tem meios ou órgãos para concretizarem esses estímulos. É preciso encontrar novos seres se quisermos ter algum sucesso . Só nos resta continuar procurando tais seres para. . .

Esperem! Olhem !

Um pequeno mamífero desceu das árvores onde se protegia dos grandes animais.

À princípio caminha nas quatro patas. Desajeitado tenta se erguer ficando apenas nos membros inferiores. Uma, duas, inúmeras tentativas depois, consegue.

Cambaleia. Tropeça nas próprias pernas e vai ao solo. Tenta novamente.

Nós esperamos. Esperamos e torcemos.

Talvez seja ele o esperado.

Um de nós o penetra.

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Os pelos cairam. Sobraram apenas algumas áreas cabeludas. Anda semicurvado, porém as mãos estão livres. Libertas do chão podem ser usadas como ferramentas. E os pés podem levá-lo a qualquer lugar do planeta. É rústico e selvagem. Porém belo e destemido. Talvez tenhamos acertado nossa escolha desta vez.

É hora de iniciar o aprendizado!

Primeiro ensinamos a separar a comida boa da má. Depois a água envenenada da boa água. É um bom aluno e aprende rápido.

O sol nos queima. Ensinamos a procurar cavernas para morar e servir de proteção durante a noite.

O frio nos engerela. Ensinamos a matar animais e usar as peles para cobrir a própria pele e assim nos protegermos.

É um ser forte porém frágil de duração. Então alguns de nós penetram outro ser da mesma espécie,ligeiramente superior. E ensinamos a perpetuarem a espécie. É necessário novas criaturas para o prosseguimento do jogo .

Eles aprendem fácil. Com dois pedaços de madeira e um liame constroem uma arma poderosa. Assim deixam de serem presas fáceis para os animais, podendo matá-los à distância. E ensinamos a usarem os olhos e os sentidos para atingirem os alvos. Que serão o sustento de nossos corpos.

Os animais inferiores reconhecem neles o nosso habitáculo e os respeitam, tornando-se nossos servos e escravos. O tempo foi longo, a espera trabalhosa, o ensinar árduo, merecemos ser reis sobre todos os viventes.

Mesmo assim, depois de tantas melhorias, ainda são seres primitivos e vagam sem destino pelo planeta desértico. Aprendem fácil, porém mais facilmente desaprendem o aprendido. Nascem, crescem e morrem ao sabor dos tempos, sem objetivo algum. É preciso um novo mover de peça. Tentar nova jogada, se possível mais audaciosa e tentadora. E é por isso que incutimos em suas mentes primordiais a idéia de um ser superior, feito à sua imagem e semelhança. E assim, em nome desse ser, eles crescem, reproduzem-se, matam e morrem. . . e progridem consideravelmente.

E constroem vilas. E depois cidades. Agrupados tornam-se mais poderosos ainda.

O poder é perigoso e torna-os independentes demais. Então criamos o remorso e a idéia do pecado. É necessário um freio para sua independência.

Com madeira encontrada nas florestas fabricam barcos e partem em busca de novas terras. Novos lares. Novos paraisos.

A arma poderosa já não é tão poderosa assim. Então fundem minerais e criam novas armas mortais. Depois se espalham como folhas ao vento, ocupando todas as terras, todos os lugares.

O planeta é vasto e generoso.

Os mares estão trilhados. As terras ocupadas. Armas incríveis surgem dia a dia. A comida é arrancada do solo à custa de algum sacrifício. Os peixes e os animais completam sua dieta. Invenções brotam de suas cabeças como estrelas no céu.

Só resta o céu !

Então os ensinamos olhar o céu. E imaginarem novos mundos. E sonharem novas terras. Novos lugares além do espaço. Novos mares. Novas civilizações. Novos saberes.

Ensinamos a construirem naves que cruzem os espaços. E eles sonham, porque nós os ensinamos a sonharem. E a desejarem novos desafios para suas mentes primitivas, porque nós os ensinamos a desejar.

Jogadas novas sobrepõem-se às jogadas antigas. Pode-se antever o xeque mate final.

Algumas das peças sacrificadas em nome do jogo revelam-se agora produtivas. Os fins justificam os meios. E finalmente eles estão prontos!

Breve viajarão pelo espaço sideral. Nossos filhos revelaram-se bons alunos e rasgarão céus e hiperespaços.

E nós iremos com eles.

De volta ao lar.

Nickinho
Enviado por Nickinho em 05/08/2007
Reeditado em 11/08/2007
Código do texto: T593591