O regresso

Rebecca Martínez, operadora do controle de terra em LK-621, informalmente conhecido por Gamera, tinha que lidar com pedidos de relocação de pessoal vez por outra. Alguns deles envolviam remanejamentos de escala ou transferências entre astronaves da companhia - quando havia tal possibilidade. O caso mais curioso com que se deparou nesta função, foi a de um tripulante, Mark Shepherd, chefe de manutenção do "Loch Etive", em busca de uma carona para o Sistema Solar.

- Em que lhe posso ser útil, oficial Shepherd? - Indagou Martínez pelo rádio subespacial quando o "Loch Etive" fez contato.

- Vamos passar por Gamera para descarregar minério e repor suprimentos, operadora Martínez. E eu vou entrar em férias... na Terra.

- Sorte sua - foi a resposta polida de Martínez. Na verdade, férias na Terra não lhe interessavam, o que queria mesmo era um posto à bordo de um cargueiro. Não seria desta vez, contudo.

- Estava me perguntando se não haveria alguma nave com destino à Terra passando por aí, enquanto estivermos no porto...

Martínez consultou o quadro de escalas no terminal à sua frente. Sim, havia um cargueiro no rumo desejado, partindo em poucos dias: o "Judea". Transmitiu a informação à Shepherd, que denotou preocupação.

- Mas... será que conseguiremos chegar à tempo? E será que aceitam me levar?

- O timing terá que ser preciso - avaliou Martínez. - Mas creio que se aumentar a sua velocidade em 10%, conseguirá chegar aqui um dia antes da partida do "Judea".

- Isso pode ser resolvido - afirmou Shepherd. - Mas, e quanto à carona?

- Terei que perguntar à comandante do "Judea"... mas possuem duas câmaras de criossono extras. Espaço não será problema.

- Poderia solicitar então, operadora Martínez... por favor?

- Naturalmente, oficial Shepherd.

E assim foi feito.

* * *

No dia marcado, uma vedeta do "Loch Etive" veio trazer Mark Shepherd à base em LK-621. A nave permaneceu em órbita, o que não chegava a ser incomum, já que havia desatracado a imensa refinaria que rebocava e que seria levada para a Terra por outro cargueiro (não o "Judea", que também chegaria carregado). Em terra, ele conheceu Rebecca Martínez e seu substituto indicado para o "Loch Etive", Samuel Iwuchukwu. Iwuchukwu estava feliz em poder partir daquela "parada de caminhoneiros" espacial.

- Imagino o que você deve estar sentindo - comentou Martínez, enquanto os três saboreavam uma cerveja no bar da base.

- Estou em Gamera há seis meses! Até ficar no criossono é melhor do que as opções de lazer daqui - disse Iwuchukwu rindo.

- Se você gosta de esquiar em encostas de metano congelado, achou o seu lugar - explicou Martínez para Shepherd.

- Não gosto de esquiar nem em neve de gelo, quanto mais em metano congelado - retrucou Shepherd. - E você, Martínez? Há quanto tempo está em Gamera?

- Não muito... dois meses. Parece que não há muita demanda por navegadores...

- Em último caso, põe-se a nave no piloto automático - sentenciou Iwuchukwu.

- Grata pelo incentivo - foi a resposta seca de Martínez.

O traslado já havia sido acertado. A comandante do "Judea" concordou em transportar Shepherd desde que ele cobrisse algumas escalas do seu chefe de manutenção, o que não era problema. E, menos de 24 h depois, ele partiu em outra vedeta, para iniciar uma viagem de meses de duração rumo ao Sistema Solar. Por isso, parte do voo transcorria em animação suspensa, menos para poupar recursos e suporte de vida, e mais para evitar o tédio e a ociosidade durante a navegação pelo hiperespaço, que mesmo realizada em velocidade superior à da luz, estava longe de ser instantânea. Durante essa parte do percurso, as naves seguiam, como dissera Iwuchukwu, em piloto automático.

Só que, como Martínez descobriu quase dois anos depois, Shepherd encontrara um modo muito mais divertido de preencher o tempo em que teoricamente, deveria estar dormindo à bordo do "Judea"...

* * *

Uma voz de mulher soou no intercom.

- Estou falando com a operadora Martínez?

- Eu mesma... - respondeu Martínez, em seu posto no controle de terra em Gamera. - Mas, pelo que vejo nos meus registros, esse seu cargueiro nunca aportou aqui...

- É verdade, o "Riversdale" está em sua viagem inaugural. Somos sua primeira tripulação.

- E não tem vaga para navegadora, suponho... - sondou Martínez.

- Infelizmente, não, operadora. Mas eu já estive em Gamera, há cerca de dois anos...

- Não me recordo de você, oficial... ?

- Maria Podolska, oficial de ciências. Na época, eu servia à bordo do "Judea".

Os detalhes da história começaram a emergir na mente de Martínez. O "Judea", o "Loch Etive", um oficial que seguia em férias para a Terra...

- Sim, estou lembrada agora. Fiz uma transferência para a sua nave... um oficial de manutenção...

- Mark Shepherd! Meu marido - respondeu ela com orgulho maldisfarçado. - Nos conhecemos no "Judea", no trajeto de volta à Terra...

E a história foi se desenrolando. Pelo que Podolska lhe contara, o encantamento mútuo fora tão grande que os dois abriram mão dos seus seis meses de criossono para se conhecerem melhor, enquanto o restante da tripulação hibernava. Claro, também havia trabalho à ser feito que justificasse o tempo desperto, e ambos fizeram uma revisão geral da manutenção do cargueiro - o que lhes valeu um bônus da companhia.

- Fico muito feliz por você, Podolska... e o seu marido, como está? No criossono?

O tom de voz de Podolska tornou-se melancólico.

- Sim.... ele está em criossono. Mas não nesta nave. Não conseguimos vaga no mesmo cargueiro... e em consequência, vamos passar um bom tempo separados.

Se bem conhecia a companhia, pensou Martínez, aquilo podia ter sido até proposital. A companhia não se opunha a nenhum tipo de relacionamento sexo-afetivo entre seus colaboradores - desde que não implicasse em vínculos permanentes. Casamentos, uniões estáveis, complicavam as coisas. As pessoas queriam viajar juntas, e nem sempre isso era factível - ou desejável. E então, em que poderia ajudar Maria Podolska?

- Gostaria que tentasse prever, se for possível, quando o "Riversdale" e o "Tilkhurst", onde ele está servindo, irão se encontrar em Gamera...

Martínez consultou o banco de dados. As notícias não eram muito boas.

- Lamento, oficial Podolska... a melhor previsão, dado o perfil das missões atuais, é um encontro em LK-621 somente daqui à três anos...

- Três anos é um longo tempo...

- Não se você usar o criossono em seu favor - sugeriu Martínez.

Um curto silêncio.

- Seremos duas Belas Adormecidas vagando pelo espaço até o nosso reencontro?

- Talvez você possa despertar o príncipe desta vez - ponderou Martínez.

Longe, muito longe, anos-luz de trevas e solidão distante, Maria Podolska riu.

- [10-09-2017]