Reservado

O couraçado halakiano em órbita de Dohash-IV tinha a aparência de uma antiga mina submarina terrestre: uma ameaçadora esfera cinzenta, eriçada de saliências, com um anel equatorial bojudo onde estavam instalados os propulsores que lhe davam mobilidade de 360°. Com seus 900 metros de diâmetro, o gigante encheu a tela frontal do diminuto cruzador do Corpo de Monitores, que acabara de emergir do hiperespaço.

- Olha só o tamanho dessa coisa! - Exclamou o navegador Piero Monicelli, reduzindo a velocidade para entrar em órbita do planeta, à uma distância respeitosa do monstro metálico.

- Canal de comunicações aberto, capitão - informou Irma Gabor, a Chefe de Operações.

- Ponha na tela frontal, C.O. - respondeu Oscar Espinoza.

A imagem do couraçado pairando ameaçadoramente sobre o planeta abaixo, foi substituída por um close-up do seu comandante na respectiva ponte de comando, aparentemente um cíclope. Os halakianos, classificação DGPL, eram criaturas de grande porte, respiradores de oxigênio, oriundos de um planeta cuja gravidade era 50% maior do que a da Terra. Possuíam um corpo oval, cinza-escuro ou marrom, sustentado por três pernas cilíndricas, três braços terminados em mãos de quatro dedos, e uma cabeça cônica, com três olhos rasgados e três ouvidos sem orelhas. A criatura possuía duas bocas, uma em cada lado do pescoço curto, sendo que a menor delas era utilizada apenas para comunicação.

- Capitão, ele está de costas para a câmera - sussurrou Irma. - A boca que estamos vendo é a boca de comer. Isso é considerado um insulto entre os halakianos!

Espinoza suspirou. As coisas não estavam começando bem. Premiu um botão no braço de sua poltrona de comando e disse, olhando para a tela principal:

- Fala o capitão Oscar Espinoza, do Corpo de Monitores da Federação Galática. Se estiver disposto a falar, peço que se coloque numa posição respeitosa, comandante...

A cabeça cônica do cíclope na tela oscilou como um pêndulo. Em seguida, o halakiano girou sobre si mesmo, e surgiram dois olhos, bem abertos. A boca no pescoço parecia um esfíncter - e a linguagem do halakiano era basicamente composta de assobios modulados. Felizmente, o uso do Tradutor Universal era padrão na Galáxia.

- Eu sou Gommakar, primeiro da linhagem Zabadhur, comandante do couraçado "Hunutnir-VIII", de Sua Majestade Católica Tammozim-III - sibilou o halakiano. - Estávamos aguardando a sua chegada, Oscar Espinoza da Federação Galática... seja lá qual for a sua linhagem.

- A minha linhagem é bastante boa, comandante Gommakar, fique tranquilo - respondeu pachorrentamente Espinoza. - Inclui um campeão da Copa América e um finalista olímpico da marcha atlética. Viemos porque nossa presença foi requisitada pelos habitantes de Dohash-IV. Eles relataram atitudes hostis suas em relação a eles, o que vai de encontro às regras de boa convivência intergalática vigentes.

- Não feri nenhuma regra de boa convivência vigente! - Assoviou furiosamente o halakiano. - Acontece que meu povo encontrou este planeta, que nos estava reservado há séculos, ocupado por formas de vida inferiores! E nos mandam um militar de terceiro escalão para negociar, não um diplomata ou um guerreiro! Isso é absolutamente ultrajante!

- Há muito que a Federação abriu mão de guerreiros, comandante - disse Espinoza em tom firme. - Eram uma fonte sem fim de problemas. E quanto a diplomatas, geralmente eles não são requisitados em locais onde sua integridade física corre riscos. Mas, dependendo do resultado da nossa conversa aqui, poderemos até acordar que um deles vá até seu mundo-matriz, dialogar com suas autoridades.

- Capitão Oscar Espinoza da Federação Galática, eu vou lhe dizer o que vai acontecer se essa conversa não acabar nos MEUS termos: eu vou usar o arsenal do meu couraçado para esterilizar a superfície desse planeta que foi maculado pela presença dos infiéis! Você tem 12 horas da Terra para convencê-los a partir ou a encarar sua destruição!

A imagem do halakiano na tela frontal foi bruscamente substituída pela visão do espaço pontilhado de estrelas e o "Hunutnir-VIII" pairando ameaçadoramente sobre Dohash-IV.

- Ele cortou a transmissão, capitão - informou algo desnecessariamente Irma Gabor. - Isso é...

- Um mau sinal, já sei - aduziu Espinoza com ar cansado.

- Não, capitão - atalhou a Chefe de Operações. - Isso é um sinal de que  está blefando.

* * *

- Do ponto de vista da humanidade galática, a guerra não faz o menor sentido - ponderou Irma Garbo, reunida com Espinoza e os demais oficiais do cruzador dos Monitores no refeitório da nave, que fazia às vezes de sala de reuniões. - Seres inteligentes que atingiram o estágio da navegação interestelar, há muito são capazes de produzir tudo o que precisam sem precisar ameaçar a integridade de outras formas de vida nesse processo. O problema é quando estão em jogo conceitos mais abstratos, e que não são estranhos a nós, terrestres, do ponto de vista histórico; por exemplo, o fanatismo religioso.

