Gestação

- Eu gostaria de ajudar, mas não sou médico - desculpou-se Hasselblad.

Difícil saber o que o seu interlocutor achara da resposta, visto que não era sequer vagamente humanoide, nem possuía um rosto discernível como tal. Os huganari, classificação FPLH, eram criaturas azul-escuro de grande porte e tegumento coriáceo, que lembravam vagamente um cacto saguaro semovente, de 2,5 a 3 metros de altura. Ostentavam um corpo colunar, do qual emergiam quatro ramificações flexíveis à altura do que seria a cintura. No lugar onde um saguaro teria raízes, os huganari possuíam um conjunto de pedúnculos semelhante a um esfregão, e que serviam como sistema locomotor, lhes dando um típico caminhar deslizante. Na parte superior do cilindro, projetava-se uma "touceira", tal qual uma coroa de abacaxi, que protegia os órgãos reprodutores, de olfato e audição e, pela cor, servia também como identificação visual de gênero sexual (três, ao todo). Oito olhos rudimentares estavam situados ao redor do tronco, pouco abaixo da coroa; isto dava aos huganari uma sofrível visão em 360°, compensada por sua excelente audição e olfato. Como não possuíam órgãos de fala e se comunicavam por uma complexa linguagem gestual (usando os quatro "galhos", às vezes simultaneamente), o uso do Tradutor Universal era praticamente indispensável.

- Não parece ser um problema fisiológico - disse a voz sintetizada que emergiu do alto-falante do aparelho, atado a uma faixa metálica que o huganari trazia na "cintura", como se fosse uma capanga.

- Mas você me disse que talvez fosse necessária ajuda médica... - retrucou o inspetor da Pesquisa Colonial, observando fascinado a dança dos braços do huganari, que a máquina traduzia em tempo real como palavras.

- Não é uma doença... - tentou explicar o huganari, esforçando-se para definir um conceito alienígena. - Não é uma doença física. Tem a ver com o ciclo reprodutivo da pessoa.

"Pessoa", como bem o sabia Hasselblad, era um conceito bastante elástico. Todas as espécies inteligentes com as quais os terrestres haviam tido contato, consideravam-se "humanas" e "pessoas" - em seus próprios termos, naturalmente. Mas, pela dificuldade que o huganari estava tendo para explicar o caso, a pessoa em questão sequer era da sua própria espécie.

- Qual é a classificação da pessoa? - Perguntou Hasselblad, objetivamente.

- A pessoa é uma DBPR.

Hasselblad perguntou-se o que alguém com classificação DBPR - genericamente, uma criatura de sangue quente, respirando oxigênio - estaria fazendo em Huganar, mas depois lembrou-se que ele mesmo, um DBDG, era uma exceção à regra. Provavelmente as autoridades huganari haviam decidido que ninguém melhor do que um DBDG - principalmente se esse DBDG fosse um inspetor da Pesquisa Colonial - para entender outro... bem, vá lá, um DBPR.

Fosse lá o que esse DBPR fosse.

* * *

Caía a noite quando um veículo de superfície deixou Hasselblad junto à uma casa pré-fabricada em padrões terrestres, ao lado de um parque de reflorestamento. Os huganari, que não se alimentavam de outras espécies, mas apenas de compostos inorgânicos, selecionavam alguns tipos de plantas por suas características olfativas e compunham áreas verdes (azuis, neste caso) exclusivamente para recreação ou apreciação estética.

- Wavalul? Sou Hasselblad - identificou-se o inspetor pelo intercomunicador, ao lado da porta frontal.

- Entre! - Respondeu uma voz indefinível - e que não havia sido produzida por um Tradutor Universal. A porta abriu-se automaticamente e ele viu-se frente à Wavalul.

Era uma criatura grande, vestindo uma espécie de robe cerimonial coberto de arabescos em vermelho e preto. Lembrava um urso coberto de pelagem curta, acinzentada, e com mãos de seis dedos, longos e pretos. A cabeça, curiosamente, parecia a de uma coruja - redonda e com grandes olhos amarelos, mas com orelhas móveis, igualmente redondas, no alto. As narinas eram largas e escuras, e a boca, uma linha sem lábios. Quando a abriu para falar com ele, Hasselblad viu que os dentes eram grandes, mas quadrados - dentes de herbívoro - e a língua era preta.

- Estou encantada! - Disse Wavalul, abanando as orelhas. Um sinal de satisfação, aprendeu ele posteriormente. - Quando os huganari me disseram que havia um DBDG em visita ao planeta, pensei: não é da minha espécie, mas pode me ajudar no "yakwa"!

- Vim porque parecia precisar especificamente de um DB, e creio que não há nenhum outro disponível num raio de vários parsec. Mas também fiquei curioso em conhecê-la. Nunca vi ninguém do seu povo antes - admitiu Hasselblad. - O que é "yakwa"?

- É um ritual - disse Wavalul. - Mas vamos nos sentar para conversar. Ou sua espécie costuma ficar em pé?

- Nós nos sentamos para conversar.

- Ótimo! Os huganari mandaram mantimentos terrestres, caso queira comer ou beber alguma coisa.

- Mais tarde, quem sabe. Mas, me fale sobre o "yakwa" e qual é o meu papel nele?

As orelhas de Wavalul ficaram na horizontal.

- Você canta?

* * *

Meses depois, em trânsito para outro ponto da Galáxia, Hasselblad relembrou a história ocorrida em Huganar para o capitão Espinoza.

- Os onaka, o povo de Wavalul, são marsupiais. No "yakwa", a fêmea dá à luz aos filhotes em estágio praticamente embrionário, e eles se deslocam pela barriga dela acima, até o marsúpio, onde ficam até completar a gestação.

- Quer dizer então que você estava com uma fêmea onaka nua... e fazendo exatamente o quê, inspetor? - Perguntou Espinoza em tom de gozação.

- Cantando, Espinoza - respondeu fleumaticamente Hasselblad. - A tradição onaka determina que alguém cante para a parturiente. Geralmente, a mãe dela, mas enfim... eu fui o que se pode arrumar.

- Cantando... em onaka?

- Os cânticos do "yakwa" são curtos e repetitivos, e foram feitos para serem cantados de boca fechada, quase como uma cantiga de ninar. Mas a entonação é essencial, razão pela qual um huganari utilizando um Tradutor Universal teria sido uma péssima escolha.

- Entendo... e ela não resolveu dar o seu nome para um dos filhotes, como agradecimento?

- Essa é uma tradição humana... quero dizer, terrestre, Espinoza. Mas eu falei posteriormente com a mãe de Wavalul e ela me disse que assim que eu tiver uma fêmea que me dê filhos, irá para qualquer canto da Galáxia cantar para ela.

E, abaixando a cabeça para disfarçar o ar de riso:

- Não tive coragem de dizer que não temos "yakwa"!

[12-04-2017]