- Os halakianos são fanáticos religiosos? - Indagou preocupada a médica de bordo, Dra. Nora Takahata.

- Eles possuem a sua quota de obcecados, e o comandante Gommakar parece se enquadrar bem nessa acepção. Mas o fato de ter aparecido por aqui com uma nave de combate de grande porte, indica que ele não é um franco-atirador e que possui respaldo do seu governo. Talvez até mesmo de Sua Majestade Católica.

- Isso só piora nossa situação - lamentou Hans Oberth, o engenheiro de voo.

- Por outro lado, - prosseguiu Irma Garbo - tudo leva a crer que essa demonstração de força, o prazo de 12 h, etc, não passam de um blefe. Estão tentando nos intimidar para que façamos o que querem, sem que precisem tomar nenhuma atitude condenável perante a humanidade galática. E se não sair como previsto, sempre poderão alegar que Gommakar agiu sozinho e não falava em nome do governo halakiano.

- O que sabemos de concreto sobre o pleito de Gommakar, de que Dohash-IV estaria reservado para o seu povo? Poderíamos contestar com base nisso? - Indagou Espinoza.

- Dificilmente - disse Garbo, após um instante de silêncio. - Eu não tenho a pretensão de ser especialista em religião halakiana, muito menos me arriscaria a querer contestá-lo no seu próprio terreno. É derrota na certa.

E então, um sorriso começou a se formar no rosto da Chefe de Operações.

- Todavia, isso me deu uma ideia, capitão. Há algo na religião halakiana que podemos usar em nosso favor, mas vai exigir uma visita à Dohash-IV para ter alguma chance de sucesso...

- Nenhum problema - disse Espinoza. - Oficialmente, estaremos indo levar o ultimato às autoridades do planeta.

* * *

O cruzador do Corpo de Monitores cruzou a atmosfera de Dohash-IV e retornou ao espaço, tomando o rumo do couraçado em órbita.

- Corpo de Monitores para "Hunutnir-VIII". Pedimos permissão para ir à bordo levar a resposta ao seu ultimato.

A cabeça cônica de Gommakar surgiu na tela principal, os dois olhos frontais bem abertos.

- É um gesto nobre de sua parte vir apresentar pessoalmente a capitulação, capitão Oscar Espinoza da Federação Galática - assoviou ele. - Transmitiremos as coordenadas do hangar para pouso.

A imagem na tela foi substituída novamente pelo espaço estrelado. Espinoza e Garbo entreolharam-se.

- Eu espero que isso dê certo, C.O. - disse Espinoza. - Ou vamos virar nomes de escola na Terra.

- Por favor, capitão, - respondeu ela, sorrindo - mantenha o pensamento positivo.

O cruzador pousou num hangar próximo ao pólo norte do couraçado. Aguardaram que o hangar fosse pressurizado e que Gommakar em pessoa, envergando uma capa dourada, viesse recebê-los à frente de doze soldados fortemente armados. Espinoza desceu pela rampa ventral do cruzador, acompanhado por Irma Garbo.

- Então cá estamos, frente à frente - disse Gommakar, do alto dos seus 2,5 m de altura. - Sabia que era um homem inteligente, capitão Oscar Espinoza da Federação Galática! Como os infiéis pretendem cumprir o nosso trato?

Irma Garbo virou-se para trás e assoviou. Imediatamente, a cabeça cônica de Gommakar começou a balançar ritmadamente como um pêndulo.

- O que você fez... o que você fez... - silvou ele.

Descendo a rampa para juntar-se aos oficiais do Corpo de Monitores, surgiu outro halakiano. Encurvado e mais baixo do que Gommakar, mas mesmo assim com bons dois metros de altura, coberto por uma capa acobreada.

- Eu sou Zanzumman, primeiro da linhagem Enammuki, sacerdote dos Gabaraminn por direito divino - assoviou lentamente o ancião. - Como fui convidado a vir à sua casa... esta nave... pacificamente e de bom grado, eu lanço sobre você as regras de hospitalidade e o intimo a abrir mão, de uma vez por todas, e para sempre, de qualquer direito que algum dia tenha tido sobre este planeta e todos os que nele vivem.

E ergueu a mão frontal, num gesto que fez com que os doze soldados curvassem as cabeças. Gommakar resistiu o quanto pôde, mas, finalmente, baixou a sua.

* * *

- A "Hunutnir-VIII" está saindo de órbita - anunciou o navegador.

Oscar Espinoza sentiu que agora, finalmente, poderia relaxar. Virou-se para a C.O., que observava a tela principal com ar pensativo.

- Ganhamos, não foi?

- Ganhamos - respondeu ela. - É extremamente improvável que Gommakar ou outro semelhante ouse aparecer por aqui. Os halakianos levam a sério essa coisa de quebra de promessa.

- E sabe o que eu achei mais incrível nessa história, C.O.? - Espinoza estava com ar de riso.

- O que foi, capitão?

- Termos conseguido nos safar sem precisar da ajuda do inspetor Hasselblad!

Irma Garbo sorriu.

- A Galáxia é grande, capitão. O inspetor não pode estar em todos os lugares ao mesmo tempo.

Espinoza balançou a cabeça em concordância, olhar perdido nas estrelas da tela principal.

- Façamos a nossa parte - concluiu.

- [22-05-2017]